Resumo: A Constituição Federal de 1988 (CF/88), fruto de aprofundados debates travados na Assembléia Nacional Constituinte (ANC), procurou contemplar, tanto quanto possível, normas que refletissem os anseios dos mais diversos atores sociais. Nesse contexto é que o Desenvolvimento Sustentável foi inserido em seu corpo na condição de princípio norteador da tutela ambiental e, especificamente, da ordem econômica. Analisar o discurso da sustentabilidade do meio ambiente sob a visão Bakhtiniana implica considerar aspectos pretéritos à promulgação da Carta Constitucional, bem como a correlação de forças estabelecida nas discussões que antecederam seu texto final, tudo com o objetivo de evidenciar que, assim como em outros aspectos da vida social, a construção dos contornos jurídicos iniciais e gerais da sustentabilidade foi fruto da interação de diversas vozes que, contempladas, acabaram por corroborar o espírito democrático que se manifestava à época.
Palavras-chave: Análise do discurso; Desenvolvimento sustentável; Constituição Federal de 1988.
Abstract: The Federal Constitution of 1988 (FC/88), the result of in-depth debates in the National Constituent Assembly (NCA) sought to include as much as possible, standards that reflect the desires of various social actors. In this context is that Sustainable Development was inserted into his body provided a guiding principle of environmental protection and, specifically, the economic order. To analyze the discourse of environmental sustainability in the Bakhtinian view implies considering aspects bygone promulgation of the Constitutional Charter and the balance of power established in discussions preceding his final text, all with the aim of showing that, as in other aspects social life, the construction of the initial legal and general contours of sustainability was the result of the interaction of different voices, covered, eventually corroborate the democratic spirit that manifested itself at the time.
Keywords: Discourse analysis, Sustainable development, the Federal Constitution of 1988.
Sumário: Introdução; 1. Considerações sobre a análise do discurso; 2. A assembleia nacional constituinte e as normas sobre meio ambiente e sustentabilidade; 3. A análise do discurso textual sobre meio ambiente e desenvolvimento sustentável na Constituição de 1988; Conclusão; Referências
Introdução
Embora constitua um marco na democracia brasileira, a ANC ainda não obteve, depois de encerrados seus trabalhos, uma análise satisfatória no sentido de apontar o porquê de, em certos pontos, ter seguido determinados caminhos. No que concerne ao texto aprovado relativo ao meio ambiente, é certo que tal temática representou uma completa mudança de paradigma, à medida que o considerou um bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, cuja preservação, de acordo com o art. 225, caput, da CF/88 é dever tanto do Estado quanto da sociedade civil.
Ocorre que o produto final oriundo da ANC não deve ser analisado sob um prisma eminentemente jurídico, devendo permitir seu estudo por outras áreas da ciência. Assim, com o auxílio da linguística, o presente trabalho propõe averiguar de que forma a participação de diversos sujeitos (pessoas físicas e jurídicas) diferentes geográfica, econômica, histórica, social e culturalmente influenciou no discurso sobre o desenvolvimento sustentável trazido pela “Constituição Cidadã”.
Desse modo, partindo de uma pesquisa bibliográfica e documental, são feitas, inicialmente, algumas considerações teóricas e preliminares sobre a análise do discurso; posteriormente, identifica e analisa as normas sobre meio ambiente e sustentabilidade produzidas pela subcomissão de saúde, seguridade e meio ambiente da ANC e, por fim, avalia de que maneira o texto constitucional relativo à matéria de desenvolvimento sustentável manifestou a ideologia e os valores dos integrantes da referida subcomissão, cujo trabalho acabou referendado em quase toda sua integralidade quando da votação em plenário, apenas com algumas modificações redacionais, sem alteração substancial de conteúdo.
1. Considerações sobre a análise do discurso
A ânsia humana em estudar o mundo físico e, de outro lado, as incógnitas do pensamento é crescente. Dentre as várias ciências desenvolvidas pelo Homem, destaca-se a linguística, cujo objeto de estudo é o funcionamento da linguagem, mas que abre um leque variado de pesquisas, indo dos estudos estruturais e imanentes da língua até aqueles que a consideram em sua relação com a História, com a sociedade, além de seus particulares usos e apropriações. Uma dessas correntes científicas trata da Análise do Discurso, elemento essencial para o desenvolvimento do estudo aqui proposto.
