Dra. Silvia Arenales V. Tiezzi – Advogada; Especializanda em Direito Constitucional e Administrativo pela Escola Paulista de Direito.
Dr. Carlos Eduardo M. Feliciano – Advogado; Especialista em Direito Constitucional pela Escola Superior de Direito Constitucional; Especializando em Gestão Jurídica (MBA - Master of Business Administration) pela Escola Paulista de Direito.
Em 5 de outubro de 1988, foi promulgado o maior documento de liberdade, dignidade, justiça social e democracia em nosso país. Neste ato, o então presidente da Assembléia Nacional Constituinte, deputado Ulysses Guimarães, ao erguer em suas mãos a nova Constituição Federal brasileira, pediu que Deus nos ajudasse a cumprir tudo que ali se almejava e defendia.
A tentativa de consolidar o Brasil como uma nação verdadeiramente justa, mais do que justifica o pedido desta tão elevada colaboração para o fiel cumprimento das regras contidas na intitulada Constituição-Cidadã. Entre os principais destaques contidos nesta nova Carta Republicana, encontram-se os direitos e garantias dos cidadãos, sob uma visão de um verdadeiro Estado Democrático de Direito.
Consagrado em seu artigo 5º, inciso LV, surge uma nova garantia de um devido processo legal, estendido agora ao mero ‘interessado litigante’ dentro de um processo administrativo, que assim como os ‘acusados’ em geral, possuem o direito ao contraditório e à ampla defesa, por todos os meios e recursos garantidos por lei.
A partir deste momento nasciam oficialmente as garantias processuais administrativas, tendo como principal objetivo equilibrar o relacionamento Estado-Sociedade, através da aplicação de limitações do poder estatal, sobre a garantia dos direitos individuais do administrado.
Transcorridos quase 24 anos da introdução das referidas inovações, muitas questões conflitantes surgiram amparadas em outras garantias específicas, entre elas a chamada Autotutela da Administração Pública, que garante a ela a possibilidade de verificar a legalidade de seus atos, podendo anulá-los quando compreenderem vícios que os tornem ilegais, ou revogá-los por mero motivo de conveniência ou oportunidade.
No entanto, embora esta autotutela administrativa tenha como objetivo final a proteção da sociedade, jamais poderia ser utilizada em detrimento das garantias constitucionais que asseguram ao interessado o efetivo exercício do contraditório e à ampla defesa.
Em total contramão com as garantias constitucionais, e sob o manto da supremacia do interesse público, a Administração Pública reiteradamente age de forma arbitrária, sem conferir oportunidade de defesa àqueles diretamente atingidos por decisões invalidatórias.
Diante dos diversos casos de desrespeito à garantia do devido processo administrativo, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, nos autos do Recurso Extraordinário nº 594.296, decidiu questão paradigma da Repercussão Geral sobre o tema de anulação de ato administrativo pela Administração Pública, com reflexo em interesses individuais, sem a instauração de procedimento administrativo.
O referido recurso foi recebido pelo STF em 13 de outubro de 2008, distribuído ao então Ministro Menezes Direito, e posteriormente transferido ao Relator Ministro Dias Toffoli.
Em análise sobre a questão trazida no recurso interposto pelo Estado de Minas Gerais, foi reconhecida a existência de Repercussão Geral da questão suscitada, nos seguintes termos: “DIREITO ADMINISTRATIVO. ANULAÇÃO DE ATO ADMINISTRATIVO CUJA FORMALIZAÇÃO TENHA REPERCUTIDO NO CAMPO DE INTERESSES INDIVIDUAIS. PODER DE AUTOTUTELA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. NECESSIDADE DE INSTAURAÇÃO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO SOB O RITO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL E COM OBEDIÊNCIA AOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL”.
Assim, levado o recurso a julgamento, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em decisão proferida em 21 de setembro de 2011, transitada em julgado em 23 de fevereiro de 2012, entendeu por bem negar provimento ao recurso do Governo de Minas Gerais, reconhecendo a obrigatoriedade de observância ao princípio constitucional do devido processo administrativo, ou seja, qualquer revisão, anulação, cancelamento ou revogação de atos que interfiram diretamente no campo do interesse individual do administrado, deverá obrigatoriamente ser submetido ao devido processo administrativo, como forma de garantir todos os meios de defesa do interresado.
Neste sentido, restou definido algo que a própria Constituição Federal já garantia, mas que a Administração Pública insistia em não obedecer. Agora, qualquer ato administrativo que interfira diretamente em interesse do administrado/servidor, terá que observar todas as garantias de defesa, antes que sejam atingidos pela pretensão administrativa.
Com esta decisão, demonstra-se que a Autotutela Administrativa possui limites que não podem ultrapassar o Estado Democrático de Direito, que garante aos interessados a devida formalização de um processo administrativo, sempre que houver a possibilidade acarretar restrições ou perdas de direitos, ou de anulação ou alteração de situações anteriormente reconhecidas como válidas aos interessados, pela pura presunção de legitimidade.
Na vida profissional dos servidores públicos, a decisão é mais uma garantia de que a aplicação de qualquer penalidade ou a restrição de qualquer direito só será válida se forem observados os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, dando oportunidade ao servidor de manifestar sua contrariedade por todos os meios de defesa legalmente admitidos.
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