O Carnaval como expressão de cidadania e como uma das formas de “ser pessoa” é o tema desta página.
Relembro tempos como Juiz de Direito, no interior do Estado do Espírito Santo, e faço uma ligação entre a busca de cidadania através dos instrumentos jurídicos e a busca de identidade e cidadania através da participação numa escola de samba.
Na presença entusiasmada da gente mais simples do povo brasileiro, em escolas de samba e blocos de Carnaval, vejo, dentre outros aspectos, a profunda busca de identidade, tão forte na alma humana. Quem pertence a uma escola de samba tem endereço, raiz, deixa de ser alguém sem lenço e sem documento. Vibro com as escolas sim, mas vibro ainda mais com o rosto feliz dos sambistas. Esses rostos me enternecem.
A sede humana de identidade e reconhecimento me relembra antigas andanças pelo interior, como juiz. Surpreendi centenas de casos de pessoas sem nome civil. Numa situação de completa marginalização econômica e social – inacreditável para quem não foi testemunha – brasileiros, irmãos nossos, nem nome civil possuíam.
O primeiro “movimento pela cidadania ampla”, que tive a honra de inspirar, como juiz, ocorreu, a partir de 1967, em São José do Calçado, cidade localizada no sul do Estado do Espírito Santo.
A comunidade e o Juiz de Direito – juntos promovemos milhares de registros civis, casamentos civis, correção de prenomes grafados erroneamente, emissão de carteira de trabalho em favor de pessoas que trabalhavam sem carteira, matrícula compulsória de crianças na escola, resgate da história local através de pesquisa e documentação etc.
Houve uma intensa participação de estudantes no “movimento pela cidadania ampla”. Foi um período de profícua vida cidadã dentro dos muros da pequenina, mas pujante comunidade interiorana, contrastando com uma época de obscurecimento da cidadania na vida nacional.
Encontrar a possibilidade de “ser pessoa” numa escola de samba, tornar-se juridicamente “pessoa” pelo registro civil, – leva-me a uma outra reflexão, qual seja, a busca de “ser pessoa”, de ser feliz, na multidão, nas praias apinhadas de gente, no balanço das ondas, no burburinho das vozes, no murmúrio do mar.
“Ser pessoa”, neste caso, é soltar-se, relaxar, aliviar tensões. Todos os entraves que obstaculem a vivência dessa dimensão do “ser pessoa” , como privatizar praias, merecem nosso repúdio.
Ninguém tem o direito de utilizar expedientes espertos para restringir o uso de praias a certas pessoas, ou para cobrar entrada em praias. A praia ainda é um dos poucos bens acessíveis a todos sem exceção. A frequência à praia não apenas constitui agradável descanso, como é um benefício para a saúde, especialmente das crianças. A sociedade civil deve resistir à privatização das praias, através de pressão política e também por meio da “ação popular”.
As praias devem ser bem cuidadas e limpas, com apetrechos próprios à coleta de lixo. Não se deve permitir o convívio pouco higiênico entre pessoas e animais. A prática de certos esportes que incomodam os banhistas deve ser restrita a horários determinados, ou a espaços claramente fixados. Todas as praias devem dispor de serviços de salvamento e de prestação de socorros urgentes. Devem contar com discreto policiamento, de índole sobretudo pedagógica, para que todos possam usufruir fraternalmente desta riqueza brasileira, que são nossas praias. A imensa costa, quase toda constituída de praias, faz do nosso país uma nação privilegiada.
Bela saga do povo brasileiro, nesta luta para “ser pessoa”: o sambista, que se torna pessoa sambando; a comunidade que “faz pessoas” através de uma chamada geral para a cidadania num momento de escuridão (“Faz escuro, mas eu canto”); o povo que trabalha e que sua, que tenta na praia “ser pessoa”, que divisa com esperança o horizonte infinito, esse horizonte que não tem dono – a todos pertence.
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