Sumário: Introdução. 1. Do exercício do poder de polícia por agentes privados. 2. Do entendimento manifestado pelo Superior Tribunal de Justiça. Conclusão.
Introdução
Na vida em sociedade o exercício de direitos e garantias previstos na Constituição e nas leis pelos cidadãos deve realizar-se de maneira a preservar a harmonia e o bem estar da coletividade. No dizer de Celso Antônio Bandeira de Mello[1] “é necessário que o uso da liberade e da propriedade esteja entrosado com a utilidade coletiva, de tal modo que não implique uma barreira capaz de obstar à realização dos objetivos públicos”.
Ao Estado compete garantir essa compatibilidade entre o interesse público e o privado. No cumprimento desse mister, cotidianamente o interesse privado restará contrariado, a fim de se concretizar o princípio da supremacia do interesse público.
A restrição aos direitos individuais em prol do interesse público se realiza pelo exercício do chamado poder de polícia.
Nos ensinamentos de José dos Santos Carvalho Filho[2], o poder de polícia comporta dois sentidos, um amplo e um restrito. Leciona o referido autor:
Em sentido amplo, poder de polícia significa toda e qualquer ação restritiva do Estado em realação aos direitos individuais. Sobreleva nesse enfoque a função do Poder Legislativo, incumbido da criação dos ius novum, e isso porque apenas as leis, organicamente consideradas, podem delinear o perfil dos direitos, elastecendo ou reduzindo o seu conteúdo. (...)
Em sentido estrito, o poder de polícia se configura como atividade administrativa, que consubstancia, como vimos, verdadeira prerrogativa conferida aos agentes da Administração, consistente no pode de restringir e condicionar a liberdade e a propriedade.
A seguir, Carvalho Filho conceitua o poder de polícia como a “prerrogativa de direito público que, calcada na lei, autoriza a Administração Pública a restringir o uso e o gozo da liberdade e da propriedade em favor do interesse da coletividade”.
1. Do exercício do poder de polícia por agentes privados
No exercício do Poder de Polícia o Estado extrapola os limites ou o âmbito da Administração Pública e invade a esfera privada dos direitos e deveres dos particulares[3].
Por tal motivo, a doutrina majoritária entende juridicamente impossível a delegação de seu exercício a particulares. Há quem, de forma ainda mais radical, defenda que nem mesmo as pessoas jurídicas de direito privado integrantes da Administração Pública, estariam habilitadas a receber delegação para o exercício do Poder de Polícia.
O Professor Celso Antônio Bandeira de Mello[4] afirma que “os atos jurídicos expressivos de poder público, de autoridade pública, e, portanto, os de polícia administrativa, certamente não poderiam, ao menos em princípio e salvo circunstâncias excepcionais ou hipóteses muito específicas (caso, exempli gratia, dos poderes reconhecidos aos capitãos de navio), ser delegados a particulares, ou ser por eles praticados”.
Justamente por implicar na intromissão do Estado na esfera dos particulares, para Bandeira de Mello o acometimento de exercício do Poder de Polícia a pessoas privadas ofenderia o equilíbrio entre os particulares em geral, ensejando que uns oficialmente exercessem supremacia sobre outros.
José dos Santos Carvalho Filho, embora admita a possibilidade de prática de atos de natureza fiscalizatória por meio de delegação legal à pessoa privada vinculada à estrutura da Administração Pública, também nega, peremptoriamente, a delegação a pessoas da iniciativa privada, desprovidas de vinculação oficial com os entes pública, visto que, por maior que seja a parceria que tenham com estes, jamais serão dotadas da potestade (ius imperii) necessária ao desempenho da atividade de polícia[5].
Qualquer desses autores, porém, admite a participação privada como auxiliar ao exercício do Poder de Polícia pelo Estado.
É o que José dos Santos Carvalho Filho chama de “operacionalização material da fiscalização” e que Celso Antônio Bandeira de Mello denomina de “atos materiais” que podem ser precedentes aos atos jurídicos de polícia, sucessivo, ou mesmo inteiramente vinculados expedidos por máquinas.
Nesses casos, o Estado, por intermédio de um contrato administrativo, de delegação propriamente dita, ou do credenciamento citado por Celso Antônio, atribui a empresas privadas atividades auxiliares, acessórias, que visam, exclusivamente, subsidiar a atividade exercida por agentes públicos competentes.
São exemplos colhidos da doutrina citada, além dos aparelhos utilizados pelos órgãos de trânsito para aferir velocidade ou o avanço de sinais de trânsito, a utilização de parquímetros, a demolição ou implosão de obras irregulares.
Veja-se que em qualquer das hipóteses a participação da pessoa privada não importa em manutenção de uma relação direta com o particular cujo direito está sendo restringido ou a quem a obrigação está sendo imposta.
Há situações outras, porém, em que o particular atua de forma efetiva na restrição do direito do particular, sem que nos demos conta. É o que ocorre, por exemplo, na restrição imposta a menores de determinada idade ao acesso a salas de cinema ou teatro, cujo filme ou peça, esteja classificado para uma idade dois anos acima. Nessas hipóteses, nem mesmo acompanhado dos pais ou responsáveis, o menor terá acesso ao entretenimento. Da mesma forma, haverá restrição de direitos diretamente pelo particular que recusa a venda de bebida alcoólica aos menores de 18 anos.
A doutrina, apesar da quase unanimidade na admissão de pessoas privadas no exercício do Poder de Polícia apenas em atividades acessórias, não enfrenta a questão. O fato é que, uma vez prevista em lei a vedação ou restrição ao direito do administrado, e a delegação ao particular do dever de fiscalizar, não se vislumbra quebra na isonomia ou imputação de supremacia de um particular sobre o outro.
