Dúvidas não restam que o complexo e avançado contexto de globalização[1] e integração tem tornado conceitos anteriormente petrificados em suscetíveis de reformulações, melhor dizendo, de recompreensões, notadamente, como ocorre com o conceitos de soberania, nacionalidade, ordenamento jurídico, estatalidade.
Nesse sentido, vislumbramos também na América do Sul algumas evidências que demonstram essa realidade. A tentativa de integração, como é evidenciado pela cooperação dos países na busca de construir uma comunidade latino americana ou sul americana de nações, pode ser um indício de que alguns fenômenos observados na União Europeia possam estar presentes em nosso cenário.
Ultimamente a criação do Banco do Sul, o qual poderá viabilizar o processo de integração[2] sul americana, tal como ocorreu na União Europeia com a criação do Banco Central Europeu, demonstra a necessidade do estudioso do direito em fazer uso das construções teóricas formulados no contexto de integração europeu, na tentativa de compreendermos os fenômenos constitucionais que podem advir desse processo, ao tempo em que pode ensejar novas percepções científicas ante as especificidades da América do Sul.
Não obstante, as peculiaridades do fenômeno integracionista sul americano, entendemos ser possível a observação e análise de tal realidade tomando por base algumas construções teóricas provenientes do fenômeno europeu, quando, evidentemente, forem tomadas em alto grau de abstração para não precipitar conclusões ou condicionar o nosso objeto de reflexão.
O Banco do Sul, tem sua gênese formal, em 2007, quando em 9 de dezembro, em Buenos Aires, os presidentes Néstor Kirchner (Argentina), Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil), Evo Morales (Bolívia), Rafael Correa (Equador), Nicanor Duarte (Paraguai) e Hugo Chávez (Venezuela) assinaram a ata de criação da nova entidade, a qual em poucas palavras, terá cunho desenvolvimentista, servido de alternativa às instituições, já impopulares, "do Norte", configurando-se em um instrumento de investimento em áreas de infraestrutura e desenvolvimento social, tendo, inclusive, anuído a essa vertente, o atual Ministro da Fazendo Guido Mantega, que, quando questionado, afirmou que o Banco do Sul será "um Banco de desenvolvimento" enquanto que o FMI, um "banco para crises".
Em termos consensuais a estrutura da nova instituição financeira
"deverá ser a de um banco de desenvolvimento, designado tanto para financiar setores estratégicos na economia regional, desenvolvimento científico e tecnológico, como também projetos que busquem reduzir a pobreza"(MELLO, 2007, p.2).
A proposta oficial de criação deste Banco insere-se em um contexto de mudanças na conjuntura financeira regional em busca do resgate da soberania, do financiamento autônomo e justo e do rompimento do círculo vicioso de endividamento em que diversas nações, na busca de desenvolver-se, acabaram mergulhando.
Ademais, a integração sul americana certamente será resultado do desenvolvimento regional que somente poderá ser alcançado se superadas diversas limitações e barreiras de ordem econômica, geográfica e política, o que, pode ser auxiliado, mormente no que diz respeitos as duas primeiras limitações, por uma instituição financeira que fortaleça a região a partir de financiamentos disponibilizados em condições mais favoráveis do que as que até agora existem.
Demais disso, insta mencionar uma aspecto peculiar da instituição financeira sul americana. Ao que parece, ao contrário do que se visualizou no contexto europeu, em que o Banco Central Europeu surgiu como fruto de um contexto de cooperação, em que o diálogo entre os Estados nacionais possibilitou a implementação de uma instituição que o meio econômico exigia, diante da integração comercial e política já adiantada naquele continente.
No nosso cenário, o Banco do Sul surge, não olvidando o processo de integração sul americano iniciado em 1990[3], como uma proposta bilateral da Argentina (Néstor Kirchner) e Venezuela (Hugo Chavez), notadamente a Venezuelana, onde o viés "anti imperialista" salta aos olhos, onde o Banco do Sul é enxergado como uma forma de romper com o Banco Mundial e com o FMI ao tempo em que denota uma insatisfação com o processo lento de integração que vem se desenvolvendo em nosso continente. Não podemos esquecer, também, que a iniciativa venezuelana, com aparente status libertário, mostra-se como uma tentativa de boicotar a liderança brasileira no processo de integração sul americana, haja vista que este não participou da idealização inicial.
