A ideia de sociedade do risco foi criada e desenvolvida inicialmente por Ulrich Beck, que em 1986 identificou aspectos da sociedade contemporânea que a distanciavam da sociedade industrial, introduzindo uma maior preocupação com os riscos advindos das atividades industriais, e considerando que estes riscos assumiram proporções maiores que os limites territoriais entre os Estados soberanos. O grande desenvolvimento da ciência traz consigo novos e desconhecidos riscos, e a sociedade moderna desenvolveu mecanismos próprios para conviver com estes riscos, incorporando estes mecanismos às atividades do Estado.
Como afirma Hermitte (2004), o desenvolvimento científico não traz uma segurança linear, pois ao tempo em que resolve antigos problemas, introduz outros novos, gerando a um só tempo soluções e novos riscos para a sociedade. A globalização, por sua vez, tem pressionado o conceito tradicional de causalidade para que se adapte às novas circunstâncias, nas quais as causas de um dano advém de fatos complexos e de suas interrelações, não sendo possível, muitas vezes, identificar uma causa única.
A noção de sociedade do risco relaciona-se, ainda, com uma ideia de irreversibilidade do dano, posto que as consequências causadas não possibilitam um retorno ao statu quo ante, nem possibilitam a indenização das vítimas, dadas as proporções amplas e difusas e cumulativas (CAUBET, 2005) em que se verifica.
Neste contexto, entre a previsibilidade e a imprevisibilidade do mundo moderno, surge o princípio da precaução, introduzindo a questão da incerteza científica como objeto de regulação jurídica, ou melhor, permitindo a regulação jurídica das consequências de fatos não comprovados pela ciência. Neste sentido, consiste o princípio da precaução em uma norma que determina que, mesmo diante de uma incerteza científica, admite-se a prática de atos na intenção de preservar a saúde e a vida das pessoas de possíveis danos. O princípio da precaução relaciona-se, portanto, com a ideia da possibilidade do dano, mesmo que a ciência não tenha ainda logrado confirmar que este dano poderá efetivamente ocorrer. Nas palavras de Hermitte (2005, p.15-16):
“O princípio da precaução procura instituir procedimentos que permitem elaborar uma decisão racional na fase de incertezas e controvérsias, de forma a diminuir os custos sanitários dessa experimentação geral. A racionalidade da decisão vai depender da resposta satisfatória a um conjunto de exigências precisas, trabalhadas na jurisprudência. A mais forte é a exigência de uma avaliação científica dos riscos que antecede toda e qualquer decisão política, elemento de sua legalidade. Por sua vez, essa avaliação deve atender exigências precisas: os dados sobre os quais ela se baseia hão de ser ‘os melhores dados científicos disponíveis’ (Alpharma), ou os ‘mais recentes resultados da pesquisa internacional’; as opiniões devem basear-se nos ‘princípios de excelência, de independência, de transparência e de objetividade’ (Alpharma).
Após o inicial desenvolvimento do referido princípio no âmbito interno de cada Estado, especialmente no campo do Direito Ambiental, sua discussão e aplicação ultrapassaram as fronteiras nacionais e ingressaram nos foros internacionais de solução de controvérsias, dentre os quais se destaca a Organização Mundial do Comércio (OMC). No âmbito da OMC, diversos acordos firmados são vinculantes a todos os seus membros, e toda violação destes acordos pode ser questionada pelo Membro prejudicado no Órgão de Solução de Controvérsias (OSC), que analisará a questão e, por fim, proferirá decisão obrigatória para as partes envolvidas.
Desde o início de sua existência, e especialmente após o novo formato adquirido com a conclusão da Rodada Uruguai, o OSC acumula um alto grau de efetividade de suas decisões, tendo suas decisões cumpridas em praticamente todos os casos julgados (VARELLA, 2009). Por esta razão, entre outras, o OSC constitui um foro dotado de credibilidade para a análise de questões relacionadas ao cumprimento dos acordos internacionais no âmbito comercial.
Dentre estes acordos, um deles se relaciona de forma mais intensa com a noção de uma sociedade de risco e, principalmente, com a aplicabilidade prática do princípio da precaução, no campo do comércio internacional: trata-se do Acordo sobre Medidas Sanitárias e Fitossanitárias (SPS).
