1- INTRODUÇÃO
Apesar de historicamente a possibilidade da desconsideração da personalidade jurídica como possibilidade da retirada do véu protetor da irresponsabilidade dos bens dos sócios quanto aos débitos da empresa ser empregada há várias décadas no direito norte-americano, no Brasil o primeiro diploma a dispor explicitamente acerca do tema foi o Código de Defesa do Consumidor, ou seja, o instituto é relativamente novo em nosso ordenamento e é por isso que ainda há bastante discussão acerca de sua aplicação e alcance. O presente trabalho tem por função mostrar que, em que pese sua aplicação ainda não estar consolidada sem discussões, o instituto da Desconsideração por ser instrumento hábil a afastar a possibilidade de por meio fraudulento o devedor se valer de prerrogativas para o não pagamento daquilo que é devido ao credor a sua aplicação é de importância incomensurável e esta afirmação se mostra ainda mais válida nos dias atuais onde a constitucionalização do direito civil se mostra evidente e a aplicação dos direitos fundamentais às relações particulares é vislumbrada como um norte a ser seguido principalmente o tão ovacionado Direito da Dignidade da Pessoa Humana. Em razão de a Disregard visar primordialmente a Justiça nas relações entre particulares é que sua aplicação se mostra viável não somente em contratos, mas também no Direito de família e das sucessões. Todavia, como nos dias atuais seu uso é ainda por demais controverso é que se mostra imprescindível o estudo sistemático e aprofundado dessas dissonâncias existentes na doutrina e jurisprudência acerca do tema para que esse instituto de alcances grandiosos possa se tornar cada vez mais instrumento capaz de inibir a fraude a credores sejam eles decorrentes do contrato, direito de família ou das sucessões.
DESENVOLVIMENTO
2 - DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
2.1 - Escorço histórico
Antes de adentrar especificamente no conceito de Desconsideração Inversa necessário se faz presente o estudo prévio da “Desconsideração da personalidade jurídica”, também denominada de “Disregard of legal entity”, “Disregard doctrine”, “desconsideração da entidade legal”, “Levantamento do véu corporativo”, “penetração da pessoa jurídica” ou “superação da personalidade jurídica”.
A doutrina ensina que há 02 (dois) grandes momentos históricos que podem ser considerados os marcos de iniciativa da aplicação da “Disregard Theory”.
O primeiro viés apontado é creditado ao caso Salomon v. Salomon & Co. Ltd., julgado em 1897 pela House of Lords (última instância inglesa) onde um comerciante britânico de couros e calçados fundou uma pessoa jurídica (Empresa), composta em sociedade por ele, sua esposa e seus cinco filhos e que passado algum tempo depois a viu entrar em insolvência e tentou se valer do véu protetor da sociedade constituída para não ter os seus bens pessoais colacionados para o pagamento dos credores quirografários.
“O caso Salomon v. Salomon $ Co. Ltd. Dizia respeito à situação de um comerciante britânico de couros e calçados, Aaron Salomon, que fundou, em 1892, uma pessoa jurídica, a Salomon & Co. Ltd., composta, societariamente, por sua esposa e seus cinco filhos, além dele mesmo. A sociedade foi constituída com um total de 20.007 ações nominais, sendo que cada sócio detinha uma única ação, enquanto as 20.001 ações restantes foram atribuídas pelo próprio Aaron Salomon, das quais foram integralizadas 20.000 ações, com a transferência de um fundo de compercio que ele já possuía, individualmente, para a sociedade. Como o valor do fundo de compercio era superior ao valor das cotas integralizadas, o sócio Aaron Salomon passou a ser credor da Salomon $ Co. Ltd., inclusive dispondo de garantia privilegiada. Com a derrocada da sociedade, vindo a entrar em insolvência e ser dissolvida, o credor privilegiado Aaron Salomon pretendeu fazer valer seu direito em detrimento dos demais credores quirografários. Depois de sucessivas derrotas, na House of Lords, Aaron Salomon conseguiu sair vencedor, servindo o caso, entretanto, como paradigma de novas decisões judiciais, dada a projeção que alcançou.[1]”
O outro caso é o não menos famoso precedente dos Estados Unidos de 1809, no caso envolvendo o Bank os United States e Deveaux, onde Marshall então Juiz da Suprema Corte, para preservar a jurisdição das cortes federais entendeu que a Constituição norte-americana limitava o alcance da jurisdição federal às causas entre “cidadãos de diferentes estados” e que, portanto, substancialmente e essencialmente as partes do processo seriam os acionistas, e que, portanto, seus direitos e deveres como cidadãos reconhecidos poderiam ser alcançados.
