1. Introdução
Direito é um instituto formado pela pactuação mútua entre pessoas membros de uma determinada sociedade, ou por seus representantes, que tem como função a criação e administração de normas para regular os atos praticados pelos representantes do poder e por seus representados, entre si ou isoladamente, a fim de prover a manutenção da ordem dos atos e fatos decorrentes dessa convivência.
Tendo em mente o conceito acima elaborado, é claro verificar-se que o direito é uma criação humana adaptada à realidade e à ordem de cada sociedade, em uma determinada época, de acordo com os atos e fatos que se verifiquem, que se presuma ou se preveja verificar. Todo ordenamento jurídico, em qualquer sociedade, evolui, e dessa forma se adapta às demandas da sociedade e do poder representante.
Não diferentemente é de se verificar a flutuação dos institutos negociais e comerciais, base das relações da sociedade de consumo. O homem passou, desde a antiguidade até os tempos atuais, por diversos processos de negociação de recursos e interesses, por meio do qual foram disseminados intra e inter sociedades o produto do trabalho de cada um, influenciando a forma de vida e consumo. Nesse processo, dados os litígios gerados por discrepâncias e vícios de consentimento, ausência de prestação, dentre outros, foi necessária a criação de normas, pactuadas entre os negociantes ou impostas pelo poder dominante, a fim de estipular os limites e as conseqüências dos tratos negociais entre os entes sociais.
Especialmente relativa à condição de ausência de prestação e o início do conceito de insolvência, nasceu o conceito de falência, como forma de garantir a satisfação das obrigações àqueles que tiveram seus créditos interrompidos pela ausência de patrimônio ou de força de trabalho do devedor. Sua evolução foi diferenciada de outros institutos normativos, passando de ato ilícito a ser tratado por meio de formas punitivas contra o “falido”, com ataque até mesmo à sua vida e sua integridade física, para a execução e dissolução patrimonial de entes jurídicos fictícios (como é definido pelo conceito atual de pessoas jurídicas).
Contudo, como a demanda social é sempre galopante em relação à situação definida nas normas, já se verifica em escala global, impulsionado pela atual democracia capitalista dominante que vem sendo alimentada pelo processo de globalização, os desejos de rompimento dos laços normativos definidos pelo instituto da falência através de pactos firmados entre as partes contratantes. Esse ato, a princípio simples, traz implicações jurídicas fortíssimas e conflitos relativos à natureza das normas em questão, matéria esta que pretende ser abordada pelo presente trabalho.
2. Referencial histórico do Direito Falimentar e seus efeitos no tempo
Antes de iniciar-se o estudo específico dos efeitos da Falência, é de suma importância avaliar a origem e o propósito deste instituto.
Tomando como base um estudo prévio da evolução histórica do instituto, é possível se chegar à conclusão de que a Falência foi criada por um anseio dos credores, que não tiveram suas obrigações cumpridas, a ter estas satisfeitas.
As sociedades, no mundo todo, cada qual regulada pelo seu sistema normativo próprio, passaram por diversas formas de execução legal das dívidas, passando estas tanto da obrigação pessoal e física do devedor até a execução patrimonial. O Código de Hamurábi[1], cuja elaboração calcula-se tenha sido no início do século XVIII a.C., já previa formas de execução de dívidas, baseadas principalmente na Lei de talião.
A execução pessoal, pela entrega de sua própria pessoa ao trabalho escravo, também era uma alternativa que foi, durante muito tempo, prevista na maior parte dos ordenamentos normativos. No direito romano, pela redação da Lei das XII Tábuas, em sua Tábua Terceira, era descrito que havendo o débito, e não sendo este pago ou entregue garantia perante o pretor, poderia o credor levar o devedor preso como escravo, para lhe prestar serviços para o pagamento da dívida; não paga a dívida, seria o devedor vendido como escravo e, não sendo isto possível, poderia ter o devedor novamente tentada sua venda como escravo no exterior ou ser morto, e ter o seu corpo cortado em quantos pedaços quantos fossem os credores, pelos quais assim seria distribuído[2].
O grande marco histórico que trouxe à realidade jurídica a execução exclusivamente patrimonial foi o advento romano da Lex Poetelia Papiria, cuja data de edição diverge a doutrina, entre os séculos V e IV a.C.. Esta lei punia expressamente a morte e a venda dos devedores como escravos, e estabelecia somente a punição patrimonial do devedor como legítima. Posteriormente, em meados do século VIII d.C., foi editada a Lex Julia Bonorum, em que muitos autores consideram como sendo a semente não somente do instituto da Falência como o conhecemos[3], como também da forma primitiva da concordata, em que o devedor poderia manifestar sua livre vontade em, não prejudicando os credores, ceder bens a um curador, para que fossem sanadas suas dívidas[4].