O Acordo SPS, firmado no âmbito da Organização Mundial do Comércio, estabelece limites aos Estados no tocante à fixação de restrições comerciais fundadas em preocupações com a proteção da saúde e da vida humana, animal e vegetal. Estas restrições tem como fundamento, declaradamente, a redução dos efeitos negativos da imposição de tais medidas sobre o comércio internacional. Segundo o Anexo A do Acordo, medidas sanitárias ou fitossanitárias são definidas como qualquer medida aplicada:
(a) para proteger, no território do Membro, a vida ou a saúde animal ou vegetal dos riscos resultantes da entrada, do estabelecimento ou da disseminação de pragas, doenças ou organismos patogênicos ou portadores de doenças;
(b) para proteger, no território do Membro, a vida ou a saúde humana ou animal dos riscos resultantes da presença de aditivos, contaminantes, toxinas ou organismos patogênicos em alimentos, bebidas ou ração animal;
(c) para proteger, no território do Membro, a vida ou a saúde humana ou animal de riscos resultantes de pragas transmitidas por animais, vegetais ou por produtos deles derivados, ou da entrada, estabelecimento ou disseminação de pragas; ou
(d) para impedir ou limitar, no território do Membro, outros prejuízos resultantes da entrada, estabelecimento ou disseminação de pragas.
Ao estabelecer essas limitações, o acordo determina que apenas podem ser aplicadas quaisquer medidas sanitárias ou fitossanitárias quando baseadas em princípios científicos, e não podem ser mantidas sem evidência científica suficiente, com exceção do parágrafo 7 do artigo 5. Este dispositivo que excepciona a regra introduz no sistema normativo do comércio internacional o que se pode chamar de princípio da precaução, nesta forma:
“7. Nos casos em que a evidência científica for insuficiente, um Membro pode provisoriamente adotar medidas sanitárias ou fitossanitárias com base em informação pertinente que esteja disponível, incluíndo-se informação oriunda de organizações internacionais relevantes, assim como de medidas sanitárias ou fitossanitárias aplicadas por outros Membros. Em tais circunstâncias, os Membros buscarão obter a informação adicional necessária para uma avaliação mais objetiva de risco e revisarão, em conseqüência, a medida sanitária ou fitossanitária em um prazo razoável”.
O preceito estabelecido no Acordo não traz em seu conteúdo a forma tradicional do princípio da precaução, que admite a adoção de medidas de cautela diante da possibilidade de um dano, independentemente da certeza científica. O que prevê o dispositivo é a possibilidade excepcional de um Estado adotar medidas sanitárias e fitossanitárias provisoriamente, nos casos em que a evidência científica for insuficiente, devendo buscar obter a informação adicional necessária para a avaliação mais objetiva do risco de dano e a imediata revisão da medida adotada.
Fica claro pelo texto do acordo que as medidas sanitárias e fitossanitárias são medidas indesejáveis ao comércio internacional, pois limitam as trocas entre os Estados, sendo admitidas apenas de forma excepcional, pela aplicação de um princípio da precaução reformulado e enfraquecido. Neste sentido, Noiville (2004, p.329) afirma que:
“Em suma, vê-se muito bem onde se encontra, pelo menos aparentemente, o principal ponto de conflito entre o acordo SPS e o princípio da precaução. No acordo SPS, a precaução parece reduzir-se ao regime jurídico único das medidas provisórias adotadas em caráter de urgência. Uma vez passado o prazo, a alternativa é simples: os dados científicos objetivos confirmam claramente a necessidade de manter as medidas ou estas não são amparadas por ‘provas científicas suficientes’ e, portanto, devem desaparecer”.
Esta abertura proporcionada pelo Acordo, no tocante à adoção de medidas fundadas no princípio da precaução, gera inevitavelmente conflitos entre Estados, quando um deles impõe restrição ao comércio internacional fundada em um receio de dano decorrente de uma avaliação de risco carente de comprovação científica, como ocorreu em um caso de grande repercussão submetido ao OSC, o caso EC – Hormônios.