Segundo Orlandi (1999), a Análise do Discurso surge na década de 60, na França, como uma teoria da leitura, rompendo com uma tradição de práticas teórico-analíticas voltadas para a interpretação, tais como empreendidas pela hermenêutica e pela análise de conteúdo. Busca explanar as diferentes maneiras de traduzir a materialidade linguística, sem, contudo, estabelecer um corte sincrônico da língua ou analisá-la apenas enquanto sistema.
Nesse sentido, para a Análise do Discurso é importante considerar os sujeitos, sua posição no contexto histórico e as condições de produção da linguagem. No presente estudo, portanto, importa saber qual o perfil dos legisladores constituintes que trataram da questão ambiental quando dos trabalhos da ANC, que grupo social representavam e quais fatores de ordem temporal, psicológica, social, dentre outros, influenciaram na produção do texto constitucional.
Para a seriedade da análise, cumpre distinguir o objeto de estudo da Análise do Discurso, isto é, o próprio discurso, do objeto de estudo da linguística, a língua. Com apoio em Bahktin, Orlandi (1999) considera o discurso como o ponto de articulação entre os fenômenos linguísticos e os sócio-históricos. Aliado a este raciocínio, Fernandes (2005, p. 24) considera que: “[...] o discurso não é a língua e nem a fala, mas, como uma exterioridade, implica-as para sua existência material; realiza-se, então, por meio de uma materialidade linguística, cuja possibilidade firma-se em um, ou vários sistemas (linguísticos e/ou semióticos) estruturalmente elaborados”.
Com efeito, o discurso pode ser entendido como o lugar de trocas entre vozes sociais em conflito, as quais marcam diferentes posições ideológicas na realidade social (SUDATTI, 2007). Essa concepção se amolda ao que ocorreu quando do início das discussões da ANC, em 1987, época em que o país passava por uma transição complexa de um Estado Ditatorial para um Estado Democrático, marcado pela eclosão de inúmeras manifestações sociais, até então reprimidas.
Ocorre que a compreensão do discurso da sustentabilidade nas bases propostas implica em considerações, ainda que básicas, de dois elementos de significativa importância: o dialogismo e a polifonia.
Em relação à ideia de diálogo, sua redução às categorias de consenso, entendimento ou acordo não têm correspondência com o pensamento do Círculo Bakhtiniano, para quem o diálogo não está associado à mesmice do discurso presencial, nem à ideia de consenso e nem à redução ao entendimento da linguagem como uma prática social, onde todo enunciado sempre é dirigido a um destinatário suposto ou concreto (SUDATTI, 2007).
Para Bakthin e seu Círculo, nenhuma palavra e sua respectiva significação é exclusiva de um sujeito, uma produção individual sua. Em verdade, ela carrega sempre a perspectiva de outra voz, pois “o outro inevitavelmente integra o eu e o eu se constitui pela presença do outro em mim” (SUDATTI, 2007, p. 115).
Esse “outro” pode ser representado tanto por pessoas quanto por coisas, que, de algum modo, influenciam e condicionam, por motivos diversos (sociais, culturais, econômicos, psicológicos, históricos etc.), o discurso do eu, sendo que tal dinâmica também é observada pelos interlocutores e assim sucessivamente. Desse contexto, surge a noção de polifonia, a qual traduz a ideia de que o discurso proferido por um sujeito através de palavras, seja de forma oral ou escrita, é permeado de influências externas, isto é, pelos discursos de outros sujeitos, análise que privilegia a visão subjetivista, à medida que vislumbra o discurso como produto de um ser complexo como o Homem, passível de incomensuráveis influências externas.
O desenvolvimento dos trabalhos da ANC, como se verá adiante, é passível de ser analisado sob essas premissas teóricas, analisando-se, sob o ponto de vista bakthiniano, quais as circunstâncias que, direta ou indiretamente, exerceram influência no discurso escrito (texto) da CF/88, no que pertine ao meio ambiente e ao desenvolvimento sustentável.
2. A assembleia nacional constituinte e as normas sobre meio ambiente e sustentabilidade
As constituições brasileiras anteriores à de 1988 não trouxeram disposições normativas específicas sobre a proteção do meio ambiente, embora, desde 1946, tenha havido orientação protecionista acerca da saúde e sobre as competências da União para legislar sobre água, florestas, caça e pesca, fato que possibilitou a criação dos Códigos de Saúde Pública (Lei nº 2.312/54), e de Pesca (Decreto-Lei nº 221/67) e a recepção do Código de Águas (Decreto nº 24.643/34).
Convocada pela Emenda Constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985, a ANC foi um dos mais importantes eventos políticos do Brasil, à medida que, reunindo as mais diversas correntes do pensamento nacional em torno dos grandes temas de interesse da sociedade, produziu um momento único na história da democracia nacional.
