I. Do Federalismo Brasileiro
É cediço o Estado brasileiro adotou a forma federativa de Estado, caracterizado pela descentralização política do Poder, mantendo a autonomia entre os entes conformadores da federação.
Desse modo, o Constituinte de 1988 estabeleceu que a República Federativa do Brasil é “formada pela união indissociável dos Estados e Municípios e do Distrito Federal”(art. 1º, da CF/88). Demais disso, o art. 18 do Texto Constitucional dispôs que a organização política do Estado “compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.”
Dada a importância dessa opção política, a forma federativa do Estado brasileiro foi elencada à cláusula pétrea, nos termos do art. 60, § 4º, inciso I, da Constituição Federal de 1988.
II. Da Repartição Constitucional de Competências
A Constituição Federal distinguiu as competências dos entes federativos, reservando à União e aos Municípios competências expressas, e aos Estados – ressalvadas as competências fixadas no § 2º do artigo 25 – as competências residuais (art. 25, § 1º).
Além disso, o legislador constitucional atribuiu competências administrativas comuns à União, Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 23), bem como competências legislativas concorrentes à União, Estado e Distrito Federal (art. 24).
No que pertine ao interesse local, o artigo 30, por sua vez, atribuiu aos Municípios a competência para legislar sobre assuntos de interesse local. Com efeito, essa competência municipal pode ter caráter de competência concorrente, e, em certa medida, específica, se a matéria for exclusivamente de interesse local. Ademais, no inciso II do mencionado art. 30, verifica-se competir ao Município suplementar a legislação federal e a estadual no que couber.
O art. 22, ao seu turno, estabeleceu em seus incisos um rol de matéria a ser legislado privativamente pela União, podendo, consoante regramento contido em seu parágrafo único, ser os Estados autorizados a legislar sobre tais matérias.
III. Das normas gerais sobre licitações e o princípio do federalismo
É cediço que o inciso XXVII, do art. 22, da CF/88 atribuiu à União Federal a competência para legislar sobre normas gerais de licitação e contratação pública. Vale a transcrição do preceptivo legal:
Art. 22. Compete privativamente à união legislar sobre:
XXVII – normas gerais de licitação e contratação, todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1º, III;
No exercício dessa competência o legislador ordinário institui a Lei de Licitações e Contratos Administrativos – Lei n. 8.666 de 21 de junho de 1993.
Não obstante a existência deste diploma legal, o conteúdo da expressão normas gerais é campo tormentoso a ser enfrentado pelos operadores do direito, cujo deslinde perpassa pela análise de caso a caso.
Com efeito, a lei de licitações e contratos administrativos, logo no seu art. 1º, estabelece que todas as normas nela contidas possuem caráter geral.
A propósito, as normas expedidas pela União somente terão o condão de interferir nos certames públicos realizados pelos Estados e municípios quando possuírem caráter geral, sob pena de ofensa à autonomia destes entes, e, em última análise, ofensa ao princípio do federalismo.
No caso da Lei 8.666/93, apesar da redação contida no seu art. 1º, o Supremo Tribunal Federal – STF decidiu, em alguns casos, que determinados dispositivos desta lei possuem natureza especial, não sendo, portanto, legítima a sua incidência sobre os demais entes da federação.
Nesse sentido, o STF, no julgamento da ADI n. 927/RS, concedeu liminar a fim de que a expressão “permitida exclusivamente para outro órgão ou entidade da Administração Pública, de qualquer esfera de governo”, contida no art. 17, I, “b” e II “b”, não seja aplicável a Estados e Municípios.
Entendeu o E. STF que a União, neste caso, não legislou sobre normas gerais, invadindo, em conseqüência daquelas unidades para legislar para si próprias em matéria de licitações, no que concerne a normas especiais.
De qualquer forma, o mesmo dispositivo foi considerado constitucional na análise procedida pelo STF apenas em relação à própria Administração Pública Federal. Trata-se de hipótese de declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto, haja vista o referido texto legal somente ser considerado inconstitucional em relação a Estados e Municípios, não o sendo em relação à União.
Essa circunstância decorre do fato da União possuir competência para estabelecer normas gerais sobre licitações e contratos administrativos para todas as esferas de governo, podendo ela legislar sobre normas gerais apenas para si própria.
A respeito do conteúdo das normas gerais sobre licitação e contratação administrativa, o administrativista Marçal Justen Filho averbara que:
“O núcleo de certeza e determinação do conceito de ´normas gerais` compreende os princípios e as regras destinadas a assegurar um regime jurídico uniforme para as licitações e as contratações administrativas. Trata-se de impor um modelo de licitação e contratação administrativa, a ser obrigatoriamente observado por todos os entes federativos. A uniformidade desse modelo fundamental se orienta à realização de dois fins.
Há, por um lado, a necessidade de assegurar a padronização mínima na atuação administrativa de todos os entes federativos, inclusive daqueles integrantes da Administração indireta. Essa padronização mínima é indispensável como instrumento de realização do valor da segurança. Se cada ente estatal consagrasse institutos e soluções distintas para as suas licitações e contratações administrativas, o resultado seria a inviabilidade da ampla competição e o surgimento de obstáculos ao livre acesso às contratações administrativas.
Por outro lado, existe a necessidade de padronização para assegurar a efetividade do controle por órgãos externos e pela própria comunidade. A proliferação de regimes licitatórios distintos impediria a adoção de soluções gerais aplicáveis em todas as licitações, o que exigiria o desenvolvimento de instrumentos de controle próprios e específicos” (Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, p. 16)
Em análise seguinte o mesmo autor deixa assente que o conteúdo das normas gerais sobre licitações estão limitados à reserva de competência local, e tais limites não podem ser ignorados pela União no exercício de seu mister legislativo. No ponto é salutar trazer à baila excerto conclusivo do tema, in verbis:
Portanto, o conceito de norma geral não é sobreponível ao de Federação. As competências locais derivadas da organização federal não podem ser limitadas através de lei da União, destinada a veicular normas gerais. Em termos ainda mais diretos: norma geral não é instrumento de restrição da autonomia federativa.
Daí se extrai que todas as regras acerca de organização, funcionamento e competências dos organismos administrativos não se incluem no âmbito de normas gerais. A lei federal disciplina o procedimento administrativo e as competências, mas não institui órgãos nem interfere sobre os assuntos de peculiar interesse local. É inadmissível considerar-se como norma geral uma regra acerca da gestão de bens públicos de entes federativos.
Foi nesse sentido o entendimento supra mencionado do Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da ADI 927-3/RS, bem como das ADI n. 3.098, 3.059, 3.670 e 2.990.
IV. Conclusão
A adoção da forma federativa do Estado pressupõe a existência de entes federados autônomos, cujas competências devem estar claramente determinadas pelo Texto Constitucional, a fim de evitar possíveis conflitos suscetíveis de fragilizar a própria estrutura do federalismo.
Assim, com o desiderato de salvaguardar o federalismo brasileiro o constituinte o consagrou cláusula pétrea, bem como reservou ao Supremo Tribunal Federal a competência para processar e julgar a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual (art. 102, I, CF/88).
Desse modo, nas hipóteses em que houver ofensa ao conteúdo do conceito “normas gerais sobre licitações” haverá, por via de conseqüência, ofensa ao princípio do federalismo, requerendo, então, a atuação do STF.
É que a norma geral deve ser limitada pela competência local, e qual quer exacerbação do conteúdo previsto no conceito normas gerais sobre licitação pode caracterizar ofensa ao próprio princípio do federalismo, demandando a devida correção pelo Supremo Tribunal Federal, por meio dos instrumentos constitucionalmente instituídos.
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