Rapidamente avançando até a Idade Média, verificou-se um período de intenso comércio na Europa, norte da África, Oriente Médio e Ásia. Esta época foi fortemente marcada não somente pelo comércio em terra, cujas vias foram traçadas pelas grandes Cruzadas, como também pelo intenso comércio marítimo do Mediterrâneo; foi ainda nesta época em que se caracterizaram as primeiras atividades bancárias, emissão de títulos de créditos, dentre outras transações hoje comuns. Este período também ficou caracterizado pela mudança de mãos na iniciativa de execução das dívidas, passando da legitimidade dos próprios credores, nas antigas formas de concursum creditorum previstas pelas leis romanas, para uma rígida disciplina estatal. Neste período, a sociedade passou a gerar novos valores em relação ao falido, sendo este taxada de infâmia, caracterizado como fraudador, sendo-lhe inclusive imputadas pelo Estado severas medidas penais[5]. Este foi, inclusive, o período em que nasceu o termo “bancarrota”, em referência ao hábito comum à época, praticado pelos credores contra o devedor, em que estes quebravam a banca do devedor em praça pública como um ato de repúdio.
No Brasil, até o advento do Código Comercial de 1850, vigiam as normatizações portuguesas, baseadas no antigo sistema europeu. Mesmo assim, ainda estava o código carregado de diversas normas de alto conteúdo subjetivo, vinculando a idéia da falência à culpa do falido, como se verificava em seu artigo 800, 4, que caracterizava culpa qualificada do falido quando: “acontecendo que o falido, entre a data do seu último balanço (art. 10 n. 4) e a da falência (art. 806), se achasse devendo por obrigações diretas o dobro do seu cabedal apurado nesse balanço”.
A referida Lei permaneceu vigente, com diversas alterações, até que em 1945, durante o governo Getúlio Vargas foi editado o Decreto-Lei nº 7.661, vigente até a edição de nossa atual Lei de Falências. Esta lei, ainda trazia carga executiva da falência em face do devedor, como um ato especialmente realizado para satisfação da dívida dos credores.
Pelo advento da atual Lei nº 11.101/05, uma nova proposta foi apresentada: a conservação da empresa falida, sendo o instituto da falência uma ferramenta para o afastamento do falido da economia, a fim de não contaminá-la com seus efeitos.
3. Livre iniciativa e intervenção estatal
A liberdade e a livre iniciativa são, com certeza, os parâmetros norteadores da Constituição Federal brasileira. Tal padrão segue ao encontro dos ideais permeados pela Revolução Francesa, carregados em si da cultura liberal iluminista da época, que até hoje segue eficaz e legítimo, observadas as devidas adaptações da sociedade no tempo.
O intervencionismo, por outro lado, trata-se de concepção mais moderna que tem como condão podar os abusos de direito dos particulares até o limite em que se atinja a sociedade. Nisso, a Carta Magna apresenta não de forma expressa, mas implícita nos seus termos e argumentos, a supremacia do interesse público como poder regulador do Estado para garantir o atendimento mínimo e igualitário aos direitos individuais do particular.
São inúmeros os exemplos que podem ser citados aqueles em que o Estado, por meio de seus agentes ou através da figura próprio juiz, intervém nas decisões e no rumo do procedimento falimentar. Especialmente, no tocante ao administrador judicial, conforme se pretende esmiuçar a seguir, ressalta-se o texto dos artigos 115 e seguintes da Lei nº 11.101/05. Estes artigos fazem referência direta dos efeitos da falência sobre as obrigações do falido, e tratam de três pontos importantes, que ficam condicionados ao critério do administrador judicial: (i) a execução ou não contratos bilaterais do falido; (ii) o cumprimento ou não dos contratos unilaterais; e, (iii) devolver ou não coisa móvel comprada pelo devedor falido, por reserva de domínio do devedor. Tais disposições fazem referência plena à livre iniciativa pois, de forma clara, demonstram a limitação estatal por meio da discricionariedade do administrador.
4. O conflito de classificação da falência e as normas dos artigos 77 e 117 e seguintes
a) Classificação: diferenciação entre direito público e direito individual homogêneo
A doutrina, pela forma em que se definiu a redação e as normas gerais da Lei de Falências e Recuperação Judicial em 2005, tem defendido que no processo falimentar, face o relevante impacto causado na coletividade dos credores, há ampla verificação da norma como de direito público. Não pretende este trabalho desmerecer o relevante estudo realizado por este sem número de doutrinadores, contudo, entende-se que tal pensamento não assiste razão.