2.2 Conceito, fundamentos e aspectos processuais
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica surge então da noção do não absolutismo do Princípio da Autonomia dos bens da empresa e dos sócios, ou seja, os bens da pessoa jurídica não se confundem com os de seus membros. Portanto, de forma sucinta a teoria da desconsideração da personalidade jurídica é a garantia que o Juiz possui para que, no caso concreto, possa despersonificar a sociedade com o fito de obstar o desvirtuamento do uso da personalidade não permitindo que esse véu protetor seja utilizado para encobrir atos ilícitos, abusivos ou fraudulentos de seus membros.
“Mas afinal o que é a doutrina da desconsideração da personalidade jurídica? Qual seu fundamento? A resposta que emerge do próprio teor do art. 28, significa a garantia de permissão do Estado-juis para que, em certos casos, desconsidere a personificação societária, ignorando-a, no sentido de possibilitar que o feixe de responsabilidades, decorrentes das relações de consumo, alcance diretamente aos sócios da empresa fornecedora, fora do manto protetor e ficcional da personalidade jurídica. Assim, o fundamento do instituto não é outro senão o de determinar proteção contra o abuso, ou locupletamento indevido, gerados por maus fornecedores que, sob o véu de uma personalidade societária lançam-se na prática de atos temerários contra o consumidor/hipossuficiente[2]”.
Um ponto de extrema relevância e que não pode ser olvidado é que a Desconsideração da personalidade jurídica não tem o condão de extinguir a sociedade, ou seja, se o Juiz à luz do caso concreto aplicar a “Disregard Doctrine” fazendo com que o sócio responda pela dívida da empresa esse fato não tem o poder de extinguir a sociedade legalmente constituída.
“De qualquer modo, a desconsideração é medida extrema, excepcional, somente admitida episodicamente, quando presentes os requisitos legais e demonstrada a inexistência de patrimônio da pessoa jurídica para garantir seus débitos[3]”.
De maneira ainda mais esclarecedora está o entendimento de Maria Berenice Dias:
“Através da aplicação da disregard não é anulada nem descartada a personalidade jurídica, mas somente desconsiderada, no caso concreto, a eficácia do ato fraudulento perpetrado em nome da pessoa jurídica mas com o objetivo de favorecer em geral a pessoa de um sócio, em detrimento do terceiro. Sem discutir a sua validade, o juiz ignora pura e simplesmente o ato fraudulento executado em comando contrário à lei, mas também intocados todos aqueles outros atos e negócios societários não manchados pela fraude ou pelo abuso de direito[4]”.
Outro ponto de importantíssima relevância é o estudo de quem pode pedir a aplicação da disregard. O atual código civil foi bem esclarecedor nesse quesito atribuindo ao magistrado o poder de aplicar a teoria desde que haja pedido prévio da parte interessada ou do representante do parquet.
“Assim, caracterizado o abuso na utilização da personalidade jurídica, através de desvio de finalidade ou confusão patrimonial (CC, art. 50), permite-se ao magistrado, no caso concreto, a pedido da parte interessada (o lesado pela conduta ilícita praticada) ou do Ministério Público (se participar do processo), desconsiderar a personalidade da empresa, fazendo cessar a sua autonomia patrimonial, tornando possível, via de conseqüência, a penhora de bens particulares dos sócios, submetendo-os à constrição judicial, após certificada a insolvência da pessoa jurídica[5]”.
Contudo, no âmbito do direito do consumidor a possibilidade do magistrado desconsiderar a personalidade jurídica mesmo que não haja provocação da parte interessada ou do Ministério Público é vista de bom grado pelos consumeristas e o fundamento da aplicação da Disregard de ofício é justamente a natureza de ordem pública e de interesse social do Código elaborado para a defesa dos consumidores.