No referido caso, a Comunidade Europeia aplicou medida sanitária impedindo o ingresso de carne bovina tratada com hormônios, proveniente dos Estados Unidos e do Canadá, alegando que tal tratamento da carne causaria danos à saúde da população. A questão foi levada ao OSC, e tanto o Painel quanto o Órgão de Apelação concluíram que os danos alegados pela Comunidade Europeia não foi suficientemente demonstrado, determinando a suspensão das restrições. Foi definido em arbitragem o prazo de 15 meses para que as medidas fossem retiradas, o que não aconteceu.
A partir do não cumprimento da decisão, foi autorizada a retaliação por parte dos EUA e Canadá, no montante estabelecido em arbitragem, não tendo, entretanto, produzido os efeitos de compelia a Comunidade Europeia a retirar a medida. Após o descumprimento, a Comunidade Europeia ingressou com processo contra EUA e Canadá, alegando que as retaliações aplicadas eram ilegais pois houve o cumprimento da decisão. Entendeu a Comunidade Europeia que mesmo não retirando a medida, realizou novos estudos que demonstraram o risco das importações, e assim as medidas passaram a ser protegidas pelo próprio arcabouço normativo que determinou a sua retirada. O caso é complexo pois, a par do descumprimento da decisão do OSC, a Comunidade Europeia entende ser possível a produção de novas provas, que tragam a certeza científica, em um caso de aplicação do princípio da precaução, enquanto EUA e Canadá entendem impossível novas provas em um caso já julgado definitivamente pela Organização.
O caso dos hormônios representa um claro conflito entre o princípio do livre comércio e a aplicação do princípio da precaução, colocando em xeque a efetividade do sistema de solução de controvérsias da OMC e trazendo a um nível internacional o debate acerca dos limites na avaliação do risco e da aplicação de medidas de proteção mesmo diante da incerteza científica, o que reflete e reforça as considerações de Beck (2010) em sua análise da sociedade do risco.
Bibliografia
BECK, Ulrich. Sociedade de risco. São Paulo: Editora 34, 2010.
CAUBET, Christian Guy. O escopo do risco no mundo real e no mundo jurídico. In: Governo dos Riscos / Rede Latino - Americana - Européia sobre Governo dos Riscos, organizador Marcelo Dias Varella, Brasilia, 2005. Disponível em http://marcelodva.dominiotemporario.com/arquivos/Governo%20dos%20Riscos.pdf
HERMITTE, M.A; DAVID, V. A avaliação dos riscos e princípio da precaução.In: VARELLA, M. D.; BARROS-PLATIAU, A. F. (Org.). Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004
HERMITTE, M.A. Os fundamentos jurídicos da sociedade do risco: Uma análise de U. Beck. In: Governo dos Riscos / Rede Latino - Americana - Européia sobre Governo dos Riscos, organizador Marcelo Dias Varella, Brasilia, 2005. Disponível em http://marcelodva.dominiotemporario.com/arquivos/Governo%20dos%20Riscos.pdf
NOIVILLE, Christine. Princípio da precaução e Organização Mundial do Comércio: da oposição filosófica para os ajustes técnicos? In: VARELLA, Marcelo Dias; PLATIAU, Ana Flávia Barros (Orgs.). Princípio da precaução. Coleção Direito Ambiental em Debate. Vol. 1. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 317-350.
VARELLA, Marcelo Dias. Efetividade do Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio: uma análise sobre os seus doze primeiros anos de existência e das propostas para seu aperfeiçoamento. Rev. bras. polít. int. [online]. 2009, vol.52, n.2, pp. 5-21. ISSN 0034-7329. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-73292009000200001.
Mestre em Direito das Relações Internacionais pelo Uniceub. Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GOMES, Milton Carvalho. A sociedade dos riscos e o Princípio da Precaução na OMC Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 dez 2012, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/32802/a-sociedade-dos-riscos-e-o-principio-da-precaucao-na-omc. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Marcele Tavares Mathias Lopes Nogueira
Por: Patricia Araujo de Brito
Por: Lucas Soares Oliveira de Melo
Precisa estar logado para fazer comentários.