Os parlamentares constituintes eleitos em 15 de novembro de 1986 – 487 deputados federais e 49 senadores -, além de 23 senadores dos 25 eleitos em 1982, em um total de 559, iniciaram os trabalhos constituintes, na modalidade congressional, em 1º de fevereiro de 1987, data em que foi instalada a ANC, cuja conclusão se deu em 5 de outubro de 1988, quando, em sessão solene, seu presidente, Ulysses Guimarães, do PMDB de São Paulo, promulgou a Constituição Federal (OLIVEIRA, 1993).
Em relação a um dos grandes temas tratados na ANC, o meio ambiente, Silva (2009) assevera que a Constituição de 1988 foi a primeira a tratá-lo de forma direta e objetiva, razão pela qual muitos a consideram eminentemente ambientalista, vez que trouxe um capítulo específico sobre o mesmo, inserido no título “Da Ordem Social” (Capítulo VI do Título VIII), muito embora a questão ambiental permeie todo o seu texto, conectando-se com outros temas fundamentais da ordem constitucional.
Oliveira (1993) informa que os trabalhos da ANC desenvolveram-se em 7 etapas, os quais, por sua vez, subdividiram-se em 26 fases distintas, começando pela definição de seu regimento interno, passando pela construção do anteprojeto da Constituição, e finalizando com sua promulgação, ocorrida em 5 de outubro de 1988.
De acordo com Ximenes (2009), apesar da existência do Projeto de Constituição Afonso Arinos, além dos de Fábio Konder Comparato e de Henry Macksoud, não se permitiu que o ponto de partida dos trabalhos da ANC tivesse por base um projeto prévio. Desse modo, a solução encontrada para permitir que inúmeros e diferentes temas fossem debatidos ao mesmo tempo foi a formação de 8 comissões temáticas, por sua vez divididas em 24 subcomissões. Uma dessas comissões congregou assuntos caracterizados como de “Ordem Social”, cujos estudos e proposições foram desenvolvidos em três subcomissões: a) “Dos Direitos dos Trabalhadores e Servidores Públicos”; b) “De Saúde, Seguridade e do Meio Ambiente”; c) “Dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias”.
Essa comissão ficou sob a presidência de Edme Tavares (PFL-BA) e relatoria de Almir Gabriel (PMDB-PA). À Subcomissão de saúde, seguridade e meio ambiente coube a tarefa de elaborar um texto envolvendo a temática ambiental, mas, em função das diferentes naturezas dos temas a serem tratados, esta subcomissão dividiu-se em três, conforme a preferência dos seus membros.
Apenas duas audiências públicas trataram do meio ambiente e contaram com a participação de entidades públicas e da sociedade civil; entretanto, não foram registradas grandes polêmicas entre os constituintes sobre a matéria que, à época, já despertava consenso em torno da necessidade de sua constitucionalização, a fim de criar um instrumento jurídico seguro e eficaz para a preservação ambiental, sem esquecer as necessidades provenientes de um Estado capitalista.
3. A análise do discurso textual sobre meio ambiente e desenvolvimento sustentável na Constituição de 1988
A CF/88, em sua redação originária trouxe como principais regras sobre meio ambiente e desenvolvimento sustentável o art. 225, acompanhado de seis parágrafos. Além destes, em outros diferentes dispositivos, há referências ao meio ambiente, relativos à repartição de competências (art. 21, incisos IX, XVIII, XIX e XXIII; art. 22, incisos IV, XII e XXVI; art. 23, incisos III, VI, VII e XI; art. 24, incisos VI, VII e VIII; e art. 30, inciso VIII); às funções institucionais do Ministério Público (art. 129, inciso III); aos princípios da ordem econômica (art. 170, inciso VI); à função social da propriedade rural (art. 186, inciso II); ao sistema único de saúde (art. 200, inciso VIII); ao patrimônio cultural (art. 216, caput, inciso V); e às terras ocupadas pelos índios (art. 231, § 1º).
Tendo em vista os dispositivos acima citados, cabe refletir sobre o seguinte: que ideologia norteou a produção dos mesmos? De que modo os diversos sujeitos envolvidos em sua elaboração deram sua contribuição e como chegaram ao resultado final? As respostas a estes questionamentos não devem ousar exaurir a complexidade que envolve essa temática, no entanto, o objetivo deste breve estudo busca tecer algumas observações que possam contribuir nesse sentido.
