Sumário: 1.Introdução 2.Soluções não-judicias e sua adequação social 3.A juridicidade excessiva 4.A desjuridicização e a sua aplicabilidade 5.Conclusão 6.Referências bibliográficas
Resumo
A desjuridicização como alternativa para solução de conflitos perpassa pela mudança na essência da sociedade capitalista. A Arbitragem, apesar de não apresentar uma formatação totalmente não-judicial, se oferece como alternativa ainda não recebida de braços abertos pela sociedade brasileira. Não existe uma consciência social imbuída em resolver os conflitos de maneira não litigiosa, pelo contrário, o individualismo nos impele a auto-preservação e ao egoísmo.
Abstract
The non jurisdiction as an alternative to conflict resolution embraced by the change in the essence of capitalist society. Arbitration, although not present a completely non-judicial format, is offered as an alternative has not welcomed with open arms by Brazilian society. There is imbued with a social conscience to resolve conflicts in a manner not in dispute, however, individualism leads us to self-preservation and selfishness.
Palavra Chave – desjuridicização – arbitragem – sociedade brasileira
Keyword – non jurisdiction - arbitration - Brazilian society.
Área do direito – Mediação e Arbitragem de Conflitos
1.Introdução
Os homens (e mulheres) reunidos e organizados em sociedade produzem de suas ações e omissões resultados que afetam direta ou indiretamente uns aos outros. Essa afetação mútua pode gerar conflitos que são enfrentados de maneira diferente por cada grupo social. As formas de solução de disputas e as sanções culturalmente toleradas e aplicadas expressam os ideais que seus indivíduos defendem, suas percepções sobre si mesmos e a qualidade de seus relacionamentos com o semelhante. A forma de solução de conflitos confunde-se com a maneira de preservação da sociedade.
No Brasil, as relações sociais estão permeadas de princípios arraigados pela cultura capitalista. Uma sociedade individualista e competitiva, de pessoas desconhecidas, que buscam deliberadamente, firmadas em suas diferentes noções de ética, a saciedade de seu desejo de consumo e poder. É nesse ambiente, tantas vezes hostil, que o Direito[1], com sua estrutura de segurança, oferece proteção institucionalizada aos direitos individuais. Nesse contexto, o litígio judicial é a arma pronta para eliminar qualquer prejuízo pessoal e apontada para todas as direções.
A possibilidade de solução de conflitos sem o auxílio das normas jurídicas em uma sociedade instável é um desafio temerário. Por isso, é importante compreender em quais cenários sociais, ou até em quais níveis de conflitos esses métodos “não judiciais” podem ser utilizados. Para isso é fundamental sopesar de maneira pragmática, mas não definitiva, as vantagens da aplicação desses mecanismos. A Arbitragem é um exemplo de um instituto jurídico em que as partes conduzem a solução do conflito a mercê do Estado Juiz. Nele os sujeitos de uma relação jurídica, contratual ou extracontratual, convencionam escolher um juiz privado para por fim a um conflito decorrente de uma relação jurídica. Ainda assim, a forte atuação do Direito regulamenta esse fenômeno que deveria emanar naturalmente da sociedade, no caso do Brasil através da Lei 9.307/96.
Haja vista os argumentos apresentados, este artigo pretende discutir, de maneira genérica e sem um compromisso teórico específico, a compatibilidade dos métodos não judiciais com a realidade dinâmica da sociedade, em especial a brasileira. Observando os limites dessa utilização, e a busca da efetividade de sua aplicação. Para tanto, analisaremos a solução de conflitos não-judiciais e sua intrínseca relação com a essência da sociedade. Em seguida, discutiremos a hiper legalidade que atinge a sociedade brasileira resultado da influência da cultura capitalista. Seguindo-se, e com o referencial exposto ao longo do trabalho, as considerações sobre a adequação da desjuridicização a realidade social brasileira.
2. Soluções não-judicias e sua adequação social
Em uma sociedade legalista e litigiosa como a brasileira realizar justiça sem o auxílio de normas jurídicas estatais é um desafio. A lei, que tem como principal estandarte a Constituição de 1988, afastou dos brasileiros o medo e a insegurança dos governos militares. Esse estado democrático de direito protege individualmente uma sociedade, que sofreu durante anos, silenciada pelas armas e desamparada em tribunais viciados. Um povo ressabiado, incapaz de confiar, que enxerga em qualquer conflito a chance de perder novamente a sua liberdade.
No entanto, não foi sempre assim. Historicamente, a arbitragem e a mediação foram as alternativas para a resolução dos conflitos originados das disputas pessoais. Elas expressaram uma ideologia de justiça comunitária sem a lei formal, um processo eqüitativo baseado na reciprocidade e na confiança entre os membros da comunidade.
As alternativas ao Direito surgiram com as formas nativas de auto-governo. Elas usavam processos que compartilhavam um compromisso com a essência da vida em comunidade – reciprocidade, responsabilidade e confiança.