Nesse ponto, a proposta apresentada pela Venezuela e Argentina, não se coadunam[4] com as necessidades integracionistas, onde a igualdade entre os signatário é medida que se impõe, uma vez que o fortalecimento do grupo somente será alcançado por meio de criação de espaços democráticos e abertos de discussão, onde a transparência e o tratamento paritário sejam evidenciados, como assim já pugnaram o Equador em todas as oportunidades que este se manisfestou.
Deve-se ressaltar que o Banco do Sul surge antecipadamente, na tentativa de estimular o que no cenário europeu já existia ao tempo da criação do Banco Central Europeu[5]. Ou seja, enquanto na Europa a integração político, constitucional e econômica exigiu uma instituição financeira central, na América do Sul, o Banco surge de forma distinta, objetivando desenvolver a região estimulando o processo de integração. Em outras palavras uma necessidade de fato e de direito exigiu uma instituição central na Europa, enquanto entre nós, o desejo e a busca de uma adaptação frente a globalização impele uma integração, que hoje, já entende-se com indispensável, em razão de estarmos vivenciando um ambiente de constitucionalismos cooperativo, como preconiza Peter Härbele.[6]
Percebe-se que o cunho desenvolvimentista é o que se destaca no banco sul americano, o que já se mostrar como positivo, pois, o desenvolvimento estrutural e comercial da região pode viabilizar uma integração mais intensa tal como a visualizada no velho continente.
Nesse sentido, aduz Marina Furtado, "O Banco do Sul pode, efetivamente, representar uma oportunidade inédita para a América do Sul em termos de reconquista da soberania, autonomia financeira e fortalecimento do processo de integração regional."(FURTADO, 2008, p. 186)
Nos tempos presentes os limites territoriais não inviabilizam as relações sociais, os Estados necessitam estar em permanente estado de cooperação e diálogo, com o objetivo de fazer frente às novas necessidades e desafios que transpõem a barreira da estatalidade, o que mostra que, em aspectos onde a influência global atua com mais veemência, faz-se necessário que tal temática seja não mais objeto de discussão e controle exclusivamente estatal mas torne-se objeto de cessão à instancias supra estatais, o que no nosso caso ainda se mostram insipientes.
Apesar da necessidade, já constatada, inclusive pelas instâncias representativas, da construção de um cenário supra estatal, em que a formação de comunidades integradas em face da realidade global se mostra necessária, esse processo encontra diversas dificuldades que inviabilizam a integração[7]. Tal processo exige o preenchimento de algumas condições, as quais foram delineadas pela doutrina, que demonstram a necessidade de preenchê-las sob pena de não logar exito no processo de integração[8].
Nesse sentido, barreiras políticas e econômicas necessitam de medidas que as transponham. Em outras palavras, as assimetrias regionais e a instabilidade interna se mostram como óbices a construção de uma comunidade sul americana mais consolidada, o que faz com o que o Banco do Sul apresente esse cunho desenvolvimentista com vistas a superar as limitações existentes.
A implementação do Banco do Sul que como já dito acima, faz parte de todo o processo de integração sul americano. Recentemente, o Congresso Nacional argentino aprovou o projeto que ratifica a criação do Banco do Sul, a medida foi aprovada por unanimidade pelos 210 deputados do Congresso, depois de já ter recebido o aval do Senado. Todavia, o funcionamento da instituição depende da aprovação dos Congressos de outros integrantes do grupo de países, como é o caso do Brasil.
A morosidade na ratificação brasileira justifica-se em face dos interesses financeiros do Brasil. Pois, sabemos que a nossa nação dispõe de uma instituição financeira (BNDES) que atua na área de infra estrutura e financiamento na América do sul, apresentando-se como a instituição mais forte na região. Assim, enquanto o Banco do Sul não galgar seus rumos, o BNDES, encontra-se em uma posição conformável que garante a hegemonia brasileira na contexto sul americano.
Todavia, quando objetiva-se constituir uma comunidade integrada de nações algumas concessões econômica devem ser feitas por àqueles que encontram-se em um situação superior. Quando de fato os ideais de cooperação constitucional estão sendo abraçados alguns interesses nacionais imediatos devem ser abortados em nome de interesses supranacionais que de forma mediata trarão seus benefícios.
Urge nesse ponto mencionar uma aspecto deveras importante para a integração sul americana o qual se relaciona com a legitimidade e participação dos "nacionais", dos cidadãos. Nesse ponto, as críticas[9] se mostram incisivas diante da ausência de debates e participação popular, o que, obviamente, não se coaduna com os ideais democráticos, os quais exigem mecanismo de discussão onde o diálogo deve ocorrer também no âmbito interno, uma vez que a integração deve ocorrer com a interação dos integrantes dos respectivos corpos sociais.
