Três crianças de doze anos são estupradas por um homem, tendo o mesmo sido inocentado pelo STJ, sob alegação de que as referidas crianças “já se dedicavam à prática de atividades sexuais desde longa data”. Segundo este entendimento, estas crianças não mais se constituíam vulneráveis em razão de terem um histórico que elenca várias situações de abusos sexuais preteritamente infligidos contra elas. Daí se concluindo que elas, em face dessa série de abusos sofridos, conquistaram um amadurecimento que as capacitaram a assumir total responsabilidade por seus atos e suas escolhas até um futuro próximo enquanto crianças.
Polêmicas a parte, causa-me espécie que do mesmo ordenamento jurídico de cuja doutrina se extrai tal entendimento anteriormente exposto, tendo três crianças como pivô, se extraia outro, em total incoerência, quando o pivô trata-se de um homem com dezessete anos e onze meses de idade que, de uma forma cruel, decide tirar a vida de um idoso, de 68 anos, ainda lutando heroicamente pela vida como taxista, e o abate a pauladas como se o fizesse a um porco, para roubar-lhe um celular, um relógio e R$ 70 que tinha no bolso. Era isto o que valia esse trabalhador na perspectiva do seu algoz de dezoito anos incompletos, que não lhe reconheceu a dignidade de que se revestia a sua pessoa, fundamentada não em alguma disposição jurisdicional ou acordo convencional estabelecido internacionalmente de fora para dentro, mas enraizada em sua história de vida simples, palmilhada no caminho da retidão, da honestidade e do respeito ao outro, que passa pelo reconhecimento da dignidade. http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.33661&seo=1 Este homem, agente de tamanha hediondez, irá ser recolhido a uma instituição ressocializadora por um período de treze dias, quando então completará vinte e um anos de idade e será liberado para retornar a sua casa onde se instalará mais íntegro moralmente do que qualquer cidadão que não tenha ofendido, em toda sua vida, sequer um cão sarnento. Tudo isto, da perspectiva de nossas leis jurídicas que o considera inimputável em razão da idade que tinha à época do homicídio. Aqui eu evoco as três crianças de 12 anos estupradas que, do ponto de vista doutrinário, no que tange a presunção relativa de violência, são consideradas absolutamente responsáveis por seus atos e escolhas, de forma a desonerar o adulto que as utiliza para o seu usufruto sexual de uma esperada responsabilidade. A esse respeito comenta o presidente da ANPR, Alexandre Camanho: “Há um grupo de valores que deveriam ser preservados e ficou a estranha sensação de que, nessas circunstâncias, julgou-se a vítima e em alguma medida liberou-se quem quer que seja nesse crime”.
É flagrante na interpretação usual abrangendo as duas situações acima abordadas a utilização de dois pesos e duas medidas. Como se pode admitir que uma criança de 12 anos, seja lá em razão do que a vida possa ter engendrado em sua história, seja considerada legalmente emancipada, apta a responder com plena consciência por seus atos e escolhas e um homem com dezoito anos de idade incompletos que comete um homicídio com crueldade abominável é considerado inimputável, ou seja, incapaz de responder por seus atos e escolhas?
Doutrinariamente a inimputabilidade se constitui num instituto jurídico criado para proteger a pessoa que, por qualquer artifício ou infortúnio do destino, se encontra privada da dimensão que lhe confere status ontológico de ser livre, por conseguinte, incapaz de discernimento intelectual que a habilite a decidir sobre seus atos e escolhas com consciência plena das conseqüências que poderão advir. As pessoas que se enquadram nessa categoria são aquelas portadoras de graves limitações psíquicas, incluídas as débeis mentais ou pessoas que possuam desenvolvimento mental incipiente ou retardado, os alienados, psiquiatricamente falando, conhecidos como loucos, ou seja, desconectados da realidade que os cerca, os acometidos congenitamente de idiotia, esquizofrenia severa, etc. O que é necessário se entender é que o fundamento legitimador de tal preceito doutrinário deveria assentar-se na observância da impossibilidade do agente infrator agir com plena liberdade em razão da interferência de fatores objetivos e flagrantemente impeditivos como os já então referidos. O que se nos apresenta pela forma como tal preceito é aplicado na prática é que o mesmo não é balizado, de forma criteriosa e no rigor técnico-científico, pelas condições objetivas e pontuais que diagnostiquem um quadro clínico verdadeiramente promotor da incapacidade de discernimento do agente delituoso. Agora nos façamos à pergunta: o homem de dezoito anos incompletos que, de uma forma cruel, decidiu tirar a vida de um idoso, de 68 anos, ainda lutando heroicamente pela vida como taxista, em Minas Gerais, no norte do estado na cidade de Teófilo Otoni, e o abateu a pauladas como se o fizesse a um porco, para roubar-lhe um celular, um relógio e R$ 70 que tinha no bolso, se enquadra, rigorosamente, numa perspectiva médica psiquiátrica e antropológica, nessa categoria de inimputável? Alguém que acredite nisso com certeza também acreditará em Papai Noel, Saci-Pererê e lobisomem ou em qualquer coisa do gênero. Essas aberrações doutrinárias acabam por fomentar uma pedagogia desgraçada, que ensina aos nossos jovens sobre a banalização da vida e os conscientiza de que até aos dezoito anos de idade incompletos lhes é lícito e permitido fazerem o que lhes der na cabeça; assassinar, estuprar, assaltar, barbarizar de todas as formas possíveis e imagináveis porque não incorrerão em nenhum crime. Tudo isso sem falar no caldo cultural de impunidade que essa anomia gera com reflexo profundamente negativo na sociedade como um todo. A esperança que ainda nos resta é de que a sociedade um dia passe a reagir, através das redes sociais de comunicação, difundindo teses que contestem esse descalabro de disposição legal que nos foi imposto por uma minoria de pessoas, muito bem articuladas politicamente, que professam um discurso superado, armado de um sociologismo barato, caricato e equivocado, urdido em rodas congratulatórias de botequins em meio à cachaça circulante. Um dia isso terá que virar! Temos que superar esse nosso complexo de inferioridade, como nação, que se expressa em nossa pretensão de querermos ensinar aos países de primeiro mundo, que não se alinham a essa ingênua e equivocada perspectivação da realidade sócio-criminal, um modelo jurídico “magnânimo” mesmo que em prejuízo da sociedade. http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.36044 Nada no cosmo é para sempre! Está no poder de cada um de nós, cidadãos contribuintes, que financiamos o Estado com sua razão de existir fundamentada exatamente na sua obrigação de proteger todos que honram e respeitam o exercício da cidadania, mudar esta situação de anomia social para que a paz seja uma possibilidade mais ao alcance da sociedade. E para tal temos que romper a inércia de nossa acomodação e, de alguma forma, nos mexermos para que nossos legisladores e operadores jurídicos sintam-se eficazmente pressionados a cooperar para a construção de um país melhor.
Precisa estar logado para fazer comentários.