“Questão controvertida é se o juiz poderia desconsiderar a personalidade jurídica das empresas de ofício ou se dependeria de requerimento da parte. Sendo as normas consumeristas consideradas de ordem pública e de interesse social, o juiz, verificando qualquer das hipóteses presentes no art. 28, poderá imputar a responsabilidade diretamente aos sócios, inclusive de ofício, de modo a tutelar os consumidores, considerados vulneráveis nas relações contratuais[6]”
Nesse exato sentido, Leonardo Garcia ainda expõe em sua obra o entendimento do então ministro do Superior Tribunal de Justiça, Carlos Alberto Menezes Direito:
“Nesse sentido, o Ministro do STJ, Carlos Alberto Menezes Direito, no julgamento do Resp 279.273/SP, publicado em 29/03/2004:
“Outra questão é saber se o ato do Juiz depende de pedido da parte. E, a meu juízo, não depende a aplicação do art. 28 de requerimento da parte. Se houver a presença das situações descritas no caput, em detrimento do consumidor, o Juiz poderá fazer incidir o dispositivo, independentemente de requerimento da parte. O que provoca a incidência da desconsideração é a existência de prejuízo para o consumidor. Havendo o prejuízo, está o Juiz autorizado a fazer valer o art. 28.”
Em relação ao alcance subjetivo da decisão do magistrado, a decisão deve ser aplicada unicamente ao sócio ou administrador que de fato tenha utilizado a pessoa jurídica com fins espúrios, pois caso contrário estar-se-ia punindo pessoas que não teriam praticado ato ilícito qualquer.
“Assim, importa saber o alcance subjetivo da desconsideração, se limitado aos sócios e administradores que utilizam a pessoa jurídica de forma abusiva, desviando-a de sua finalidade, ou incorrendo em confusão patrimonial, ou se todos os seus componentes podem responder com seus bens pessoais. A redação do art. 50 paragrado 1, do PL643-b, de 1975, expressamente restringia a responsabilidade quanto aos bens pessoais do administrador ou representante que houver se utilizado da pessoa jurídica de maneira fraudulenta ou abusiva, salvo se norma especial determinar a responsabilidade solidária de todos os membros da administração”.
2.3 A “disregard doctrine” no Brasil
Em sentido técnico, só há aplicação da teoria do levantamento do véu corporativo quando de fato ocorrer manipulação da personalidade da sociedade e no Brasil o primeiro diploma a positivar a doutrina foi o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) em seu artigo 28:
“Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
§ 1° (Vetado).
§ 2° As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.
§ 3° As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.
§ 4° As sociedades coligadas só responderão por culpa.
§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores[7]”.
Não obstante a desconsideração da personalidade jurídica só ter sido positivada com o advento do CDC, bem antes a doutrina já se manifestava no sentido de aplicação da disregard of legal entity e isso se deve pela publicação por Rubens Requião da obra Disregard Doctrine no fim da década de 60.
“A sistematização do tema deve-se aos estudos desenvolvidos por Rolf Serick, em monografia da qual concorreu pela docência da Universidade de Tubingen, na década de 50, divulgada no Brasil pelo Prof. Rubens Requião no trabalho Disregard Doctrine, publicado pela Revista dos Tribunais no ano de 1969. O prof. Serick considera que “a jurisprudência há de enfrentar-se continuamente com os casos extremos em que resulta necessário averiguar quando pode prescindir-se da estrutura formal da pessoa jurídica para que a decisão penetre até o seu próprio substrato e afete especialmente a seus membros[8]”.
Importante já atentar ao disposto no Art.28 §5º da Lei 8.078/90, pois além de expressamente prever a desconsideração, tal parágrafo alargou a aplicação de tal teoria nas relações de consumo para todos os casos onde de alguma forma a autonomia entre pessoa jurídica e físicas que as compõem esteja servindo como óbice ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.
O novo Código Civil também acolheu a desconsideração da personalidade jurídica, entretanto elencou alguns requisitos para que a teoria possa ser aplicada:
“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica[9]”.
2.4 Teorias Maior e menor da desconsideração
A doutrina classificou a possibilidade da desconsideração da personalidade jurídica de acordo com os requisitos necessários previstos nas leis para que o instituto pudesse ser aplicado. De antemão já se pode afirmar que os termos “maior” e “menor” são justamente atinentes aos requisitos previstos para que a disregard possa servir de instrumento ao juiz no caso concreto.