O direito público tem em si caráter indisponível, e quando tratado em prol da coletividade, é indivisível. Quando determinada medida tem o fim de atender relevante interesse público, que busque cumprir interesse do Estado para si ou em favor de uma coletividade, sua defesa é coercitiva, não podendo, portanto, estar viciada pela condição da vontade do particular. Além disso, em sendo a matéria falimentar de direito público, teria que possuir, como legitimidade ativa, exclusivamente o Estado ou, como no caso da Ação Civil Pública, entidade de direito privado especializada no trato e atendimento de determinado direito público, caso previsto na Lei nº 7.347/85 em seu artigo 5º, inciso V, posteriormente ratificado no Código de Defesa do Consumidor, a legitimidade das associações especializadas.
Contudo, diferentemente do que acima se expõe, a falência tem em si caráter privado, ao que se tem como legítimo para o requerimento da falência o credor ou o conjunto de credores que satisfaçam os requisitos do artigo 94 da Lei 11.101/05; o próprio devedor; o cônjuge, herdeiro ou inventariante do empresário individual ou; cotista ou acionista do devedor; pessoas estas logicamente cujos interesses estão envolvidos na situação da devedora.
Ou seja, o direito que legitima o pedido de falência é direito disponível, e conforme se verifica cada crédito ou fração de interesse de cada parte legitimada, ele se funda em direito divisível e determinável, mesmo que futuramente, pois pela habilitação e pela propositura é possível se definir o exato limite dos direitos de cada uma das partes. Dele se verifica livre manifestação de vontade da parte proponente da ação, que gera efeitos perante terceiros, que ingressam no processo conforme sua condição de co-credores ou interessados, pelos termos dos artigos 46 e seguintes do Código de Processo Civil.
A Falência não descarta a intervenção e participação do Estado para administrar esses interesses. Contudo, o que se pretende aqui concluir é que a Falência deveria ser instituto limitado a simples administração da Lei, da massa e dos seus bens, de forma a ordenar o processo para a execução realizada por particulares, por meio do juiz e do administrador judicial. A representação da coletividade, que somente deveria versar sobre assunto geral, é o que se deveria ter como função do Comitê de Credores. Todo e qualquer conflito, assim visto, que tivesse um embate sobre direito individual simples, que fugisse à questão do fato oponível de forma comum aos créditos não poderia, nesta visão, ser inserido como de atribuição livre desses entes coletivos em decidir.
b) O artigo 77 da Lei e sua função protetiva de direitos, e embates em face do artigo 117
O artigo 77 da Lei de Falências tem definidamente, conforme se pode entender por sua simples leitura, o condão de dar ao credor, mesmo que antes do prazo de vencida a dívida ou sem a existência de cláusula que defina a extinção contratual por determinados meios oponíveis, a possibilidade de, encerrado o contrato, poder se habilitar para o quadro-geral de credores com o valor até então pendente.
Considerando, contudo, o conflito entre os dois direitos, o individual simples da parte contratante e o individual coletivo dos demais credores, há previsão expressa na Norma Falimentar que dá ao administrador judicial, como legítimo representante dos interesses da massa, e ao Comitê de Credores, legítimo em face da coletividade, em executar ou não o contrato bilateral do falido.
O artigo 117 da Lei 11.101/05 define que os contratos bilaterais do falido não se vencem pela falência, cabendo ao administrador judicial, por seu critério, decidir ou não se pretende executar o contrato, determinação esta que depende de ratificação do Comitê de Credores, e tão somente destes.
Esta medida, apesar de seu intuito de proteger a massa e os bens arrecadados, de forma a gerar maior segurança na satisfação dos créditos, acaba por afastar totalmente princípios e direitos essenciais do particular afetado, quais sejam sua livre iniciativa, ampla defesa e contraditório.
Isto porque, como entende a grande massa da doutrina, pela determinação do administrador judicial ratificada pelo Comitê de Credores, fica a contraparte contratante vinculada ao cumprimento das suas obrigações do contrato anteriormente formado com o devedor.
Neste aspecto, não se entende que deva-se descartar a medida imposta, por sua função e conceitos basilares, mas deveria sim tal medida ser relativizada, de forma a considerar os interesses do contratante afetado e a existência de normas contratuais que figurem ato jurídico perfeito.
