RESUMO: O presente artigo vem ilustrar a importância da responsabilidade civil do fiduciário por perecimento da coisa fideicomitida em consequência de uma administração irregular, para tanto, faz-se uma análise do instituto denominado substituição fideicomissária, abordando o seu contexto histórico, bem como suas características, visando alcançar o objetivo primordial, qual seja, entender a obrigação do fiduciário perante a administração do bem que recebeu em fideicomisso.
PALAVRAS-CHAVE: responsabilidade; substituição fideicomissária; fiduciário, herança, legado.
INTRODUÇÃO
O direito das sucessões disciplina a transmissão do patrimônio, ativo e passivo, do de cujus aos seus sucessores. Considerando a fonte da sucessão, pode-se classificá-la em legítima ou testamentária, com previsão no artigo 1.829 do Código Civil vigente. A primeira quando a sucessão decorre de lei e a segunda quando decorrente de ato de última vontade, ou seja, de testamento, devendo, neste caso, respeitar a legítima dos herdeiros necessários.
Tratando-se de sucessão testamentária, a lei autoriza o testador a nomear substitutos, prevendo a hipótese de as pessoas beneficiadas, herdeiros ou legatários, não aceitarem ou não puderem aceitar a herança ou legado, ou, com o intuito de apenas permitir que, ao momento de sua morte, seus bens se transmitam a um primeiro beneficiário, para depois, passar para um substituto que ao momento de sua morte ainda não foi concebido.
No direito romano existiam várias espécies de substituições, no entanto, no direito pátrio concebem-se apenas duas espécies de substituições, quais sejam, a vulgar, que subdivide em simples, coletiva e recíproca, chama-se de simples quando é designado apenas um substituto para um ou muitos herdeiros; coletiva quando há mais de um substituto; e recíproca para os casos em que são nomeados dois ou mais beneficiários, estabelecendo o testador que reciprocamente se substituam, e a fideicomissária, objeto do presente artigo, esta pode ser compendiosa quando combinada com a vulgar.
1. A SUBSTITUIÇÃO FIDEICOMISSÁRIA
O Código Civil prevê em seu artigo 1.951 a substituição fideicomissária, que é a possibilidade de deixar um herdeiro e um substituto para o primeiro. No referido instituto, o herdeiro ou legatário, chamado de fiduciário, tem a obrigação de, há certo tempo, transmitir a herança ou legado a terceira pessoa, denominada fideicomissário, pessoa esta ainda não concebida ao tempo da morte do testador.
Desse modo, observa-se que no fideicomisso há dois beneficiários: o fiduciário por um tempo, e depois o fideicomissário. O fiduciário tem a propriedade, mas apenas resolúvel, ou seja, sua propriedade se extingue se quando o advier o direito do substituto. A pessoa que institui o fideicomisso é denominada fideicomitente.
Nesse sentido, vale frisar a nobre contribuição do jurista e professor Paulo Nader:
Substituição fideicomissária ou simplesmente fideicomisso, nos termos do ordenamento jurídico pátrio, é modalidade especial de substituição pela qual o testador (fideicomitente), após nomear sucessor em primeiro grau (fiduciário), designa o substituto (fideicomissário), pessoa ainda não concebida na abertura da sucessão, que recolherá a herança ou legado com a morte do fiduciário, em certo prazo ou sob condição. (NADER, 2009, p. 369)
Assim, verifica-se que o fideicomisso é um recurso legal para atender a vontade do testador que quer beneficiar pessoa inexistente ao tempo da abertura da sucessão. O testador confia o bem ao fiduciário, acreditando que este vai cuidar do mesmo e transferi-lo, oportunamente, ao nascituro.
A doutrina explicita que o fideicomisso pode ser modal, quando se submete a condição, ou a termo, quando se determina prazo certo. (DINIZ, 2009, p 602). Assim sendo, pode ocorrer em três hipóteses, quais sejam, por morte do fiduciário, verificado certo tempo (fideicomisso a termo) ou verificada certa condição (fideicomisso modal). Poderá, ainda, ser instituído a titulo universal, quando se referir à totalidade da herança ou quota-parte do espólio. Será este, particular, quando se referir a bens individualizados do acervo hereditário.
