Resumo: Infelizmente a violência desenfreada não é raridade nos noticiários. Em pouco tempo será necessário estabelecer indicação severa de censura para a programação jornalística, tal qual nos filmes contendo cenas fortes. São assaltados, homicídios, latrocínios, roubos, estupro, lesão corporal, tráfico e por aí segue o passeio ao Código Penal Brasileiro. Inúmeros são os crimes e contravenções, e a resposta para a sociedade parece uníssona: evitem ser a próxima vítima. A insegurança tem pairado. Conquanto, as incansáveis tentativas de contenção por parte dos agentes a quem são conferidos os poderes de polícia, a sensação é de verdadeira frustração, até mesmo porque estes também se tornaram alvos. O combate ao crime é fundamental, todavia, o respeito à vítima e sua família também o é.
Palavras-chave: Vítima; Violência; Direitos Humanos.
1. Introdução
Reza o caput do art. 5º da Constituição Federal que não há diferenciação entre os indivíduos, sendo inviolável o “direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, e à propriedade”. Inconcusso o dispositivo constitucional, porém, sua aplicação tem sido desvirtuada senão ignorada em muitos casos envolvendo as vítimas de violência.
Cada vez mais se tornou impraticável pelo cidadão de bem dispor dos direitos mencionados em considerado preceito constitucional. Iniciando com a preservação da própria vida, tarefa das mais difíceis hodiernamente, pois exemplificando, em decorrência da posse de um mísero relógio aquela é ceifada sem maiores cerimônias.
Seguindo pela liberdade, em tempos de descomedida criminalidade a busca por esta revela-se quase um sonho, como almejá-la ante a falta de segurança? Vive-se um período de regime semi-aberto, onde nos é permitido trabalhar, estudar, desfrutar de restritos momentos de lazer até certo horário devendo o recolhimento ao lar ocorrer antes do anoitecer, todavia, para aqueles que exercem atividades noturnas a sorte e a proteção divina são os únicos amuletos. Atinente a propriedade, tentar mantê-la é um atentado contra a vida, a privação da liberdade e um desafio à segurança.
Por fim a igualdade, talvez seja o único direito que tenha sido respeitado parcialmente. Antes mesmo de justificar esta asseveração é bom salientar que não é a intenção qualquer apologia ao tratamento desumano a quem quer que seja, mas daí aceitar com olhos de misericórdia igualar a vítima ao delinquente tem sido uma verdadeira injustiça.
Em esplêndida oratória a Dra. Ana Beatriz Barbosa Silva evidenciou em um trecho de sua apresentação no 1º Seminário Nacional das Vítimas de Violência que referidas vítimas têm sido levadas a julgamento por seu comportamento. Por comungar com pertinente opinião é que nasceram as idéias aqui expostas.
2. A vítima
A despeito da conceituação sobre a vítima interessante a título de informação a referência feita no artigo “Breves linhas sobre vitimologia, redescobrimento da vítima e suas várias faces: algumas questões relevantes” (MOTA, 2011/2012, p.641), cuja transcrição segue abaixo.
Segundo a Declaração dos Princípios Fundamentais de Justiça relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder, adotada pela Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), por sua Resolução nº 40/34 de 29 de novembro de 1985, entendem-se por “vítimas” as pessoas que, individual ou coletivamente, tenham sofrido um prejuízo, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou mental, um sofrimento de ordem moral, uma perda material ou um grave atentado aos seus direitos fundamentais, como consequência de atos ou omissões violadores das leis penais em vigor num Estado-membro, incluindo as que vedam o abuso de poder (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1985).
Todavia, para que este trabalho não tome ares semelhantes à defesa de uma tese abrangendo diversos tipos de vítimas tratados em estudos específicos, entenda-se por vítima no caso em apreço, apenas aquela pessoa comum alheia à conduta criminosa, sem quaisquer antecedentes e que seja sujeito passivo de um dano físico, psicológico e ou de natureza moral e financeira.
O cidadão honesto, trabalhador, honrado, que luta diariamente para prover o sustento de sua família, concretizar projetos pessoais e manter a paz em seu lar, sendo extensiva tal conceituação da vítima direta igualmente aos familiares. Pois, este é o conceito que tem sofrido uma distorção imensurável.