O Estado não perde seu ius imperii, nem mesmo o delega. O que se delega a pessoa estranha à Administração Pública é tão somente o papel de fiscalizar, de verificar se a norma legal impositora de restrição está sendo cumprida, da mesma forma que atribui o dever a qualquer pessoa de prender aquele que esteja em flagrante delito.
2. O entendimento manifestado pelo Superior Tribunal de Justiça
O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou a respeito do assunto. Dentre as decisões proferidas sobre o tema, destaca-se a do Recurso Especial n. 759.759, do Distrito Federal, movido por Regina Maria Keating da Costa Arsky contra o Departamento de Trânsito do Distrito Federal – DETRAN/DF.
O recurso foi proposto em sede de ação anulatória, que tinha por escopo anular multa de trânsito, cujo registro da infração ocorrera por intermédio de dispositivo conhecido como “pardal eletrônico”. O argumento sustentado pela autora/recorrente é de que a “aplicação” de multa por meio de radar eletrônico afronta o disposto no art. 280, caput e §4º do Código Brasileiro de Trânsito (Lei n. 9.503/97), que impõe a obrigatoriedade de lavratura de autuação de infração de trânsito com a presença e identificação do agente autuantes.
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal, prolator do acórdão recorrido, entendeu que o controlador eletrônico de velocidade “não impõe a multa, apenas constitui-se o meio pelo qual a infração é detectada. A autoridade competente – DETRAN – é quem, de acordo com a legislação pertinente, lavra o auto de infração e impõe a sanção ao motorista infrator, estando devidamente identificada nas multas enviadas”.
A decisão do Superior Tribunal de Justiça foi relatada pelo Ministro Humberto Martins. Entendeu-se insubsistente a tese da recorrente, uma vez que o dispositivo cuja afronta se alega (art. 280 do CTB) é claro em permitir que a comprovação da infração ocorra por intermédio, mas sem, em qualquer momento, dispensar a lavratura do devido auto de infração por autoridade competente.
A constatação dos fatos, como dito no voto do relator, ocorreu por meio de análise do arcabouço probatório constante do processo, no qual se constatou que, de fato, havia um auto de infração lavrado e assinado pela autoridade de trânsito.
A decisão não enfrenta de maneira mais acurada a questão, limita-se a afirmar a possibilidade de utilização de meios eletrônicos como forma de comprovação da infração, exigindo-se, no entanto, que em qualquer hipótese o auto de infração seja lavrado pela autoridade de trânsito competente.
Ao que parece, a decisão proferida pelo STJ segue a orientação doutrinária majoritária quanto à impossibilidade de atuação de particulares de forma efetiva no exercício do Poder de Polícia, quando reconhece que “‘pardais eletrônicos’ não aplicam multa, apenas comprovam a infração ocorrida”.
A contrariu sensu, o que aquela Corte Superior afirma é que se o mecanismo fosse utilizado para aplicar a multa não seria reconhecida a legitimidade de autuação. Ou seja, se a empresa contratada ou recebedora de delegação não apenas instalasse os dispositivos, mas também imprimisse e enviasse as multas, sem a participação do agente público, a multa não seria tida por resultado do regular exercício do poder de polícia..
De qualquer forma, a situação analisada não vai além do que admite os doutrinadores citados.
O Código de Trânsito Brasileiro ao estabelecer em seu art. 280 a forma de autuação do condutor infrator, adota o entendimento doutrinário dominante. Apesar de admitir a comprovação da infração por meio de aparelho eletrônico ou equipamento audiovisual, não dispensa que o documento que dá início ao processo administrativo de intromissão na esfera do administrado, seja lavrado por autoridade competente de trânsito.
Essa a correta interpretação do disposto no caput do art. 280, bem como de seus §§ 2º e 4º, na visão dos Tribunais que atuaram no processo.
Conclusão
Conclui-se, assim, que tanto a doutrina quanto os Tribunais admitem a atuação de pessoas privadas no exercício do Poder de Polícia exclusivamente em atividades acessórias ou instrumentalizadoras da atuação do Estado.
Referências Bibliográficas
Recurso Especial n. 759.759-DF. Relator Min. Humberto Martins. Segunda Turma. DJ 18/09/2006, p. 297.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 20ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
FUTADO, Lucas Rocha. Curso de Direito Administrativo. 1ª Ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2007.
MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 18ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005.
[1] Curso de Direito Administrativo. 8ª Ed. São Paulo. Malheiros Editores, 2005.
[2] Manual de Direito Administrativo. 15ª Ed. Rio de Janeiro. Lúmen Júris Editora, 2006.
[3] FURTADO, Lucas Rocha. Curso de Direito Administrativo. 1ª Ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2007. 644.
[4] Curso de Direito Administrativo. 18a Ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 769.
[5] Manual de Direito Administrativo. 20a Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
Procuradoria Federal, atualmente atuando junto à Procuradoria Federal Especializada junto ao IBAMA - SEDE. Formada em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo -1999/1. Especialista em Direito Público e Processual Público pela Faculdade Cândido Mendes de Vitória - 2000/2001. Especialista em Direito Administrativo pelo Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP - 2009/2010.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOBATO, Bianca Duarte Teixeira. Do exercício do poder de polícia por agentes privados Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 nov 2012, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/32593/do-exercicio-do-poder-de-policia-por-agentes-privados. Acesso em: 22 nov 2024.
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