Florestan Fernandes (1989, p. 87), referindo-se à fase de audiências públicas por que passavam as Subcomissões, descreve como havia, na época, um sentimento de ânsia por uma efetiva participação no processo da nova Constituição:
“Nesta fase, na qual se realiza uma espécie de auditoria do Brasil real, a pressão política desenrola-se no nível das Subcomissões, com lances por vezes emocionantes, pungentes e memoráveis. Por várias vias, gente de diversas categorias sociais, profissionais, étnicas e raciais surge no centro do palco e assume o papel de agente, de senhor da fala. Um indígena, um negro, um portador de defeito físico, um professor modesto, saem da obscuridade e se ombreiam com os notáveis, que são convidados por seu saber ou lá compareceram para advogar as causas de entidades mais ou menos empenhadas na autêntica revolução democrática”.
Conforme acima noticiado, o PMDB, possuindo ampla maioria dos parlamentares constituintes, dominou os trabalhos da ANC e, em função disso, é forçoso admitir que a CF/88 reflete aspectos da ideologia preconizada pelo partido.
Acontece que, sem prejuízo da influência ideológica partidária, o fato é que o texto constitucional também se inspirou em um contexto internacional que expressava uma ampla preocupação com a questão ambiental, cujo marco inicia com a Conferência de Estocolmo, em 1972 e, desde então, passa a produzir inúmeros diplomas normativos e instrumentos que visam à preservação do ambiente, sendo exemplos importantes a criação do Programa das Nações Unidas para o Meio ambiente (PNUMA), em 1972; a instituição da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente, em 1983; e o lançamento do Relatório Brundtland, em 1987.
Ademais, nas duas audiências públicas realizadas, embora com tímida participação de entidades envolvidas com o meio ambiente - Secretaria do Meio Ambiente do Ministério do Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente; Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA); Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Fórum de Entidades Ambientalistas Autônomas e Instituto Brasileiro de Siderurgia – não se pode olvidar que as mesmas também deixaram registradas suas marcas, influenciando direta ou indiretamente na produção do texto constitucional, cujo lobbie em favor da preservação ambiental era marcadamente majoritário (BACKES; AZEVEDO; ARAÚJO, 2009).
Cumpre salientar, ademais, que a ANC tinha em sua composição o resultado das eleições e, na data de sua instalação, o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) detinha 303 dos seus 559 membros, seguido pelo Partido da Frente Liberal (PFL) com 135. Assim, com ampla maioria, estes dois partidos dominaram a formação das Comissões, com o PMDB ficando com as oito relatorias e o PFL com sete presidências; as Subcomissões, com o PMDB ocupando 13 relatorias e 15 presidências, e o PFL ficando com 5 relatorias e 5 presidências. Analisando este quadro, não seria exagero afirmar que o texto da atual Carta Magna sofreu influência direta destes dois partidos (CÂMARA, 1993).
Ante a complexidade de sua estrutura, a ANC apresentou números grandiosos. Da sua instalação até a promulgação transcorreram exatos 584 dias, realizadas 330 sessões plenárias e cerca de 65.809 emendas apresentadas nas várias fases. Tudo fruto de um amplo processo participativo cujos sujeitos não se resumiram apenas aos parlamentares, mas também à sociedade civil, cujo papel ativo estava garantido em diversas hipóteses previstas no Regimento Interno da ANC (CÂMARA, 2009):
a) Sugestões iniciais, art. 13, § 11: Assembleias Legislativas, Câmaras de Vereadores, Tribunais e entidades representativas de segmentos da sociedade puderam oferecer sugestões iniciais que foram encaminhadas às comissões.
b) Audiências públicas nas Subcomissões Temáticas, art. 14 do Regimento, destinadas a ouvir entidades representativas de segmentos da sociedade.
c) Emendas Populares, art. 24: subscritas por, no mínimo, trinta mil eleitores e com a responsabilidade de três entidades associativas, puderam ser propostas ao Projeto de Constituição formulado pela Comissão de Sistematização, no mesmo prazo assegurado aos constituintes. Tratava-se do direito de iniciativa ou proposição, bastante reivindicado à época e materializado em 122 emendas aceitas, num total de 12.265.854 assinaturas.
d) Defesa das emendas populares por um signatário perante a Comissão de Sistematização, art. 24, VI: preceito que assentiu a cidadãos sem mandato constituinte falar no solene ambiente da Comissão que se reunia no plenário da Câmara.