Nessa linha de raciocínio, trazemos a colação,
"o debate sobre o Banco do Sul tem sido marcado pela escassez e pelo desencontro de informações, resultantes da maneira pouco transparente com a qual os governos, em especial o brasileiro, vêm conduzindo as negociações para a criação da instituição financeira multilateral regional. Os rumos deste verdadeiro "não debate"sobre o Banco do Sul sugerem não apenas a complexidade do tema, mas, sobretudo, o desacordo entre os países negociadores"(STRAUTMAN e SOARES, 2007, p. 1)
É imperioso que a integração sul americana e mais especificamente a consolidação do Banco do Sul, deve ser reflexo da ordem constitucional democrática erigida nos Textos constitucionais dos Estados sul americanos, uma vez que os povos deram aos seus representantes instrumentos para o desenvolvimento regional que devem encontrar fulcro em esquemas democráticos, transparentes, participativos e responsáveis, em um linha habermasiana de participação comunicativa.
Assim, certo é que a consolidação do Banco do Sul pode se mostrar como um importante instrumento de integração sul americano, o que se mostra coerente com os anseios pós modernos, onde a realidade social e político exigem novas formas de ultrapassar e solucionar as dificuldades existentes.
REFERÊNCIAS
CANOTILHO, Joaquim José Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 2000.
FURTADO, Fabrícia, Integração financeira da América doSul. Banco do Sul: mais do mesmo ou oportunidade histórica?, OIKOS Revista de economia heterodoxa nº 9, ano VII ,2008 ISSN 1808-0235.
GISBERT , Rafael Bustos, La constitución red : un estudio sobre supraestatalidad y constitución, 1ª ed. Bilbao ,Oñati, 2005
HÄRBELE, Peter, Pluralismo y Constitución: estudios de teoria constitucional de l a sociedad abierta, Tecnos, 2002.
MALLMANN, Maria Izabel, Análise institucionalista da integração sul-americana, Civitas, Porto Alegre, v.10, n.1, p. 11-22. jan-abr.2010.
MELLO, Ruth Espínola Soriano, A iniciativa do Banco do Sul. in www.equit.org.br/docs/artigos/bancodosul.pdf acesso em 10/10/11
STRAUTMAN, Gabriel, SOARES, O Banco do Sul desde a perspectiva brasileira , 2007,in http://www.oid-ido.org/IMG/pdf/Texto_Ponencia_Gabriel_Strautman_1_.pdf acesso em 10/10/2011.
[1] Doutrina, atualizado em 03 de julho de 2012.O texto é fruto do desenvolvimento das atividades do Projeto de Pesquisa Novos Paradigmas Constitucionais sob a orientação do professor Dr. Hugo César Araújo de Gusmão.
[2] Inobstante exista uma dupla acepção da expressão integração, uma enquanto situação dada, construída, e outra enquanto processo em curso, utilizaremos, nesse trabalho, a perspectiva de integração enquanto processo, onde "Entende-se que, como processo, a integração resulta de iniciativas levadas a termo em diversas frentes, pela adesão dos estados e de outros agentes a variados regimes internacionais".( MALLMANN, 2010, p.13)
[3] É cediço que o processo de integração sul americana é um fenômeno consideravelmente novo, "a integração sul-americana é aqui identificada pelos compromissos assumidos ao longo da década de 1990; lançados durante a 7ª Cúpula do Grupo do Rio, de outubro de 1993, seguidos pelas Cúpulas de presidentes da América do Sul (2000, 2002, 2004), pela criação da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), em 2000, da Comunidade Sul-Americana das Nações (Casa) e da União das Nações Sul-Americanas (Unasul), em 2007. Há quem reporte o início desse processo à assinatura do tratado de Assunção, que criou o Mercado Comum do Sul (Mercosul) em 1991. Contudo, considera-se aqui que o entendimento quanto à pertinência e necessidade de alargar o Mercosul à Comunidade Andina (CAN) é posterior a essa data e corresponde à mudança de entendimento quanto à viabilidade do Mercosul e aos interesses do Brasil em um processo de integração regional.