É cediço que a substituição fideicomissária é sucessiva, uma vez que os titulares gozam de coisa legada ou herdada em momentos distintos, ou seja, um após o outro, o fiduciário que recebe o bem em confiança, permanecerá na posse até que o transcurso do prazo, o implemento de certa obrigação ou sua morte se verifique, para que, então, esse bem seja transferido, definitivamente, ao seu real titular, o fideicomissário.
Importante lembrar que o instituto em epígrafe não pode ser confundido com o usufruto, pois se sabe que neste os titulares gozam da coisa legada ou herdada simultaneamente, ou seja, um beneficiário recebe a nua-propriedade, enquanto o outro recebe o usufruto, coexistindo ambos ao mesmo tempo.
O fideicomisso se assemelha, mas, também é diferente da disposição em favor de prole eventual, prevista no artigo 1.799, I do Código Civil, isto porque o fiduciário difere do curador disposto no artigo 1.800 do Código citado alhures, pois este só administra, enquanto o fiduciário pode se tornar proprietário pleno se o fideicomissário não vier a nascer.
Vale frisar que o legislador proibiu o fideicomisso além do segundo grau, considerando nulo um fideicomisso para o fideicomissário, conforme preceitua o artigo 1.959 do Código Civil de 2002.
Interessa ressaltar que se o fideicomissário renunciar à herança, a propriedade do fiduciário se torna plena, artigo 1.955 do Código supracitado. Por outro lado, se é o fiduciário que renuncia à herança, aplica-se, até o advento do fideicomissário, o art. 1.800 da legislação pátria, ou seja, o juiz nomeará um curador.
Por outro lado, se o fiduciário vender o bem a terceiros, o negócio será desfeito quando o fideicomissário nascer, uma vez que o fiduciário tem a propriedade apenas restrita e resolúvel, a não ser o fiduciário tenha adquirido outro bem de cunho patrimonial igual ao do bem deixado em fideicomisso e o testador tenha permitido a alienação. Por isso, é salutar, antes de comprar uma casa, verificar o registro do mesmo no Cartório de Imóveis para saber se o mesmo foi gravado com cláusula de inalienabilidade.
2. CONTEXTO HISTÓRICO DO FIDEICOMISSO
Sabe-se que o instituto em epígrafe surgiu em Roma e, inicialmente, não possuía validade jurídica, levando-se em conta que se resumia apenas em um simples pedido formulado pelo autor ao sucessor legítimo ou testamentário (fiduciário) para fazer chegar determinada coisa ao poder de outrem (fideicomissário). “O fideicomisso não criava para o fiduciário uma obrigação, pois o encargo se fundava apenas na fides, ou seja, no plano da consciência, lealdade e boa-fé”. (NADER, 2009, p. 373).
Observava-se no Direito Romano, que o testador servia-se do fideicomisso para deixar a herança a alguém de sua confiança, que, depois de certo tempo, deveria passar a mesma ao destinatário final, uma pessoa proibida de receber a herança, como um prisioneiro ou exilado.
Durante o feudalismo, o instituto em epígrafe foi muito utilizado para a conservação do patrimônio familiar, o qual era transmitido de geração em geração. Era através do fiduciário que o testador fazia com que a herança chegasse ao destinatário final, o qual, por outro modo, estava impedido de recebê-lo.
Consta que tal instituto, inicialmente, foi concebido como uma maneira de fraudar impedimentos legais, e, posteriormente, era utilizado para servir a aristocracia. Diante das inconveniências e mau uso do fideicomisso, bem como com as inspirações da Revolução Francesa do século XIX, o fideicomisso chegou a ser proibido.
Hodiernamente, o fideicomisso é permitido pela legislação brasileira, encontrando arrimo nos artigos 1951 e seguintes do Código Civil vigente, bem como pela legislação portuguesa. . Apesar de a Revolução Francesa ter condenado o instituto, o Código Civil Francês o permite, porém estabelecem restrições, o mesmo ocorre com o Código Civil Italiano.
