Foi publicada nos dias que correm, com sobriedade ou como denúncia explícita, a notícia de que o presidente do STJ dirigiu recentemente palavras ríspidas a um estagiário daquela Corte, por motivo irrelevante (desentendimento diante de um caixa eletrônico) e adotou a atitude de romper de imediato o contrato de estágio, causando sua dispensa.
A fonte informativa, tanto nos meios eletrônicos como em todos os órgãos de imprensa que repercutiram o assunto, foi um correspondente em Brasília do Blog do Noblat, e o boletim de ocorrência registrado pelo estagiário em delegacia de polícia do Distrito Federal.
O blog referido, embora ressalte que ofereceu a oportunidade de manifestação ao ministro, apresenta uma dificuldade de isenção e livre acesso que logo se apresenta a quem o consultar. A formulação de qualquer comentário pelo leitor está submetida a um prévio cadastramento nas Organizações Globo, que é obrigatório. Assim, contraponto à notícia, só de cadastrado.
Como a Constituição veda o anonimato, é próprio que os órgãos que operam pela internet peçam os dados identificatórios, mas isso não se confunde – de nenhum modo – com cadastro. Quando mais se ele está vinculado a interesses comerciais, tanto que logo aparece a pergunta a quem procura acessar os comentários ali já postados: “É cliente da GLOBO.COM ?”.
Nesse quadro, há de se convir que seja bem compreensível a atitude do ministro em não se manifestar lá sobre o episódio.
O Blog do Noblat apresentou o assunto com uma frase inicial que é indutiva da compreensão pelo leitor, conferindo a ela veracidade de verificação, quando o fato apresentado pelo estagiário corresponde a uma versão dele. Certamente, toda a manifestação unilateral de vontade é respeitada pelo Direito – desde que seja pela via própria -, mas vincula apenas o seu autor.
A notícia dada no blog e profusamente reproduzida começa assim: “ ‘Sou Ari Pargendler, presidente do STJ. Você está demitido.’ A frase acima revela parte da humilhação vivida por um estagiário do Superior Tribunal de Justiça (STJ) após um momento de fúria do presidente da Corte, Ari Pargendler.”
É preciso ter em mente a advertência de Terêncio: “humano sou, nada do que é humano me pode ser indiferente.” Inclusive – e notadamente, no caso – o erro. O magistrado pode ter cometido deslize. E ser responsabilizado. Mas a notícia é indutiva na medida em que apresenta a humilhação e o momento de fúria como circunstâncias certas, já provadas, e não como produto de uma versão acusatória.
Os precedentes de uma carreira exercida pelo acusado com independência e respeito humano, por mais de trinta anos, com um padrão de excelência em seu trabalho, atraem certa inverossimilhança, a ponto de – ao menos – causar espécie diante do comportamento denunciado. Sendo ele gaúcho, seria de esperar o uso da linguagem tu estás e não você está demitido. Além disso, em se tratando de contrato de estágio rompido, haveria mera dispensa ou desligamento, uma vez que o estagiário não integra o serviço público como funcionário ou empregado, e não demissão. Um técnico em Direito sabe disso.
Esses detalhes podem parecer e são mesmo pequenos, mas ajudam a compor um raciocínio isento, quando se sabe que os crimes contra a honra ferem a subjetividade, o direito à personalidade da vítima, e por isso exigem que haja queixa ou representação que fundamentem especificamente o bem jurídico ferido, pois o que alcança com gravidade a uns, pode ser irrelevante para outros. O modo legal impositivo e exclusivo de exercer a ação penal privada, como a ação pública condicionada à representação, não permite ser substituído por um registro de ocorrência.
O boletim dessa alegada ocorrência não poderia ter sido feito em delegacia de polícia do Distrito Federal, salvo infringindo a garantia da Constituição do due process of law, pois a peça não é apta a produzir as conseqüências legais que a lei prevê.
Além disso, também não se evidencia nas palavras atribuídas ao ministro (e transcritas) onde esteja aquela específica de ofensa à honra, tanto mais a caracterizar a injúria real que – como sabido – combina as invectivas verbais à agressão física ou às vias de fato, com o uso de violência explícita, a vis absoluta.
Não bastasse tudo isso, o crime teria sido cometido dentro das instalações do STJ (diante de caixas eletrônicos ali colocados) e por servidor público no exercício de suas funções de presidente daquele Tribunal, invocando expressamente essa condição. A competência investigatória (em tese e mesmo para fazer registro de ocorrência incorretamente, como foi o caso) seria da Polícia Federal. Supletivamente, do Ministério Público Federal, e exigiria que se tratasse da hipótese de ação penal pública.
Logo, a autoridade administrativa, no exercício da atividade policial, (1) atropelou o rito da lei quando deixou de praticar ato vinculado para torná-lo arbitrário, fazendo um registro inadequado ao fim (2) descumpriu garantia constitucional do devido processo ao enviar peça inepta (o próprio BO) ao Supremo e ainda (3) ultrapassou sua órbita de competência, tanto em relação à matéria como em relação à pessoa, que a situam no âmbito federal.
Quanto ao blog que desencadeou a desinformação chocante, não se sabe ainda se ele próprio está desinformado injustificadamente de tudo isso constatado aqui (como o jornalismo profissional não pode estar) ou se é apenas, por interesse até agora inapreendido, um desinformante proposital.
Não se pode afetar reputações com tanto voluntarismo mal ocultado. É certo que nosso povo vê amiúde abissais escândalos administrativos, judiciários e legislativos ocorrerem nas repartições que deveriam reprimi-los. Mas é impositivo que ele seja informado, e não tenha a mesma sensação amarga, quando o Supremo negar conhecimento ao boletim de ocorrência como peça imputativa por crime de honra, por absoluta e incorrigível inépcia. Esse desfecho inevitável nada tem de corporativo. E não impede o interessado de oferecer queixa formal ou de buscar hipotética reparação pelo meio próprio, incluindo aí as instâncias civil e administrativa.
Ninguém paira acima da lei, mas ofendê-la tanto pode estar em um erro de agente público que extravasou, como no atropelo acintoso das garantias institucionais pela vontade de atingi-lo em sua própria honra. O Brasil tem uma história de comedidos e vagarosos progressos efetivos do Direito, e muitos retrocessos. Deu para aprender que é necessário resguardar o que temos e repelir o que não queremos.
Precisa estar logado para fazer comentários.