1 – A intersecção entre Direito Internacional e ordenamento jurídico interno
Os adventos históricos do século XX que representaram riscos à continuidade da espécie humana, mais especificamente quanto ao contexto da Segunda Guerra Mundial, podem ser considerados pontos de partida para o desenvolvimento de um raciocínio voltado para o reconhecimento de direitos inerentes à condição humana, fenômeno que, hodiernamente, repousa como epicentro da compreensão do Estado Democrático.
Diante do panorama de devastação, insurgiu-se como resposta uma base normativa de ordem internacional, iniciada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, a qual foi sucedida por diversos tratados internacionais, aos quais, por meio de ratificação, os Estados se submetem a fim de se obrigarem a dar efetividade aos direitos decorrentes da natureza humana.
Desta forma, por intermédio do Decreto nº 678 de 06 de novembro de 1992, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos -- Pacto de San Jose da Costa Rica -- adentrou ao ordenamento jurídico brasileiro, fator este possibilitado pelo permissivo constitucional do artigo 5º, § 2º, que assim estipula: "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte". Ou seja, inegável é a vigência e a eficácia das normas de âmbito internacional e sua produção de efeitos quanto ao ordenamento jurídico pátrio. Com efeito, assim asseverou a doutrina acerca da norma constitucional:
A novidade do artigo 5º, inciso 2º da Constituição de 1988 consiste no acréscimo ao elenco dos direitos constitucionalmente consagrados, dos direitos e garantias expressos em tratados internacionais sobre proteção internacional dos direitos humanos em que o Brasil é parte. Observe-se que os direitos se fazem acompanhar necessariamente das garantias. É alentador que as conquistas do direito internacional em favor da proteção do ser humano venham a projetar-se no direito constitucional, enriquecendo-o, e demonstrando que a busca de proteção cada vez mais eficaz da pessoa humana encontra guarida nas raízes do pensamento tanto internacionalista quanto constitucionalista.[1]
Ainda que o plano doutrinário seja rico em debates no tocante à situação hierárquica dos tratados internalizados, é inconteste que, devidamente ratificados, possuem eficácia no ordenamento jurídico pátrio.
2 - O Brasil e a Lei de Anistia
A Lei nº 6.683/1979 foi promulgada com a finalidade de conceder anistia àqueles que cometeram crimes políticos entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, no contexto da Ditadura Militar. Considera-se, portanto, que a Lei de Anistia brasileira realizou concessões em dupla mão, ou seja, tanto para anistiar crimes praticados por opositores do regime, quanto para anistiar crimes praticados por agentes públicos contra os opositores.
O referido diploma legislativo foi objeto da ADPF 153-DF perante o Supremo Tribunal Federal, pela qual o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil objetivou obter declaração de sua não recepção pela Constituição Federal de 1988, alegando que a anistia concedida aos crimes políticos e conexos não se estende aos crimes comuns praticados por agentes públicos contra opositores do regime militar. O objeto da controvérsia sucitada pela OAB reside no § 1º do art. 1º da Lei nº 6.683/79, que dispõe: “Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.”. Entende o requerente que tal prescrição legal teria configurado manobra legislativa com escopo de isentar agentes públicos da ditadura militar de todo e qualquer crime praticado naquele contexto, inclusive crimes comuns sem elementos de conexão com crimes políticos e, por esta razão, colidiriam com preceitos constitucionais fundamentais como a isonomia em matéria de segurança, do preceito de não ocultar a verdade (sob respaldo constitucional do artigo 5º, XXXIII: “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”) e, ainda, ofenderia a dignidade da pessoa humana.
Em decisão portadora de eficácia erga omnes e efeito vinculante de 29 de abril de 2010, o Pleno do Supremo Tribunal Federal julgou improcedente a ADPF 153-DF, entendendo não ser cabível a revisão do acordo político pelo Poder judiciário, destacando-se, ainda, o caráter de amplitude e de generosidade da Lei de Anistia.
3 – A obstaculização da efetividade dos Direitos Humanos
A posição apaziguadora do judiciário brasileiro em relação às violações ocorridas no contexto da Ditadura Militar representa dissonância em relação ao posicionamento adotado pela Corte Interamericana de Direitos que, no Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) versus Brasil, mencionou expressamente o referido julgado do Supremo Tribunal Federal, para, em seguida, afirmar a incompatibilidade das Leis de Anistias em face das graves violações aos Direitos Humanas ocorridas, sobretudo, no âmbito dos regimes ditatoriais no continente americano. Assim asseverou o julgado, às fls. 85/86:
As anistias ou figuras análogas foram um dos obstáculos alegados por alguns Estados para investigar e, quando fosse o caso, punir os responsáveis por violações graves aos direitos humanos1. Este Tribunal, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, os órgãos das Nações Unidas e outros organismos universais e regionais de proteção dos direitos humanos pronunciaram-se sobre a incompatibilidade das leis de anistia, relativas a graves violações de direitos humanos com o Direito Internacional e as obrigações internacionais dos Estados.