3. RESPONSABILIDADE CIVIL DO FIDUCIÁRIO PELO PERECIMENTO DO BEM
Sabe-se que existem elementos essenciais à caracterização da substituição fideicomissária, a saber: a) dupla vocação: o testador beneficia duas pessoas com o mesmo bem, porém em momentos distintos; b) ordem sucessiva: só se chama um beneficiário quando termina o prazo do outro; o fideicomissário é herdeiro do fideicomitente, porém recebe o bem do fiduciário; c) ônus de conservar para restituir: o instituto se baseia na fé/confiança do fideicomitente no fiduciário que entregará oportunamente a coisa em bom estado ao fideicomissário. Faltando um desses elementos, não se caracteriza a substituição fideicomissária. Nesse mesmo sentido, tem julgado o Tribunal de Justiça de Minas Gerais:
AGRAVO- COMARCA DE SÃO LOURENÇO ACÓRDÃO EMENTA: DIREITO DAS SUCESSÕES. TESTAMENTO. SUBSTITUIÇÃO FIDEICOMISSÁRIA. REQUISITOS CONFIGURADORES. ÔNUS DE CONSERVAR. AFIGURA-SE INEXISTENTE A SUBSTITUIÇÃO FIDEICOMISSÁRIA, EM QUE AUSENTE UM DOS SEUS REQUISITOS CONFIGURADORES, QUAL SEJA, O ÔNUS IMPOSTO AO HERDEIRO FIDUCIÁRIO DE CONSERVAR O PATRIMÔNIO PARA RESTITUÍ-LO AO HERDEIRO FIDEICOMISSÁRIO. Descaracterizado o fideicomisso, os supostos herdeiros fideicomissários devem ser excluídos da sucessão do suposto herdeiro fiduciário. Agravo provido. O douto Magistrado prolator da decisão agravada de f. 23, TJ, considerou que a referida cláusula testamentária instituiu a substituição fideicomissária, sob o fundamento de que a ausência do nomen juris fideicomisso no referido testamento não impede a sua configuração. Sustentam os agravantes a inexistência de fideicomisso, em razão da ausência de um dos requisitos caracterizadores do instituto, a saber, a obrigação de o herdeiro fiduciário conservar a herança para transmiti-la aos herdeiros fideicomissários. Aduzem que a inobservância de quaisquer dos elementos constitutivos do fideicomisso o desconfiguram. Portanto, afigura-se inexistente a substituição fideicomissária, em que ausente um dos seus requisitos configuradores, qual seja, o ônus imposto ao herdeiro fiduciário de conservar o patrimônio para restituí-lo ao herdeiro fideicomissário. (AGRAVO Nº 000.169.492-6/00 TJ-MG)
Outrossim, para proteger o direito do fideicomissário, que é instituído sob a condição suspensiva, presa-se pela presença de todos os requisitos, inclusive o do ônus de conservar o bem por parte do fiduciário.
Deste modo, torna-se evidente a responsabilidade do fiduciário no cumprimento do mister de zelar pela propriedade haurida, para que esta oportunamente se transmita ao fideicomissário. A obrigação fundamental do fiduciário consiste em conservar e restituir a titularidade de todos os direitos compreendidos na sua posição jurídica.
O parágrafo único do artigo 1953 do Código Civil reza que “o fiduciário é obrigado a proceder ao inventário dos bens gravados, e prestar caução de restituí-los se o exigir o fideicomissário” (Lei 10.406/202). Tal previsão existe, justamente, com o fito de conservar a coisa que será entregue ao fideicomissário. Portanto, a boa guarda e conservação dos bens ou do bem é dever do fiduciário, que deverá prover o adimplemento dos gastos resultantes da coisa, como o pagamento de impostos e taxas.
Assim, resulta a responsabilidade civil do fiduciário pelas deteriorações sofridas pela coisa decorrentes de sua culpa ou dolo.
A responsabilidade civil está ligada a idéia de que todo ser humano é responsável pelos fatos decorrentes de sua conduta, assim, aquele que causa prejuízo a outra pessoa ou a um bem pertencente a esta, tem a obrigação de repará-la na proporção do dano sofrido, tal previsão tem fulcro no artigo 186 do atual Código Civil.