A crença religiosa apoiada na tradição, na autoridade, porém na visão mística da realidade, difere do Direito apoiado na razão. Esse código moral, reforçado por um sentido de propósito divino característico do cristianismo gerava um forte anseio por uma sociedade harmônica. Enquanto a religião permaneceu como fonte de sabedoria moral, advogados e tribunais foram preteridos.
As soluções não-judiciais de resolução de disputas a séculos vêm sendo utilizada na seara do direito comercial. Os empresários focados em maximizar lucros e tempo rejeitam a Justiça estatal cada vez mais cara e morosa. Os costumes largamente difundidos nos meios comerciais favorecem o desenvolvimento de um mecanismo de arbitragem comercial.
Os grupos étnicos imigrantes encontram nas formas alternativas de solução de conflitos uma maneira de preservar sua cultura e blindar-se do preconceito. São mais um exemplo histórico-social de aplicação natural e efetiva da mediação de conflitos. Natural, pois emana de seu pacto social e efetiva, porque é garantida por esse elo de costumes e auto-preservação.
Em todos os exemplos de grupos que priorizam as formas não-judiciais percebe-se a preocupação de preservação dos relacionamentos. Estas são comunidades concisas, com objetivos semelhantes, que não esperam da solução do conflito a produção de um vencedor e um perdedor.
3. A juridicidade Excessiva
A Lei parece ser a solução para todos os problemas, capaz de regular cada ação e reação humana, em sua pretensiosa suposição de ser mais dinâmica do que a infinidade de possibilidades das relações intersubjetivas. Desde a produção de uma Constituição extensiva, até a atividade legislativa intensa e muitas vezes até absurda e sem propósito, tantas normas foram produzidas no Brasil que algumas já perderam a muito tempo sua efetividade. As leis têm proliferado de maneira tão rápida que se pode sugerir que a sociedade brasileira está sendo asfixiada por uma “poluição jurídica”[2]; que os brasileiros, como um povo, estão debilitados pela doença da “hiper-legalidade”.
Os advogados preocupados com a manutenção de seu status quo, através de uma linguagem jurídica inacessível, distanciam o direito ainda mais da comunidade. As tentativas de universalizar o acesso a justiça através de juizados que dispensam a presença do advogado acabam esbarrando nos obstáculos da falta de informação e educação.
No entanto, a responsabilidade dessa dependência da legalidade não é um julgo carregado pelo advogado, mas o resultado de uma sociedade de estranhos. Em sociedades tradicionais, os papéis são predefinidos, relacionamentos estáveis são desenvolvidos, a responsabilidade mútua é encorajada e o respeito pela autoridade, necessário. Nas sociedades contemporâneas o individualismo significa liberdade, no máximo as pessoas concordam sobre o modo como irão discordar. À medida que esses direitos são assegurados e que o império da lei aglutina a sociedade, o espírito litigioso aumenta a fragmentação social.
A cultura jurídica é resultado de uma reação ao a autoridade ilimitada de um governo teocrático, déspota ou militar, representando a evolução da civilização ocidental. Esses governos foram substituídos pela administração da elite jurídica que concedeu racionalidade, previsibilidade, consistência e impessoalidade ao convívio social. Todavia, o conceito de justiça perde a claridade que possuía no contesto comunitário. Justiça torna-se uma transigência que ofenda o mínimo possível a maioria das pessoas. Os tribunais tornam-se cada vez mais preocupados com o procedimento do que com os processados. Distantes da possibilidade de discutir soluções para suas disputas, aos indivíduos resta tornar-se litigantes. O Direito concede proteção as agressões individuais, mas ao mesmo tempo estimula que aconteçam, elevando a cobiça individual sobre as necessidades mútuas. “Quanto melhor a sociedade, menos leis ela terá. No céu, não haverá qualquer lei. (...) No inferno, somente haverá a lei, e o devido processo legal será meticulosamente observado”[3]
4. A desjuridicização e a sua aplicabilidade
A desjuridicização é mais influenciada pelo Direito do que parece a princípio ser. A influência dos processos jurídicos no cotidiano é tão forte que as alternativas não-judiciais de solução de conflitos acabam sem identidade. Conduzidas por advogados, dependentes da técnica jurídica e reguladas por leis, acabam sendo uma verdadeira deturpação da sua essência, restando completamente juridicizados. Apesar disso, elas existem podendo sua efetividade ser analisada.