Conforme já fora antecipado, este Tribunal pronunciou-se sobre a incompatibilidade das anistias com a Convenção Americana em casos de graves violações dos direitos humanos relativos ao Peru (Barrios Altos e La Cantuta) e Chile (Almonacid Arellano e outros).[2]
Consoante o exposto no item 1 do presente estudo, o Brasil, pelo Decreto nº 678/1992, se submeteu às regras da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a qual, no artigo 33, prescreve:
“São competentes para conhecer dos assuntos relacionados com o cumprimento dos compromissos assumidos pelos Estados Partes nesta Convenção:
[...]
b) a Corte Interamericana de Direitos Humanos, doravante denominada a Corte.”
Não resta discussão, portanto, quanto à obrigatoriedade do Estado brasileiro em respeitar as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ressalte-se, ainda, o conteúdo descisório do referido caso Gomes Lund e outros versus Brasil, que entendeu que “as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil” [3].
4 – O direito à memória e à verdade no ordenamento jurídico brasileiro
Trata-se, portanto, de uma controvérsia existente em relação à internacionalização dos Direitos Humanos. Embora o STF não tenha levado em consideração o conteúdo decisório do caso Gomes Lund e outros versus Brasil, já há no âmbito do Poder Judicário brasileiro o reconhecimento no contexto interno do acatamento às decisões da Corte Interamericana.
O Juiz de Direito da 2ª Vara de Registros Públicos da Comarca de São Paulo, Guilherme Madeira Dezem, nos autos do Processo nº 0059583242011, ao julgar um pedido de retificação de certidão de óbito, no qual a requerente pleiteou a retificação do assento de seu falecido marido para fazer constar que o referido “faleceu nas dependências do DOI/CODI II Exército, em São Paulo” e para que a causa morte fosse retificada para morte “decorrente de torturas físicas”, entendeu o caráter peculiar do caso em questão nos seguintes termos: “há detalhe neste caso que o torna diferente de todos os outros existentes no país. Este caso liga-se ao chamado Direito à Memória e à Verdade e, acima de tudo, liga-se à relação do sistema jurídico interno com a Proteção Internacional dos Direitos Humanos”[4]. Trata-se, portanto, do reconhecimento do Direito Internacional como fonte normativa, do acatamento pelo Poder Judiciário, no âmbito interno, às decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos e, sobretudo, do reconhecimento do Direito à memória e à verdade, que conflita com a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal acerca da Lei de Anistia.
Asseverou, ainda, o magistrado, em sede do julgamento: “Vale dizer, há sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos que determina que o Brasil efetive medidas para o reconhecimento do Direito à Memória e à Verdade.
Daí a particularidade deste caso que o afasta de todos os demais com pretensões similares. Não se trata de discutir se tortura pode ser incluída como “causa mortis” ou não. Trata-se de reconhecer que, na nova ordem jurídica, há tribunal cujas decisões o Brasil se obrigou a cumprir e esta é mais uma destas decisões.”[5]. Por tais razões, os pedidos aduzidos pela autora foram julgados procedentes.
5 –Conclusão
Direito à Memória e à Verdade não corresponde à ideia de atuação estatal de caráter persecutório retributivo, mas sim esclarecedor. Por meio da Lei nº 12.528/2011, foi criada a Comissão da Verdade no âmbito da Casa Civil da Presidência da República. Trata-se de uma manifestação de âmbito legislativo convergente à procura de esclarecimentos relativos ao período obscuro da Ditadura Militar. Assim prescreve seu artigo 1º: “É criada, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, a Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.”. Ainda nos termos da lei, o artigo 3º, § 4º esclareceu que “as atividades da Comissão Nacional da Verdade não terão caráter jurisdicional ou persecutório”.
Vale lembrar que a história da humanidade é repleta de episódios obscuros caracterizadores de soterramento dos direitos inerentes à condição humana. Colocar luzes sobre tais períodos consiste postura fundamental para a prevenção de recaídas aos erros violadores do passado.
A decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da Lei de Anistia teve o objetivo de vedar o tampão acerca das controvérsias históricas do período militar, e, ainda que tenha se dado por fundadas razões, não se coaduna com a sistemática internacional de proteção dos Direitos Humanos.
Reconhecível, portanto, o caráter ainda descompassado das diferentes esferas de Poder diante da controversa questão. Ainda sim, é possível identificar posturas convergentes ao reconhecimento pelo Estado brasileiro do Direito à memória e à verdade que, nos termos em que foi delimitado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, consiste em um meio (e não em um fim), qual seja o de trazer à tona as violações ainda em tempo de corrigir possíveis danos decorrentes das violações.
Bibliografia:
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A proteção internacional dos direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos. São Paulo: Saraiva, 1991.
WEISS, Carlos. Direitos Humanos Contemporâneos. 2ª edição. São Paulo: Malheiros, 2010.
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS - www.corteidh.or.cr/
[1] TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A proteção internacional dos direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 631.
[2] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010. Versão em português disponível em http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_esp.doc
[3] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010. Versão em português disponível em http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_esp.doc
[4] Íntegra da decisão disponível em http://professormadeira.com/?s=direito+%C3%A0+mem%C3%B3ria+e+%C3%A0+verdade
[5] Íntegra da decisão disponível em http://professormadeira.com/?s=direito+%C3%A0+mem%C3%B3ria+e+%C3%A0+verdade
Estudante de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Estagiário de Direito do Ministério Público Federal - PR/SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ZAGO, Rodolfo Barbosa. Direito à memória e à verdade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 maio 2012, 05:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/29291/direito-a-memoria-e-a-verdade. Acesso em: 22 nov 2024.
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