No caso do fiduciário, presume-se que este, apesar de primeiro beneficiário da substituição fideicomissária, cuide do bem deixado em sua confiança, visando o direito eventual do segundo beneficiário. Visando assegurar este último, o legislador permitiu ao fideicomissário ajuizar medidas cautelares, de conservação dos bens, mesmo antes de verificada a substituição. Nesse caso, assume a condição de titular de direito eventual, desfrutando apenas de uma expectativa de direito. A previsão para tanto, encontra arrimo no artigo 130 do então Código Civil.
Destarte, é pacífico o entendimento sobre o dever de indenizar do fiduciário, na circunstância de perecimento do bem fideicomitido, tendo o Supremo Tribunal de Justiça proferido decisão nesse sentido:
RECURSO ESPECIAL. FIDEICOMISSO. ALEGAÇÃO DE PERECIMENTO DO OBJETO. AÇÃO REPARATORIADE DANOS AJUIZADA PELO FIDEICOMISSARIO CONTRA O FIDUCIARIO DESDE LOGO. EMENTA: na hipótese de culpa do fiduciário pelo perecimento dos bens objetos do fideicomisso, é permitido ao fideicomissário intentar desde logo a ação reparatória de danos contra o mesmo, independentemente do implemento da condição suspensiva imposta pelo fideicomitente. Recurso Especial não conhecido. Acórdão por unanimidade, não conhecer do recurso. (REsp.21150-8 STJ).
Verifica-se, portanto, que o direito de propriedade do fiduciário em relação ao bem objeto do fideicomisso é restrito, diferentemente do direito de propriedade normalmente concedido ao indivíduo. Pois se o mesmo abusar de seu poder, ensejando numa danificação do bem, ou, não vigiar o bem evitando o perecimento do mesmo por terceiros, será responsabilizado civilmente.
4. CONCLUSÃO
A substituição fideicomissária, também chamada de fideicomisso, caracteriza-se como modalidade especial de substituição, através da qual o testador (fideicomitente), após nomear sucessor em primeiro grau (fiduciário), estabelece o substituto (fideicomissário), indivíduo ainda não concebido no momento da abertura da sucessão, a este caberá receber a herança ou legado em virtude da morte do fiduciário, em certo prazo, ou ainda sob determinada condição.
Entre os caracteres do fideicomisso se encontra o dever do fiduciário de conservar o objeto, levando-se em conta o caráter resolúvel da propriedade. No entanto, tal mister não o impede de usá-la ou fruí-la discricionariamente, podendo, inclusive, aliená-la, se não houver cláusula de inalienabilidade. Porém, nota-se que o dever de conservação é mais amplo que o direito de dispor do bem, incluindo tanto a manutenção física, como as medidas judiciais necessárias à conservação do objeto.
Ao fiduciário, é salutar entender que sua obrigação para com a conservação do bem é mais ampla que seus direitos de gozo do mesmo, pois durante o tempo em que o bem estiver com o mesmo, não poderá haver o perecimento por sua culpa ou dolo, sob pena de ser responsabilizado civilmente, sendo esta uma maneira de instigar o fiduciário a ter um maior cuidado com o bem que ficou sob sua guarda.
REFERÊNCIAS
BARROS, Washington de. Curso de Direito Civil. Vol.6, 1 Ed.Saraiva
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 24 ed. reformulada. São Paulo: Saraiva, 2009.
GOMES, Orlando. Sucessões. 14 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
HIRONAKA, Giselda M. F. Novaes. Responsabilidade Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
NADER, Paulo. Curso de Direito Civil: direito das sucessões. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
SANTOS, José Wilson dos. Manual de Trabalhos Acadêmicos. Aracaju: Sercore, 2007.
TOMÁS, Patrícia M. S. Código Civil Comentado. 8 ed. São Paulo: Manole, 2009.
VENOSA. Silvio de Salvo. Direito das Sucessões. 10 ed. São Paulo: Atlas, 2010.
Funcionária Pública. Bacharelanda do Curso de Direito da Faculdade AGES (Paripiranga-BA).<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ROLINO, Maria Aparecida Santos. A responsabilidade civil do fiduciário por perecimento do bem na substituição fideicomissária Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 set 2011, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/25605/a-responsabilidade-civil-do-fiduciario-por-perecimento-do-bem-na-substituicao-fideicomissaria. Acesso em: 22 nov 2024.
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