2.1 Os comportamentos “condenáveis”
Na mídia é constante a presença de especialistas em segurança abordando o tema criminalidade e aconselhando medidas preventivas imputadas exclusivamente ao cidadão. Tem havido certa tendência nos noticiários que ao explicitar os fatos oriundos da ação criminosa evidenciar as atitudes nas quais incorrera a vítima, antes mesmo de mencionar qual o delito cometera o agressor.
A sensação da culpa é lançada naquela como se fosse um crime horroroso parar respeitando o sinal vermelho em uma avenida movimentada após as vinte horas, ou ainda manter seu estabelecimento comercial aberto por igual período. Comprar o veículo de sua preferência e estacioná-lo de frente a residência de um parente e ali aguardar sua chegada é um pecado capital. Freqüentar salões de estética também tem se tornado tenso.
A vítima tem sido tratada como seu próprio algoz. A população avessa ao “mundo do crime”, por imposição bruta de uma minoria pertencente a este, tem sido coagida a literalmente esconder-se em presídios residenciais individuais cujo ônus da mantença é atribuído exclusivamente a cada cidadão. Porém, merece ressalva que a proteção dos fortes particulares nem de perto se iguala à dos marginais garantida por significativo armamento de guerra.
Realizar refeições em restaurantes tornou-se um risco duplo, primeiro pela exposição pessoal estando à mercê de arrastões e segundo pela ausência do lar deixando-o tal qual um bazar caritativo aonde qualquer um sem muitos escrúpulos chega e carrega o que lhe for conveniente. E mais, caso os indesejáveis “visitantes” não entendam por bem aguardar os proprietários do imóvel saqueado para agredi-los, já pode lançar nas estatísticas como uma enorme satisfação.
Segundo comentado alhures o direito a liberdade está se esvaindo, e não bastasse a frustração que isso gera ainda tem o fato da vítima ser praticamente obrigada a justificar seus atos para não parecer que fora esta a única responsável por ser molestada.
É bastante desanimador ouvir ou ler certos comentários sejam em audiências, jornais, revistas ou páginas virtuais, depreciando a vítima. Recentemente um homicídio ganhou grande repercussão na mídia, um empresário fora privado de sua vida por uma traição. Em poucos dias algumas manifestações de apoio apareceram em prol da suposta “ofendida moralmente” como um meio de lhe conferir a violenta emoção como atenuante.
Tão graves quanto o caso citado são as ocorrências envolvendo anônimos onde a família da vítima é obrigada a presenciar por dias pessoas até mesmo desconhecidas argumentarem: “mas a moça usava roupas provocantes, portanto, o estupro foi consequencia”, ou ainda “o vizinho era exibicionista, por que comprou aquele veículo sabendo da onda de roubos?”, e por ai seguem as condenações prematuras a despeito do comportamento da vítima.
Manifestação valiosa está expressa no trabalho intitulado “Dos Direitos Humanos da Vítima de Violência e a Responsabilidade do Estado” (RAMOS, 2010), do qual fora extraído o trecho a seguir, onde se encontra amparo as asseverações contidas neste trabalho.
São tantos os direitos dos criminosos, são tantas as teorias que justificam os seus atos, atribuindo a culpa à sociedade, ao sistema capitalista e à desigualdade social, que a vítima é praticamente considerada culpada por ter sido brutalizada, ofendida, violentada nos seus direitos mais elementares.
Esta é a “criminalização” da vítima. Condutas então aceitas como normais perante a sociedade antes do fato delituoso, são destorcidas fazendo parecer que aquela foi igualmente responsável pela violência que sofrera. Partindo do contexto exposto neste artigo de opinião, fica fácil imaginar que não será surpresa se em questão de pouco tempo for incluído no Código Penal um artigo cujo caput será: “Do induzimento ao crime pela vítima”.
3. Garantia aos direitos humanos da vítima e de seus familiares
Além das disposições constitucionais tratadas em momento anterior, de acordo com o artigo III da Declaração Universal dos Direitos Humanos, “Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. A assegurar a plenitude de tais direitos tem-se a figura do Estado por suas autoridades.
