Resumo: O presente artigo visa abordar a obrigatoriedade do alcance da finalidade na prática dos atos administrativos. É na própria lei que está contida a finalidade pela qual foi editada, seja explícita ou implicitamente, dirigindo-se em última análise ao interesse público. Portanto, não poderá haver na atuação administrativa o não atendimento a finalidade determinada em lei, sob pena de nulidade, por configurar-se desvio de finalidade. Esse desvio de finalidade está presente em atos de agentes públicos que visem favorecer a si ou a outrem, prejudicar outrem, bem como os que ainda de interesse público não se referem à finalidade específica da previsão legal.
Palavras-chave: finalidade. interesse público. desvio de finalidade. atos discricionários
Sumário: 1. Introdução, 2. Finalidade dos atos administrativos, 3. Dos princípios da supremacia do interesse público, da indisponibilidade do interesse público e o desvio de finalidade, 4. Modalidades de desvio de finalidade, 5. Prova de desvio de finalidade, 6. A finalidade nos atos administrativos discricionários, 7. Conclusão.
1. Introdução
Para Celso Antonio Bandeira de Mello, a finalidade é o elemento orientador de toda atividade administrativa, pois é por meio dela que se compreende o objetivo em vista do qual a lei foi elaborada. E complementa com os ensinamentos de Maria Sylvia Zanella di Pietro: “Para cada finalidade que a Administração pretende alcançar existe um ato definido em lei, pois o ato administrativo caracteriza-se por sua tipicidade, que é o atributo pelo qual o ato administrativo deve corresponder às figuras definidas previamente em lei como aptas para produzir determinado resultado”. (Apud Mello, Celso Antonio Bandeira de, Curso de Direito Administrativo, 29° ed.,rev. e atual., São Paulo: Malheiros, 2011, págs. 109 e 409).
Em outras palavras, toda atuação administrativa deve dirigir ao alcance da finalidade determinada em lei, sabendo que a satisfação do interesse público é a finalidade geral a ser alcançada com a prática de qualquer ato administrativo. Contudo, há também a finalidade específica que é o objetivo imediato a ser atingido.
Portanto, não poderá a Administração Pública praticar atos que se distanciem do fim legal. Condutas que atendam interesse particular ou de terceiros ou as que embora de interesse público não correspondam ao objetivo específico do estipulado pela lei, deverão ser invalidadas pela própria Administração ou pelo Poder Judiciário, por configurar-se desvio de finalidade.
Essas atitudes ilegais apresentam dificuldades em suas comprovações por se revestirem aparentemente pela legalidade. Contudo, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que as provas se darão por meio de indícios convergentes.
2. Finalidade dos atos administrativos
A finalidade é um princípio constitucional implícito que pertence ao princípio expresso da impessoalidade e este provém da isonomia, conforme o entendimento da doutrina administrativa. Nas explicações de José dos Santos Carvalho Filho, o princípio da impessoalidade, presente no artigo 37 caput da Constituição Federal, objetiva oferecer tratamento igualitário aos administrados que se encontrem em situação jurídica semelhante, sendo uma vertente do princípio da isonomia. Contudo, a impessoalidade tem sua expressão precisa quando a Administração busca a satisfação do interesse público e não de agentes ou terceiros, evitando favoritismo ou perseguições, refletindo assim a aplicação do princípio da finalidade. (Filho, José dos Santos Carvalho, Manual de Direito Administrativo, 20° ed., rev., ampliada e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris,2008, pág.19).
Para Dirley da Cunha Junior, a finalidade é “um resultado ou bem jurídico que a Administração Pública quer alcançar com a prática do ato, qual seja, o fim público, que nada mais é senão servir ao interesse da coletividade”. (Junior, Dirley da Cunha, Curso de Direito Administrativo, 5° ed., JusPodivm, 2007, pág.85).
A satisfação do interesse público é uma finalidade geral ou mediata da prática do ato administrativo, que poderá estar expresso ou implícito na lei. Mas, existe também a finalidade específica, que é o fim direto ou imediato que a lei pretende alcançar. Assim, nos ensina Maria Sylvia Zanella Di Pietro: “em sentido amplo, a finalidade sempre corresponde à consecução de um resultado de interesse público. Já sob um sentido restrito, a finalidade é o resultado específico que cada ato deve produzir, conforme definido em lei”. Assim, a finalidade é um elemento sempre vinculado ao que está estipulado em lei e todo ato administrativo terá uma finalidade geral e uma finalidade específica. (Pietro, Maria Sylvia Zanella di, Direito Administrativo, 21° ed., São Paulo: Atlas, 2007, pág. 198).
