Enquanto no curso do processo, o Estado-juiz deve se empenhar em realizar o valor da justiça para os jurisdicionados, após o trânsito em julgado ganha importância a segurança jurídica, que requer a estabilidade da solução ofertada pelo Poder Judiciário.
O próprio Poder Constituinte Originário reconhece a coisa julgada, que cristaliza o princípio da segurança jurídica no âmbito judicial, como um direito individual, insuscetível de supressão por parte do Poder Constituinte Reformador.
Sobre a segurança jurídica, ensina J. J. Gomes Canotilho:
O homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se consideravam os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança como elementos constitutivos do Estado de direito.
Por sua vez, Dirley da Cunha Júnior assim se manifesta sobre a segurança jurídica:
A garantia da segurança jurídica impõe aos poderes públicos o respeito à estabilidade das relações jurídicas já constituídas e a obrigação de antecipar os efeitos das decisões que interferirão nos direitos e liberdades individuais e coletivas.
A ação rescisória é o instrumento processual que possibilita uma inversão de valores mesmo após o trânsito em julgado. Ou seja, mesmo após a solução definitiva imposta pelo Poder Judiciário, a estabilidade pode ser sacrificada em prol do valor da justiça. Segundo Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart,
A decisão de recorrer ao instituto da coisa julgada parte de opção feita pelo legislador no sentido de fazer preponderar a segurança das relações sociais sobre a chamada ‘justiça material’. Esta opção, porém, se efetivamente é dominante no processo civil atual (brasileiro e também de ampla maioria dos sistemas de direito comparado), não representa uma alternativa abraçada incondicionalmente.
Dessa forma, por representar uma mitigação da cláusula pétrea que é a coisa julgada, a ação rescisória só será cabível em casos estritos previstos expressamente pelo legislador.
Nesse sentido, colacione-se a lição de Manoel Antônio Teixeira Filho:
O próprio legislador brasileiro, atento à regra de que o uso abusivo e indiscriminado da rescisória poderia causar graves danos ao tecido social, tratou de limitar os casos em que ela poderia ser ajuizada; essa restrição está representada pelo rol de causas que autorizam a rescindibilidade dos julgados (CPC, art. 485). Com tal providência, cuidou de evitar o ressurgimento de lides já compostas, de fomentar o espírito de litigiosidade, que se assenhoreia de certos indivíduos, fatos que desaguariam, fatalmente, na tantas vezes mencionada perturbação do relacionamento social.
Não obstante a coerência e a precisão da observação acima, os Tribunais brasileiros, notadamente o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, têm conferido à ação rescisória por violação a literal disposição de lei uma interpretação extensiva. Ou, mais rigorosamente, os Tribunais Superiores vêm criando uma nova hipótese de cabimento da ação rescisória.
Esse alargamento de uma hipótese de cabimento da ação rescisória representa um verdadeiro atentado à intenção do Poder Constituinte Originário, que inseriu a coisa julgada no rol de direitos e garantias individuais, intacto à obra do Poder Constituinte Reformador.
Não se infirma a necessidade de, com base em um juízo de ponderação e proporcionalidade, a coisa julgada sucumbir quando o seu manto estiver a acobertar graves injustiças.
No entanto, tal juízo de ponderação e proporcionalidade será tarefa do legislador ordinário, e não da jurisprudência. Caso não se esteja diante de uma das hipóteses de cabimento previstas pelo Código de Processo Civil, “o princípio da coisa julgada é respeitado por todos, porque é uma garantia da paz social e a Constituição Federal o garante”.
Contrariando a doutrina majoritária, Manoel Antônio Teixeira Filho vai mais além, ao valorizar que os casos de rescisória baseiam-se num juízo político do legislador, que não necessariamente se amolda em casos de injustiça (até porque, como ressalta o autor, o conceito de justiça oscilará de indivíduo para indivíduo). São suas as seguintes palavras:
reputamos aconselhável encarar-se com alguma reserva o parecer doutrinário que faz do ideal de justiça o fundamento, o móvel da existência dessa modalidade especial de ação, em nossa estrutura processual. Cabe reiterar que o art. 485 do CPC, ao relacionar as causas de rescindibilidade dos julgados, deixa margem diminuta de possibilidade de o pronunciamento jurisdicional ser derivante de injustiça.
Sobre as diferentes percepções de justiça, imprescindíveis as lições de Norberto Bobbio:
Em uma só hipótese poderíamos aceitar reconhecer como direito unicamente o que é justo: se a justiça fosse uma verdade evidente ou pelo menos demonstrável como uma verdade matemática, de modo que nenhum homem pudesse ter dúvidas sobre o que é justo ou injusto. (...) De fato, se a distinção entre o justo e o injusto não é universal, é preciso colocar o problema? A quem compete estabelecer o que é justo ou injusto?
Percebe-se assim o subjetivismo no conceito de justiça, o que dificulta a sustentação de desconstituição da coisa julgada com base na justiça. É preciso para tanto que, ainda que se queira denominar o fundamento da ação rescisória de justiça, tal justiça deve ser qualificada, ou seja, prevista expressamente em lei.
REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. Tradução de Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno Sudatti. 3 ed. São Paulo: Edipro, 2005
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3 ed., Coimbra: Almedina, 1997
DO VALLE, Christino Almeida. Teoria e Prática da Ação Rescisória. 3 ed. Rio de Janeiro:AIDE Editora, 1990
JÚNIOR, Dirley da Cunha. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. Salvador: Jus Podivm: 2008
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Processo de Conhecimento. 7 ed. São Paulo: RT, 2008
TEIXEIRA FILHO, Manoel Antônio. Ação Rescisória no Processo do Trabalho. 3 ed. São Paulo: Editora LTr, 1998
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