A decisão do administrador judicial deveria, a fim de ser validada, ser submetida por requerimento ao juiz, em se tratando a ratificação do Comitê de Credores como requisito formal de conhecimento do pedido pelo juiz. Assim, corretamente configurado, dever-se-ia ser aberto prazo à contraparte para se manifestar e apresentar as razões pessoais e coletivas do não cabimento de tal medida. Em prudente e ponderada apreciação, só então, por determinação do magistrado, poderia tal medida revestir-se de validade.
5. Conclusão
A Lei de Falências, como se verificou, trata-se de um dos mais complexos diplomas legais brasileiros da atualidade. Seu caráter multifacetado, carregado de elementos de todos os ramos do Direito, torna sua caracterização mutável conforme o pólo interpretativo doutrinário, o que, absolutamente, impacta nos princípios e normas racionais incidentes.
Contudo, num estudo aprofundado das suas características, é possível se buscar em sua origem toda a essência de norma. Fundada no direito comercial, com suas origens nos normativos mercantilistas, o direito falimentar sempre foi um instituto de Direito Privado e, assim previsto, não pode negar a existência dos elementos basilares das relações privadas, como a livre iniciativa, por exemplo.
Por outro lado, sua função de intervencionismo econômico tem perfeito cabimento, ao passo de que o Estado assumiu para si a função protetiva da economia em geral, através da administração do débito e satisfação dos credores, impedindo os efeitos nocivos trazidos à economia pela extinção da entidade empresarial.
Contudo, o direito falimentar trouxe consigo diversas disposições que geraram conflitos entre esses dois pólos, o Público e o Privado. Com a primazia dos atos da falência nas mãos do administrador judicial e do Comitê dos Credores, órgão considerado representante da pluralidade dos credores, muito foi deixado de lado da vontade do credor individual.
Contrariamente à esta posição, sustentada massivamente tanto pela jurisprudência como pela doutrina, cumpre o resgate da origem da norma, e a consideração da vontade do particular. Para tanto, deve-se assegurar o direito ao contraditório e à ampla defesa, a fim de ampliar os mecanismos de atuação do juiz na lide, que deverá ponderar sobre todos os atos do administrador judicial e do Comitê dos Credores, sempre que estes atos tenham em si caráter de possível lesão a interesse de um indivíduo.
Desta forma também, considerada a vontade do indivíduo contratante, há de se avaliar a possibilidade e a validade das cláusulas contratuais previstas pelo devedor-falido e pelo credor habilitado anterior ao processo falimentar. Não sendo figurada qualquer hipótese de fraude, percebida a boa-fé contratual, principalmente no tocante à preservação do grau de risco ao qual se expõe as partes contratantes, sua validade deve ser reconhecida.
Muito embora controverso, vez que se opõe a toda posição contemporânea sobre o tema, o presente estudo se impõe, a fim de não prestar desguarnecida a posição do indivíduo, bem como buscar uma mais correta definição da relação jurídica falimentar.
Bibliografia
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[1] CULTURA BRASILEIRA. Código de Hamurábi. Disponível em: <http://www.culturabrasil.pro.br/zip/hamurabi.pdf>. Acesso em: 01 mai. 2009.
[2] JOHNSON, Coleman-Norton & Bourne. Ancient Roman Statutes. p. 9-18. AustApud 1961. Apud THE ROMAN LAW LIBRARY. Twelve Tables. Disponível em: <http://webu2.upmf-grenoble.fr/Haiti/Cours/Ak/Anglica/twelve_Johnson.html>. Acesso em: 01 mai. 2009.
[3] ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de Falência e Recuperação de Empresa. 22ª ed. rev. e atual.. p. 5. São Paulo: Saraiva, 2006.
[4] TELLES FILHO, Eduardo Pragmácio de Lavor. Falência : das Civilizações Antigas à Sociedade Pós-Moderna. Fortaleza: 2000. Disponível em: < http://www.uj.com.br/publicacoes/doutrinas/930/FALENCIA__DAS_CIVILIZACOES_ANTIGAS_A_SOCIEDADE_POS-MODERNA>. Acesso em: 01 mai. 2009.
[5] BEZERRA FILHO, Manoel Justino. LEI DE RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS E FALÊNCIAS – COMENTADA. 5ª. ed. rev. atual. e ampl.. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
Estagiário de Direito, Graduando da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TONHEIRO, Túlio Monegatto. A supremacia do direito privado na falência Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 nov 2010, 07:36. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/22184/a-supremacia-do-direito-privado-na-falencia. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: PATRICIA GONZAGA DE SIQUEIRA
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