Adentrando no ponto chave deste estudo, percebe-se claramente que o discurso textual da CF/88 reconhece o capitalismo como modo de produção predominante no Estado brasileiro, mas que deve observar limites sociais e ambientais, a fim de preservar sua própria continuidade e a existência dos homens de maneira sustentável. Nesse sentido, Sudatti (2007, p. 165) afirma: “[...] a preocupação com a preservação ambiental se revela apenas como uma cautela necessária e indispensável para prolongar a própria vida útil do modo de produção dominante, já que o limite ecológico do planeta está em flagrante contradição com o ritmo de desenvolvimento das forças produtivas. A conservação ambiental, por esse ângulo, não tem o propósito de alterar as velhas e antigas prioridades. Por isso, surge disfarçada com todo um vocabulário novo, repetido em tom entusiasta, mas que reproduz os já conhecidos lugares-comuns cristalizados pela ideologia dominante”.
De fato, uma das maiores evidências de que o discurso do desenvolvimento sustentável na CF/88 privilegia interesses do mercado é a relativização da proibição de atividades econômicas em terras indígenas (art. 231, § 3º), cujo usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos ser-lhes-iam garantidos com exclusividade (art. 231, § 2º). Outro exemplo marcante é encontrado no art. 225, § 2º, o qual legitima e reconhece a atividade mineradora como potencialmente degradadora do meio ambiente, embora exija do empreendedor a recuperação do mesmo.
Fica claro, então, que, não obstante a ANC e, particularmente, a Subcomissão que ficou encarregada da produção do texto relativo ao meio ambiente, tenha sido fruto da ideologia dominante de um partido e sofrido influências internacionais, o fato é que a mesma legitimou juridicamente o capitalismo no país, mas, ao mesmo tempo, concebeu um novo paradigma em termos de preservação ambiental. Daí que a necessidade de conciliar ambos levou à concepção do desenvolvimento sustentável que, mesmo não possuindo, até o momento, contornos científicos objetivamente definidos (VEIGA, 2008), é tido como princípio norteador de políticas públicas econômicas e ambientais no Brasil.
CONCLUSÃO
A ANC, embora dominada por um único partido político, o PMDB, prestou grande serviço à Nação, não só pelas regras democráticas que criou após anos de opressão, mas, sobretudo, por criar um novo paradigma de proteção ambiental, refletindo o inevitável: a necessidade de compatibilizar a preservação ambiental com o desenvolvimento econômico, que, por sua vez, importa em crescimento da economia e melhoria das condições sociais da população.
Todavia, como bem ressaltado por Sudatti (2007, p. 195), a ideologia dominante agora também encontra respaldo no discurso ambientalista, provendo-a de legitimidade e colaborando para “constituir, manter e perpetuar o domínio ideológico no campo simbólico”.
O uso da linguística como instrumento de análise de um momento histórico impar na temática ambiental brasileira, permite avaliá-lo sob um ponto de vista mais amplo, levando em consideração não somente aspectos jurídicos, mas também sociais, históricos, políticos e econômicos, relevantes para se compreender o jogo de forças estabelecido nos embates que deram origem ao texto constitucional, em especial no que tange ao meio ambiente.
Desse modo, pode-se afirmar que a CF/88 acolheu o discurso do desenvolvimento sustentável para, a um só tempo, legitimar o capitalismo no país e estabelecer regras de proteção ambiental compactuadas com aquele sempre que possível, de modo a não atravancar o desenvolvimento econômico e social do Brasil.
REFERÊNCIAS
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FERNANDES, Florestan. A constituição inacabada. São Paulo: Editora Liberdade, 1989.
OLIVEIRA, Mauro Márcio. Fontes de informações sobre a Assembleia Nacional Constituinte de 1987: quais são, onde buscá-las e como usá-las. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 1993.
SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 7ª ed. atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2009.
SUDATTI, Ariani Bueno. Dogmática jurídica e ideologia: o discurso ambiental sob as vozes de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Quartier Latin, 2007.
VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento sustentável: o desafio do século XXI. 3 ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.
XIMENES, Julia Maurmann. O supremo tribunal federal durante os trabalhos da assembleia nacional constituinte: a influência comunitarista. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/imprimir.asp?id=13152>. Acesso em 27 jan. 2012.
Analista Judiciário do TRT 8ª Região, professor universitário e Mestre em Direito Ambiental e Políticas Públicas (UNIFAP)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FREITAS, Ives Faiad. O discurso do desenvolvimento sustentável na Constituição Federal de 1988 sob a visão da análise do discurso Bakhtiniana Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 mar 2012, 08:50. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/28112/o-discurso-do-desenvolvimento-sustentavel-na-constituicao-federal-de-1988-sob-a-visao-da-analise-do-discurso-bakhtiniana. Acesso em: 22 nov 2024.
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