3. Dos princípios da supremacia do interesse público, da indisponibilidade do interesse público e o desvio de finalidade.
Segundo Celso Antonio Bandeira de Mello, a finalidade é o elemento de validade teleológica dos atos administrativos que explica, justifica e atribui sentido a uma norma. É por meio dela que se compreende a racionalidade que lhe conferiu a elaboração, indicando a sua correta aplicação. (Mello, Celso Antonio Bandeira de, Curso de Direito Administrativo, 29° ed., rev. e atual. São Paulo: Malheiros: 2011, pág. 109).
A finalidade é o requisito obrigatório para guiar toda atividade administrativa no alcance do interesse público. Tal requisito vem reforçado por dois princípios entendidos como “as pedras de toque” da Administração Pública, quais sejam: a supremacia do interesse público e a indisponibilidade do interesse público.
Ambos os princípios se relacionam. O princípio da supremacia do interesse público, apesar de não está presente diretamente em todos os atos administrativos, caracteriza-se em toda a atuação do Estado seja objetivada pelo o interesse coletivo. De acordo com Maria Sylvia Zanella Di Pietro, tem-se a presença desse princípio quando a lei confere a Administração os poderes de desapropriar, de requisitar, de intervir, de policiar, de punir, por ter o objetivo de alcançar o interesse geral que não pode ceder perante o interesse individual. (Pietro, Maria Sylvia Zanella di, Direito Administrativo, 21° ed., São Paulo: Atlas 2007, pág. 65).
Já o da indisponibilidade do interesse público configura-se quando a Administração Pública por ser gestora, e não titular, de bens e interesses da coletividade, não poderá praticar atos que signifiquem renuncia a direitos do Poder Público.
Como nos leciona Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino: “O administrador não pode agir contrariamente ou além da lei, pretendo impor o seu conceito pessoal de interesse público, sob pena de inquinar seus atos de desvio de finalidade. Deve simplesmente, dar fiel cumprimento à lei, gerindo a coisa pública conforme o que na lei estiver determinado, ciente de que desempenha o papel de mero gestor de coisa que não é sua, mas do povo”. E afirma que a Administração deve atuar em direção a atender o que está disposto na lei, único instrumento hábil estabelecer o que seja de interesse público. (Alexandrino, Marcelo e Paulo, Vicente, Direito Administrativo Descomplicado, 19° ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense: São Paulo: Metodo, 2011, pág. 187).
Conforme Gasparini, não existe ato administrativo sem um fim público a sustentá-lo. O ato administrativo desinformado de um fim público e, por certo, informado por um fim de interesse privado, é submetido à nulidade por desvio de finalidade. (Gasparini, Diogenes, Direito Administrativo, 12° ed., São Paulo: Saraiva, 2007, pág. 64).
A Lei Regulamentar da Ação Popular (Lei de n° 4.717, de 29/6/65) no seu artigo 2°, parágrafo único, alínea “e”, dispõe que o desvio de finalidade é um vício que provoca a nulidade do ato administrativo lesivo do patrimônio público e se configura quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência.
Em outras palavras, o desvio de finalidade ou de poder - uma das espécies de abuso de poder - ocorrerá quando a autoridade mesmo agindo nos limites de sua competência, pratica o ato por motivos ou fins distintos dos determinados pela lei ou cobrados pelo interesse público, gerando um vício insanável com a obrigatória nulidade do ato.
4. Modalidades de desvio de finalidade
De acordo com a não obediência a qualquer das finalidades do ato administrativo – geral ou específico – teremos duas modalidades de desvio de poder, como nos ensina Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino: “1) o agente procura uma finalidade alheia ou contrária ao interesse público; 2) o agente pratica um ato condizente com o interesse público, mas a lei não prevê aquela finalidade específica para o tipo de ato praticado”. (Alexandrino, Marcelo e Paulo, Vicente, Direito Administrativo Descomplicado, 19° ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense: São Paulo: Metodo, 2011, pág. 449).
Na primeira modalidade de desvio de finalidade temos quando o ato praticado pelo agente tem o fim de prejudicar ou favorecer alguém. Exemplo disso é quando a autoridade administrativa desapropria um imóvel no intuito de prejudicar o seu proprietário por ter com ele um desafeto. Ou pode acontecer de a Administração Pública oferecer vantagens somente para agentes protegidos, como acontece no nepotismo.
