Um conhecido ditado sobre as relações humanas diz que, quando uma desilusão acontece, o cristal do vínculo se vê trincado. Trinca não chega a ser rompimento – é seu limiar, sua promessa. Bastará uma pequena alteração de temperatura ou pressão, um choque suave ou um olhar meio torto para que finde espatifado. E cristais jamais se recuperam: aos pedaços, as partes são inconciliáveis, agudas e sem valor.
Daí a razão de pisarmos em ovos. Cuidamos como falamos algo ao cônjuge; medimos as palavras no ambiente de trabalho; somos prudentes com amigos e vizinhos. Sacrificamos a franqueza quando ela promete colisões. Engolimos sapos, contamos até dez, deixamos assim. Isso, ou optaremos por viver pisando em cacos de vidro, calçados de pesadas galochas ou vendo o sangue dos desavisados escorrer dos pés. Sim: estaremos em constante guerra.
Há quem possa ver nessa cristalina fragilidade das relações um insuportável problema – aliás, que se torna mais grave na entropia dos grandes centros urbanos. Em certo prisma isso é verdade: ninguém gosta de viver pressionado pela iminência de nunca mais retomar a estrutura original de um relacionamento. Porém, o outro lado também deve ser levado em conta: desobrigados a lidar com a prudência inerente à fina parede que nos une e separa, abandonaríamos de vez a delicadeza – excelente conquista do processo civilizatório. Compreensão e tolerância, também, são valores louváveis e que estão diretamente vinculadas à evolução espiritual.
Justo agora que vem o mais impressionante: ao julgar o laço materno como sendo o mais resistente, seja por sua solidez, seja por sua maleabilidade, tendemos ao relaxamento, à imprudência. Parece que tudo o que se faça (ou, principalmente, o que se deixe de fazer) será perdoado. Relativizado, contornado, esquecido. A quem ama de modo incondicional estaríamos autorizados a mostrar nossa face mais amarga, nosso ranço mais empedernido, nosso egoísmo mais torpe. E, pior, de modo acusatório: veja quem sou eu de verdade e assuma sua culpa nisso.
Estou exagerando de propósito, mas há um pouco de verdade por trás de tal contundência: confiando no indefectível amor de mãe, corremos o risco de não as pouparmos de nós mesmos. O mundo pode nos magoar. Ela, jamais. O mundo pode ser injusto (ou justo com nossas falhas). Ela, jamais. O mundo pode esquecer-se de nós. Ela, jamais. O mundo pode ser áspero, frio, cortante, surdo, indigesto. Ela, jamais. A todos devemos tolerância sob o risco de ver o cristal das relações trincado. Quanto à mãe, ela que se vire em suportar a carga de ser perfeita e indestrutível, mesmo que nós a tratemos com desleixo.
No dia das mães e nos dias de filho (os demais), quero pedir perdão por todas as vezes em que fui descuidado. Também perdoá-la como sou obrigado a fazer com os outros. Já sei, mãe: você resiste. Mas nem assim é justo.
Precisa estar logado para fazer comentários.