Mais uma vez é válida a explicação dada, respectivamente, pelos membros do parquet Estadual da Bahia e Minas Gerais, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald:
“A teoria maior propugna que somente poderá o juiz, episodicamente, no caso concreto, ignorar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica como forma de combate a fraudes e abusos praticados através dela.
De outra banda, a teoria menor trata como desconsideração da personalidade jurídica toda e qualquer hipótese de comprometimento do patrimônio do sócio por obrigação da empresa. Centra o seu cerne no simples prejuízo do credor para afastar a autonomia patrimonial[10]”.
Nesse diapasão, duas importantes normas se mostram importantes: o Art 50 do Código Civil e o Art. 28 §5º da Lei 8.078/90. Como o Código Civil elencou requisitos específicos (confusão patrimonial ou desvio de finalidade) para que a desconsideração pudesse ser aplicada a ele se mostra pertinente a aplicação da Teoria Maior, todavia como no Art. 28 §5º do CDC não limitou a aplicação do Instituto somente a essas duas hipóteses a ele se atribui a aplicação da teoria menor da desconsideração. Urge ressaltar que o Código de Defesa do Consumidor foi bem mais solícito e condizente para aplicação da disregard que o CC/02 bastando que haja insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações.
Em síntese, quando a lei tiver requisitos específicos para aplicação da desconsideração da personalidade jurídica estaremos diante da Teoria Maior da Desconsideração, caso do Código Civil e da Lei do Cade (Lei n. 8.884/94, art. 18[11]), todavia quando para a lei bastar que a personalidade esteja servindo de obstáculo ao ressarcimento de prejuízo estaremos diante da Teoria Menor, como no Art. 28 §5º da Lei 8.078/90 e art. 4º da Lei 9.605/98[12].
2.4.1 O recurso Especial
De forma elucidativa a Ministra Nancy Andrighi em voto explicou as teorias acerca da disregard doctrine no Brasil:
“A teoria da desconsideração da pessoa jurídica, quanto aos pressupostos de sua incidência, subdivide-se em duas categorias: teoria maior e teoria menor da desconsideração. A teoria maior não pode ser aplicada com a mera demonstração de estar a pessoa jurídica insolvente para o cumprimento de suas obrigações. Exige-se, aqui, para além da prova de insolvência, ou a demonstração de desvio de finalidade, ou a demonstração de confusão patrimonial.
A prova do desvio de finalidade faz incidir a teoria (maior) subjetiva da desconsideração. O desvio de finalidade é caracterizado pelo ato intencional dos sócios em fraudar terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica.
A demonstração da confusão patrimonial, por sua vez, faz incidir a teoria (maior) objetiva da desconsideração. A confusão patrimonial caracteriza-se pela inexistência, no campo dos fatos, de separação patrimonial do patrimônio da pessoa jurídica e do de seus sócios, ou, ainda, dos haveres de diversas pessoas jurídicas.
A teoria maior da desconsideração, por sua vez, parte de premissas distintas da teoria maior: para a incidência da desconsideração com base na teoria menor, basta a prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial”.
Ainda que os doutrinadores do direito consumerista tenham consolidado o entendimento sobre a aplicação da Teoria Menor da desconsideração nos casos pertinentes a verdade é que há um movimento para que a Teoria Maior seja aplicada a todos os ramos do direito, inclusive já há entendimento que a Teoria Menor sequer tenha sido acolhida pelo direito pátrio, pois concretizaria insegurança jurídica e social para sócios investidores, ou seja, mesmo no direito do consumidor o requisito da fraude se faria presente para aplicação da teoria do levantamento do véu protetor.
2.5 Desconsideração Inversa
Com o desenvolvimento da teoria da desconsideração da personalidade jurídica a sua aplicação em outros ramos do direito começou a ser vislumbrada e não diferente aconteceu com o direito de família principalmente no caso de tentativa de fraude com o dinheiro da entidade familiar revertida ao bem da empresa.