Já na segunda modalidade ocorrerá quando a Administração Pública remove um funcionário com a vontade de puni-lo, afastando-se da finalidade prevista em lei que só admite a remoção do funcionário se for para atender a necessidade do serviço público e não de punição.
Vale ressaltar que esses atos praticados pelos agentes públicos em prol de interesses próprios ou de terceiros, bem como os que embora realizados para fins públicos não são os previstos pela lei, afetam os princípios da impessoalidade e da moralidade administrativa expressos no artigo 37, caput, da Constituição Federal.
A ofensa ao princípio da impessoalidade configura-se quando se dá um tratamento diferenciado aos administrados na idêntica situação jurídica, com o objetivo de favorecer ou prejudicar.
Em relação à ofensa ao princípio da moralidade administrativa, caracteriza-se quando se há a ausência de preceitos éticos que deveriam orientar a conduta dos agentes na prática dos atos. Os mesmos deveriam analisar não apenas os critérios de conveniência, oportunidade e justiça em suas atuações, mas também o que é honesto do que é desonesto, o que é legal do que é ilegal. Espera-se dos agentes públicos atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa fé. (Lei 9784/99, art. 2°, parágrafo único, IV).
5. Prova de desvio de finalidade
Com propriedade Helly Lopes Meirelles expressa à dificuldade em provar a ocorrência do desvio de finalidade do ato praticado pelo fato de que todo ato ilícito ou imoral é consumado às escondidas ou se apresenta aparentemente revestido pelo capuz da legalidade e do interesse público, encobrimento feito com o objetivo de esconder um fim contrário ao direito. (Meirelles, Helly Lopes, Direito Administrativo Brasileiro, 35° ed., São Paulo: Malheiros, 2009, pág. 115).
Para este autor, a identificação desse vício será feita por meio da análise dos antecedentes do ato e à sua destinação presente e futura por quem o praticou. E afirma que a prova se dará por meio de indícios convergentes, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal. Dentre esses indícios está a falta de motivo ou a contradição dos motivos com o ato praticado. (Meirelles, Helly Lopes, Direito Administrativo Brasileiro, 35° ed., São Paulo: Malheiros, 2009, pág. 115).
José Cretella Junior apresenta alguns sintomas que indicam o desvio de finalidade. Chama sintoma “qualquer traço interno ou externo, direto, indireto ou circunstancial que revele a distorção da vontade do agente público ao editar o ato, praticando-o não por motivo de interesse público, mas por motivo privado”. (Apud Filho, José dos Santos Carvalho, Manual de Direito Administrativo, 20° ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, pág. 42 e 43).
São eles: motivação insuficiente; motivação contraditória; irracionalidade do procedimento, acompanhada da edição do ato; a contradição do ato com as resultantes dos atos; camuflagem dos fatos; inadequação entre motivos e os efeitos; excesso de motivação. (Apud Filho, José dos Santos Carvalho, Manual de Direito Administrativo, 20° ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, pág. 229)
6. A finalidade nos atos administrativos discricionários
Maria Sylvia Zanella de Pietro a defini a discricionariedade administrativa “quando a Administração, diante do caso concreto, tem a possibilidade de apreciá-lo segundo critérios de oportunidade e conveniência e escolher uma dentre duas ou mais soluções, todas válidas para o direito”. (Pietro, Maria Sylvia Zanella di, Direito Administrativo, 21° ed., São Paulo: Atlas, 2007, pág. 201).
Em outras palavras, atos discricionários são os que a administração pode praticar com certa liberdade de escolha, dentro dos limites da lei, quanto ao seu conteúdo, seu modo de realização, sua oportunidade e sua conveniência administrativas para alcançar o fim legal em defesa do interesse geral.
Segundo a doutrina de Fleiner, a discricionariedade está presente quando o legislador permiti que a autoridade administrativa escolha entre as condutas possíveis de solução, aquela que corresponda, no caso concreto, a vontade da lei. (Apud Meirelles, Helly Lopes, Direito Administrativo Brasileiro, 35° ed., São Paulo: Malheiros, 2009, pág. 172).
Isto é, para Celso Antônio Bandeira de Mello, o administrador dentro da margem de liberdade que possui escolherá, por meios de critérios consistentes de razoabilidade, dentre as soluções, aquela que é mais adequada com a finalidade que a lei expressa. (Mello, Celso Antonio Bandeira de, Curso de Direito Administrativo, 29° ed., São Paulo: Malheiros: 2011, pág. 988 e 989).