Ao longo desses anos, o processo sul-americano de integração tem avançado em algumas dimensões, embora em ritmo considerado insuficiente face as suas necessidades de desenvolvimento. Isso se deve em grande medida às situações internas críticas. Em vários quesitos (infraestrutura, instituições, educação, inovação) os países sul-americanos encontram-se bem abaixo da média mundial (Castilla, 2008). Decorrem daí reduzidos estímulos à progressão da integração regional, uma vez que a agenda interna é altamente absorvente."( MALLMANN, 2010, p.15)
[4] Nesse sentido vejamos algumas considerações tecidas pela economista Fabrícia Furtado, "Para garantir uma autonomia financeira da região sem reproduzir o modelo das IFM, é preciso, primeiro, modificar os projetos nacionais e fortalecer a integração sul americana em outras bases. A integração entre os países da região precisa ser colocada em prática através de políticas de complementaridade, acima de tudo. Isso passa pela resolução real dos conflitos e igualdade de participação e poder de decisão nos espaços de integração já existentes e naqueles a serem criados. Passa, principalmente,pela priorização de estratégias de desenvolvimento voltadas para a superação das assimetrias e da exclusão, pela regulação da economia e recuperação do papel do Estado como promotor do bem estar socioambiental. (...) A proposta de um Banco do Sul, apresentada pela Argentina e pela Venezuela reflete as contradições do governo venezuelano que (...) declarou que no Banco do Sul não haverá hegemonia, que as decisões serão tomadas em consenso mas, por outro lado, apresentou uma proposta que, se implementada, irá promover as assimetrias entre os países, e não a igualdade"(FURTADO, 2008, p.186-187)(grifos nossos)
[5] A medida que criava o Mercado único (1992) a União Europeia iniciou igualmente o processo de União Econômica e Monetária. Ao adotar um quadro comum de disciplina orçamental e de supervisão multilateral das políticas econômicas do Estados Membros, as políticas nacionais convergiram, criando as bases para a moeda única, o euro em 1999. O Banco Central Europeu conduz atualmente a política monetária, a fim de manter a estabilidade dos preços na zona do euro.
A transferência da política monetária para o nível comunitário envolveu alterações substanciais ao enquadramento dos bancos centrais da Europa. O estabelecimento de uma nova organização monetária supranacional, o BCE, e a integração dos BCN num sistema europeu de bancos centrais, são representativos da supranacionalização do Banco Central a nível europeu, onde a soberania monetária foi transferida para o nível supraestatal.
[6] HÄRBELE, Peter, Pluralismo y Constitución: estudios de teoria constitucional de l a sociedad abierta, Tecnos, 2002.
[7] Aqui, enquanto realidade posta, construída. ( MALLMANN, 2010, p.13)
[8] Em razão da exiguidade espacial e delimitação do objeto do presente trabalho sugerimos a leitura complementar acerca das condições necessárias à integração regional. Ver : DEUTSCH, Karl. A integração política: condições fundamentais e processos. In: BRAILLARD, Philippe. Teorias das relações internacionais. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1990. p. 363-384 ; MALLMANN, Maria Izabel, Análise institucionalista da integração sul-americana, Civitas, Porto Alegre, v.10, n.1, p. 11-22. jan-abr.2010.
[9] Vejamos , por todos, Fabrícia Furtado: "O maior problema em relação à criação do Banco do Sul tem sido a falta de transparência e participação da sociedade civil no processo. Isso é muito grave porque propostas autônomas de financiamento ao desenvolvimento só podem ter sucesso se forem construídas coletivamente, contando com as contribuições de organizações, movimentos sociais e da academia. As poucas informações divulgadas evidenciam a necessidade da sociedade civil se incorporar nesse debate para mudar os rumos do processo." ( FURTADO, 2008, p. 179) e Ruth Espínola Soriano de Mello : "A fundação e consolidação desta instituição dependem das negociações em curso as quais, infelizmente, até o momento carecem de transparência já que têm se restringido às autoridade executivas nacionais, estando longe dos Parlamentos, da sociedade civil e movimentos sociais. Estes últimos podem também dispor dos espaços já institucionalizados de participação e controle social para tal empreitada.( MELLO, 2007, p. 3)
Bacharelando em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba - UEPB. Membro do Grupo de Pesquisa Novos Paradigmas Constitucionais. Estagiário do Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba. Monitor de Direito Processual Penal I.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Cleyston Wallace de Lima. O Banco do Sul e a realidade europeia: algumas peculiaridades e desafios no cenário de integração sul americano Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 jun 2012, 11:49. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/29455/o-banco-do-sul-e-a-realidade-europeia-algumas-peculiaridades-e-desafios-no-cenario-de-integracao-sul-americano. Acesso em: 26 nov 2024.
Por: Isnar Amaral
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