Como na disregard doctrine tradicional o juiz episodicamente ao verificar que a empresa está sendo utilizada com o fito de fraudar interesses de terceiros, e, diante dos requisitos previstos na lei determina que o patrimônio particular do sócio ou associado responda perante seus credores a doutrina fez por bem intitular de Desconsideração Inversa justamente a possibilidade de ser utilizado o bem da empresa quando o seu sócio a esteja usando com o escopo fraudulento, ou seja, diante da fraude têm-se duas possibilidades: levantamento do véu protetivo da autonomia dos bens particulares dos sócios com os da empresa sendo que se a obrigação recair sobre o bem particular do empresário estaremos diante Disregard tradicional e caso a obrigação recaia sobre os bens da empresa estaremos diante da Desconsideração Inversa.
De ante todo o exposto, em que pese a Desconsideração Inversa encontrar-se, atualmente, em grande estágio de amadurecimento, nota-se que não há no ordenamento jurídico brasileiro atual legislação específica acerca da Desconsideração Inversa, e, sim, somente entendimento doutrinário e decisões judiciais a favor da aplicação dessa construção doutrinária/jurisprudencial decorrente da “disregard theory”.
2.6 Aplicação da Desconsideração Inversa no Direito de Família
Por vezes, tomado por um espírito de vingança ou por outro sentimento de cunho negativo o cônjuge empresário percebendo que o relacionamento está chegando ao fim inicia procedimentos com o fito de fraudar uma possível partilha de bens futura e é nesse contexto que a disregard passou a ser utilizada no direito das famílias para que tal abuso pudesse ser reparado.
A aplicação da desconsideração da personalidade jurídica justifica-se na evolução da doutrina e jurisprudência acerca de tal teoria que passou a admiti-la em sua forma inversa, ou seja, ao invés da responsabilização perante credores recair sobre os bens dos sócios ela recairá sobre os bens da empresa utilizada para a fraude.
“O código civil prevê expressamente a teoria da desconsideração da pessoa jurídica (cc50), instituto que passou a ser utilizado no direito das famílias, com a finalidade de coibir indevida vantagem patrimonial do consorte empresário em detrimento do outro, por ocasião da dissolução da sociedade conjugal. Não raro, sentindo o cônjuge ou companheiro a falência do casamento ou da união estável, aproveita-se para registrar bens imóveis utilizados pelo par, em nome de empresa da qual participa”.
Em consonância com essa visão que a disregard doctrine é capaz de afastar Fraudes e Injustiças no direito de Família e corroborando o entendimento que tal instituto deve ser aplicado a esse ramo do direito está o entendimento do festejado Inácio Carvalho Neto:
“Em se tratando de separação ou de divórcio, especialmente nas modalidades litigiosas, é comum acontecer de um dos cônjuges se valer de uma pessoa jurídica para subtrair do outro bens que deveriam ser partilhados. Neste caso, é possível a aplicação da disregard of legal entity, de modo a desconsiderar a pessoa jurídica, trazendo de volta à meação os bens que foram dela indevidamente desviados para a pessoa jurídica[13]”.
Com maestria, Rolf Madaleno, prestigiadíssimo doutrinador e defensor da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no direito familiar, explica o porquê da importância da aplicação do instituto nesse ramo do direito:
“É larga e producente sua aplicação no processo famílias, principalmente, frente à diuturna constatação nas disputas matrimoniais, do cônjuge empresário esconder-se sob as vestes da sociedade, para a qual faz despejar, senão todo, ao menos o rol mais significativo dos bens comuns. É situação rotineira verificar nas relações nupciais e de concubinatos que os bens materiais comprados para uso dos esposos ou concubinos, como carros, tlefones, móveis e mormente imóveis, dentre eles a própria alcova nupcial, encontram-se registrados e adquiridos em nome de empresas de que participa um dos consortes ou conviventes[14]”
Por fim, valho-me da transcrição do artigo de Isaura Meira Cartaxo Filgueiras para quem a desconsideração inversa no direito de família pode ser aplicada tanto na fraude ou abuso de direito na partilha de bens como na pensão e prestação alimentícia.
“A desconsideração inversa é utilizada não só no Direito Comercial como também no campo do Direito de Família, estando autorizada quando há a transferência do patrimônio particular do devedor, para assim burlar a obrigação ou dever de alimentar, para o patrimônio da empresa, onde o devedor é sócio. Diante disso, a desconsideração inversa da personalidade jurídica poderá ser aplicada, pos os atos dos sócios serão atribuídos à pessoa jurídica..