Portanto, discricionário é a escolha dos motivos (conveniência e oportunidade) e do objeto (conteúdo), mas nunca da competência legal de quem o pratica, da forma prescrita em lei ou regulamento,dos fins a alcançar. Em relação aos fins nos ensina Bonard: “em temas de fins não existe jamais para a Administração um poder discricionário”. Porque não lhe é nunca deixado poder de livre apreciação quanto ao fim a alcançar. O fim é sempre imposto pelas leis e regulamentos, seja explícita, seja implicitamente. (Apud Meirelles, Helly Lopes, Direito Administrativo Brasileiro, 35° ed., São Paulo: Malheiros, 2009, págs. 172 e 173).
Isso reflete a aplicação do princípio da legalidade na atividade discricionária, devendo o administrador fazer aquilo que a lei determina ou autoriza, porque a lei contém o fim e a manifestação expressa do interesse público.
Contudo, se no desempenho da atividade discricionária a Administração não atender o fim legal a que está destinada, entende-se que houve abuso de poder.
Por isso, para evitar o mau uso da discricionariedade administrativa e possibilitar a revisão da conduta pela própria Administração ou por via judicial (desde que não seja para apreciar a conveniência e oportunidade), José dos Santos Carvalho Filho indica dois critérios. Um deles é a adequação entre a conduta optada pelo agente com a finalidade determinada em lei. Se não houver esta compatibilidade, a conduta é ilegal.
Já o outro critério, é a análise dos motivos que fundamentaram o ato praticado. Se houver por parte do agente impedimento quanto à verificação da situação de fato ou de direito que motivaram sua decisão, presume-se que houve o inadequado uso da discricionariedade e a ocorrência do desvio de finalidade. (Filho, José dos Santos Carvalho, Manual de Direito Administrativo 20° ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, pág.45)
7. Conclusão
A Administração Pública deverá atuar sempre em busca da finalidade determinada em lei, porque é através dela que se compreende a razão pela qual a lei foi editada, dirigindo-se sempre em última análise, ao atendimento do interesse público.
A prática de atos administrativos que objetivam satisfazer interesses particulares ou de terceiros, e não o interesse coletivo, bem como os que atendem fins públicos diversos do que é estipulado por lei, caracterizará desvio de finalidade. Tais situações deverão ser submetidas à apreciação da própria Administração ou do Poder Judiciário (mediante provocação).
Portanto, não há ato administrativo sem fim. A finalidade é o resultado ou bem jurídico a ser obtido com a prática de qualquer ato. Assim, mesmo que o agente público aja discricionariamente jamais poderá ter liberdade de escolha quanto ao fim a ser alcançado. Discricionários são a conveniência, oportunidade e conteúdo dos atos e nunca os fins a serem atingidos.
Referências
Apud Mello, Celso Antonio Bandeira de, Curso de Direito Administrativo, 29° ed. São Paulo: Malheiros ,2011, págs. 109 e 409.
Mello, Celso Antonio Bandeira de, Curso de Direito Administrativo, 29° ed. São Paulo: Malheiros: 2011, págs. 109, 988 e 989.
Filho, José dos Santos Carvalho, Manual de Direito Administrativo, 20° ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris,2008, págs.19 e 45.
Apud Filho, José dos Santos Carvalho, Manual de Direito Administrativo, 20° ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, págs. 42 e 229.
Junior, Dirley da Cunha, Curso de Direito Administrativo, 5° ed. JusPodivm, 2007, pág.85.
Pietro, Maria Sylvia Zanella di, Direito Administrativo, 21° ed. São Paulo: Atlas, 2007, págs. 65, 198, 201 e 229.
Alexandrino, Marcelo e Paulo, Vicente, Direito Administrativo Descomplicado, 19° ed; rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense: São Paulo: Metodo, 2011, págs. 187, 194 e 449.
Meirelles, Helly Lopes, Direito Administrativo Brasileiro, 35° ed. São Paulo: Malheiros, 2009, pág. 115.
Apud Meirelles, Helly Lopes, Direito Administrativo Brasileiro, 35° ed. São Paulo: Malheiros, 2009, págs. 172 e 173.
Acadêmica de Direito na Faculdade dos Guararapes e Estagiária de Direito no Tribunal de Justiça de Pernambuco.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MACEDO, Gerluce Maria Santos de. O alcance da finalidade na prática dos atos administrativos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 set 2012, 06:39. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/31612/o-alcance-da-finalidade-na-pratica-dos-atos-administrativos. Acesso em: 22 nov 2024.
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