A mediação de conflitos, em especial a Arbitragem, surgiu muito antes da própria jurisdição estatal. Durante os séculos sua aplicação foi mais ou menos utilizada dependendo dos costumes sociais. Porém o que nos interessa é sua aplicação atual na realidade brasileira. A arbitragem no Brasil foi gerada sobre quatro pilares: segurança jurídica, difusão cultural, conscientização dos advogados e manutenção de regras flexíveis.[4] A segurança jurídica demonstra uma preocupação característica do Direito Estatal, não condizente com a origem da mediação. A difusão cultural é um processo que naturalmente deveria ser anterior e gerador do fenômeno, demonstrando a artificialidade do processo. Os advogados e sua figura protagonista no processo mantêm seu status quo. Regras flexíveis é um sinal da liberdade de negociar e compor o conflito, mas antes de qualquer coisa são limitadoras. Mais uma vez as alternativas de composição demonstram estar longe do ideal de emanar de valores produzidos na sociedade.
A arbitragem é uma alternativa interessante, mas deve ser aplicada com muita cautela. Pelo menos em dois ramos do direito a Arbitragem deve ter sua utilização restringida.
A primeira atenção dispensada deve ser nas questões originadas das relações individuais de trabalho. Regido pelo princípio protetivo, que objetiva reequilibrar as relações entre trabalhador – hipossuficiente – e empregador, e pelo princípio da irrenunciabilidade das leis trabalhistas conseqüência do primeiro princípio, o direito do trabalho preserva direitos indisponíveis ao trabalhador. Sendo assim, a impossibilidade da cláusula arbitral fica patente, pois o empregado não pode escolher não ser julgado por tribunal com competência definida em lei trabalhista.
O segundo ponto de tensão está nas relações de consumo, em especial nos contratos de adesão. Nesse caso específico o cuidado especial paira sobre a presença da cláusula arbitral no contrato e a ciência indubitável do aderente quanto a solução de conflito em tribunal arbitral.
Logo, a desjuridicização das forma alternativas de solução de conflitos é limitada e a sua aplicabilidade não é absoluta.
5. Conclusão
É ilusão acreditar que a mediação ou a arbitragem podem alcançar o que o Direito não conseguiu. O descrédito no sistema jurídico estatal aflora um desejo por alternativas. No entanto se a sociedade não comunga com os valores condizentes com esses modelos não-judicias, a saber, a confiança, a harmonia e a reciprocidade, eles terminam por não encontrar efetividade na realidade dessa comunidade. De fato, esses não são os valores que a sociedade brasileira encoraja ou sustenta.
Saímos da justiça comunitária sem o Direito formal, passamos pelo trauma da justiça dos opressores, chegamos ao estado de direito, muitas vezes sem justiça alguma. Porém, injustiça sem Direito é uma possibilidade ainda pior, a qual um entusiasmo mal orientado por formas alternativas de resolução de disputas parece agora querer encorajar.
Mediar e solucionar conflitos com a Arbitragem ou qualquer outro mecanismo não-judicial é possível desde que haja congruência entre os indivíduos e sua comunidade, com respeito comum aos mesmos valores, tornando possível o mínimo de justiça.
6. Referências Bibliograficas
TAESP – Arbitragem e Mediação, apostila de curso. 2005.
AUERBACH Jerold S. - Justice without Law? A Oxford University Press
CARMONA, Carlos Alberto. A arbitragem no Brasil no terceiro ano de vigência da Lei n.
9.307/96. In: PUCC, Adriana Noemi (org.), Aspectos atuais da arbitragem.
LEMES, Selma Ferreira. O uso da Arbitragem nas Relações Trabalhistas. Disponível na
internet: http://www.mundojuridico.adv.br. Acesso em 27 de janeiro de 2004.
LEMES, Selma Ferreira. Arbitragem e Direito do Consumo. Palestra proferida no II Congresso do Comitê Brasileiro de Arbitragem - CBAR, Florianópolis, 22 a 24 de 09.2002.
Nota 1
Professora Orientadora – Hilda Ledoux Vargas - Bacharel em Direito (UCSal), especialista em Administração e Direito (UNESA) e Mestre em Desenvolvimento Sustentável (UnB).
[1] O termo “Direito”, neste artigo, refere-se tão-somente ao direito estatal, produzido por normas legais.
[2] EHRLICH, Thomas, “Legal Pollution”, New York Times Magazine (8 de fevereiro de 1976), p.17; MANNING, Bayliss, “Hyperlexis:
Our National Disease”, Northwestern L.R. n. 71 (1977), pp. 767-782.
[3] Citado em BUBER, Martin, Paths in Utopia (New York, 1950), p.76.
[4] LEMES, Selma Ferreira, Palestra inaugural proferida no Seminário “8 Anos da Lei n° 9.307/96 – O Cenário Atual da Arbitragem no Brasil “, promovida
pelo Centro de Arbitragem da Câmara Americana – AMCHAM em 24.05.2004, São Paulo.
Graduando em direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DANILO ROCHA DE MAGALHãES, . A desjuridicização e a sua aplicabilidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 out 2011, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/25673/a-desjuridicizacao-e-a-sua-aplicabilidade. Acesso em: 22 nov 2024.
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