Outro exemplo da aplicação da desconsideração inversa e o efetivo alcance dos bens transferidos à sociedade ocorrerá quando se busca a majoração da pensão alimentícia baseada no aumento da fortuna do alimentante e na necessidade do alimentado. Nesse caso, o devedor de alimentos dissimula a sua condição de sócio majoritário da pessoa jurídica e transfere grande parte do capital social para interposta pessoa, para numa revisão de alimentos afirmar que não é sócio majoritário, mas apenas um mero prestador de serviços à sociedade, buscando ao final, o não aumento da pensão alimentícia[15]”.
3- CONCLUSÃO
Após tantas divergências em torno da Desconsideração da Personalidade Jurídica poderia se chegar à conclusão que a sua aplicação poderia se tornar enfraquecida ante a elevada quantidade de dissonâncias existentes na doutrina e jurisprudência, mas essa seria uma idéia precitada.
O Instituto da “disregard doctrine” é tão importante que está cada vez mais sendo empregado em outros ramos do direito. Especificamente no direito de família, apesar de sua aplicação necessitar de construção doutrinária e por isso se chamar Desconsideração Inversa sua aplicação se mostra de grande valia, haja vista estar sendo aplicado com o escopo de acabar com injustiças nas relações familiares.
Se antes o cônjuge empresário ao perceber que iria se separar depositava todos os bens do casal em sua empresa fazendo com que sobrasse pouco ou quase nada para o outro consorte burlando assim a partilha de bens, hoje com a aplicação da Desconsideração Inversa tal tentativa de fraude pode ser afastada no caso concreto.
A garantia do véu protetor da separação dos bens da sociedade e do sócio já não é mais vista como algo intangível e nem poderia sê-lo, pois não há que se falar, diante da fraude, em absolutividade da autonomia dos bens do sócio e de sua empresa.
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[1] DE FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil Teoria Geral. 5º ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006. p. 279.
[2] DE MATTTOS, Francisco José Soller; Disregard of legal entity no Código de Defesa do Consumidor. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 46, out. 2000. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=599. Acesso em: 20 de maio de 2008.
[3] DE FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil Teoria Geral. 5º ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006. p. 286.
[4] DIAS, Maria Berenice; Manual de Direito das Famílias. 3º ed. Porto Alegre: Revista dos Tribunais Ltda, 2006. p. 282-283.
[5] DE FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil Teoria Geral. 5º ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006. p. 280.
[6] GARCIA, Leonardo de Medeiros. Direito do Consumidor Código Comentado e Jurisprudência. 4a. ed., Niterói: Impetus, 2008. p. 183.
[7] BRASIL. . Lei 8078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília,12 de setembro de 1990.
[8] GRINOVER, Ada Pellegrini [et al.]. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos autores do anteprojeto. 5º ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. p. 190-191.
[9] BRASIL. . Lei 10406, de 10 de Janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília,12 de setembro de 1990.
[10] DE FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil Teoria Geral. 5º ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006. p. 281.
[11] BRASIL. Lei 8.884, de 11 de Junho de 2004 Transforma o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) em Autarquia, dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica e dá outras providências, Brasília, 11 de Junho de 2004.
[12] BRASIL. Lei 9.605, de 12 de Fevereiro de 2008. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências, Brasília, 13 de Fevereiro de 2008.
[13] CARVALHO NETO, Inácio. Separação e divórcio: Teoria e prática. 8º ed. Curitiba: Juruá, 2007. p. 501.
[14] MADALENO, Rolf. Direito de família: aspectos polêmicos. p. 28
[15] FILGUEIRAS, Isaura Meira Cartaxo. Desconsideração Inversa da Personalidade Jurídica. Via Jus. Disponível em: http://www.viajus.com.br/viaju.php?pagina=artigos&id=945. Acesso em 03 de Junho de 2008.
Graduação em Direito pelo Centro Universitário Vila Velha. Pós-Graduado em Direito Ambiental pela Universidade Candido Mendes. Especialista em Ministério Público e Defesa da Jurisdição. <br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DIAS, Flavio Campos. Desconsideração inversa no direito de família Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 dez 2010, 08:28. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/22369/desconsideracao-inversa-no-direito-de-familia. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Maria Laura de Sousa Silva
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Por: Marcele Tavares Mathias Lopes Nogueira
Por: Jaqueline Lopes Ribeiro
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