Todavia, ainda que não pairem dúvidas de que a vítima e seus familiares enquanto pessoas também estejam inclusos como sujeitos passíveis de proteção, a realidade não se revela tão satisfatória. Em nosso País não são comuns e muito menos divulgados programas relacionados à assistência àqueles.
Neste contexto é patente a violação ao art. 245 da Carta Magna que dispõe in verbis:
A lei disporá sobre as hipóteses e condições em que o Poder Público dará assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crime doloso, sem prejuízo da responsabilidade civil do autor do ilícito.
São dois pesos e duas medidas com certeza, pois ao passo que criminosos são amparados por representantes de organizações em defesa dos direitos humanos a vítima somente é lembrada enquanto manchete de noticiário. Novamente mister salientar que ninguém deve ser submetido a qualquer desrespeito, porém, a postura do Estado frente a questão ora levantada faz com que a noção de cidadania e democracia se tornem cada vez mais sinônimo de utopia, um verdadeiro retrocesso em termos de civilização.
Ainda que alguns Estados defendam a criação e manutenção de centros ou núcleos cuja finalidade é a prestação de apoio social, jurídico e psicológico, na prática é difícil relacionar exemplos em funcionamento. Para não parecer demasiadamente pessimista no site da subsecretaria de promoção e defesa dos direitos humanos - SPDDH estão relacionados centros de assistência apoiados por esta em todo País.
Todavia, em análise a mencionada página virtual infere-se que são poucos em comparação com a vastidão de nosso território e o elevado número de crimes e obviamente respectivas vítimas. Principalmente no interior é raridade a oferta do necessário auxílio.
Assim, não sendo satisfatório todo o sofrimento sustentado pela vítima e seus familiares com a divulgação da ocorrência, estes ainda são obrigados a conviver com os traumas deixados sem qualquer ajuda profissional. Não adianta o texto constitucional delegar obrigações se há omissão por quem de direito no cumprimento das normas.
4. Considerações Finais
Inconcusso é o desamparo vivenciado pelas vítimas de violência. Questão inacreditavelmente pouco debatida quando se trata de direito penal, apesar de causar repugnância, lamentavelmente não tem recebido a devida atenção no sentido de providências para reverter tamanha injustiça.
Além disso, a forma como tem sido tratada a vítima revela-se até mais repulsiva. Atribuir à mesma a responsabilidade por ter sido agredida, vez que, seu comportamento supostamente contribuiu para a prática do crime é desumano.
Desse modo, antes de expor a intimidade do ofendido é de bom alvitre raciocinar que a vítima criminal não se trata de mera estatística, mas sim de um cidadão, um familiar, um amigo, um ente querido que não está sozinho no mundo e tem quem sofra com ele e por ele.
Criminalizar a conduta da vítima é sinônimo de desrespeito. Ninguém em sã consciência anda de transporte coletivo por gosto e para ser incendiado, feito refém, assaltado. O ser humano adquire bens para suprir suas necessidades e também para adequar ao padrão de consumo criado pela sociedade e não para ser furtado.
As vias públicas se tornaram passarelas do crime porque falta segurança. Porque a resposta do Estado não tem sido plenamente eficaz. Porque as políticas de educação, geração de emprego, são insuficientes.
Finalizando, é inconcusso que a adoção de atitudes preventivas por parte do indivíduo é um meio de evitar certos dissabores. Porém, “criminalizar” o comportamento normal e rotineiro das vítimas de violência, notoriamente é a mais ofensiva distorção de um conceito.
Referências Bibliográficas
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Advogada graduada pelo Centro de Ensino Superior de Catalão - CESUC. Pós-Graduada Latu Sensu em Gestão e Educação Ambiental pela Fundação Carmelitana Mário Palmério - FUCAMP. Chefe de Departamento da Assistência Judiciária Municipal de Monte Carmelo/MG no período de 2009 a 2012. Vice-presidente da 88ª subseção da OAB/MG, gestão 2012/2015. Coordenadora do Escritório de Assistência Jurídica da Fundação Carmelitana Mário Palmério - FUCAMP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETA, Maria Rosa de Oliveira. "Criminalização" da vítima de violência: a distorção de um conceito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 set 2012, 08:09. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/30541/quot-criminalizacao-quot-da-vitima-de-violencia-a-distorcao-de-um-conceito. Acesso em: 22 nov 2024.
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