1. Introdução
Pacífico na doutrina e jurisprudência que a relação jurídica firmada entre a EFPC e a patrocinadora, de um lado, e do outro, entre a EFPC e os participantes e assistidos, é de direito privado, regida pelos princípios e regras de direito civil, obedecidas é claro as regras específicas de previdência complementar instituídas tanto nas premissas do art. 202 da Constituição Federal como nas Leis Complementares nº 108/2001 e 109/2001.
Além das normas vetores do direito civil, deve-se obediência, igualmente, aos princípios norteadores dos contratos de direito privado: autonomia privada, função social do contrato, força obrigatória (pacta sunt servanda), boa-fé objetiva e relatividade dos efeitos contratuais.
Neste sentido, como negócio jurídico de direito privado o convênio de adesão, o estatuto, e o regulamento do plano devem atender aos requisitos de validade presentes em todo e qualquer negócio jurídico: agentes capazes; vontade livre (sem vícios); objeto lícito, possível, determinado ou determinável; forma prescrita ou não defesa em lei (art. 104 do Código Civil).
O aspecto contratual da relação de previdência complementar é referenciado tanto no caput do art. 202 da Constituição Federal como no seu §2º, verbis:
“Art. 202. O regime de previdência privada, de caráter complementar e organizado de forma autônoma em relação ao regime geral de previdência social, será facultativo, baseado na constituição de reservas que garantam o benefício contratado, e regulado por lei complementar.
(...)
§ 2° As contribuições do empregador, os benefícios e as condições contratuais previstas nos estatutos, regulamentos e planos de benefícios das entidades de previdência privada não integram o contrato de trabalho dos participantes, assim como, à exceção dos benefícios concedidos, não integram a remuneração dos participantes, nos termos da lei.”
Na relação entre EFPC, patrocinadora e participantes as regras são estabelecidas nos estatutos, convênio de adesão e regulamentos dos planos de benefícios, encontrando-se no âmbito da autonomia privada, da liberdade negocial. Nas palavras de Daniel Pulino[1]:
“A autonomia privada consiste, justamente, na possibilidade, reconhecida pelo direito aos particulares, de se autoregrar, criando normas negociais, que servirão para disciplinar seus próprios interesses. (...)
É por meio da autonomia privada reinante no setor, que se expressa de modo mais agudo justamente pela combinação da facultatividade e deste caráter contratual que marcam constitucionalmente o regime de previdência complementar, que as partes (patrocinadores ou instituidores, participantes ou assistidos, e as entidades de previdência complementar), justamente por este aspecto negocial que ora tomamos por foco, poderão, segundo seus interesses (pautadas, claro, por suas possibilidades econômicas concretas), desenhar livremente (dentro dos limites aos quais nos referiremos logo à frente) ‘a extensão, os limites e os efeitos’ da proteção previdenciária que resolverem entre si estabelecer, valendo isso, quer no momento de inicio da proteção complementar (p. ex., criação do plano previdenciário e montagem do respectivo regulamento; criação ou escolha da entidade administradora; oferta do plano e respectivas adesões pelos participantes), quer no de seu desenvolvimento (as concessões dos benefícios contratados, são a razão de ser de todo o regime, além das eventuais alterações no regulamento ou no estatuto, eventuais transferências de gerenciamento dos planos, opção pelos institutos do autopatrocínio ou benefício proporcional diferido, também eventual equacionamento de resultados deficitários etc.) e mesmo no momento de eventual encerramento autônomo daquela proteção (p. ex., desfiliação dos participantes ou retirada de patrocínio).”
2. Da obediência às normas de ordem pública.
Dentro da autonomia privada as partes pactuam e estabelecem as normas e diretrizes da relação de previdência complementar, o que, no entanto, não se dará de modo absoluto, pois deverá operar-se dentro dos limites fixados pela ordem legal[2]. Jamais se poderá cogitar de uma autonomia privada suprema[3] no âmbito de qualquer relação contratual.
Em outras palavras, as normas de previdência complementar, estabelecidas tanto na Constituição Federal como nas Leis Complementares nº 108/2001 e nº 109/2001, além das resoluções e instruções dos órgãos regulador e fiscalizador, circunscrevem o âmbito de liberdade contratual para que as partes possam livremente decidir, existindo por outro lado, um núcleo imutável a ser obedecido, que não pode ser transacionado pela EFPC, patrocinadores e participantes. São exemplos: a carência mínima de 60 (sessenta) contribuições mensais e cessação do vínculo para que participante possa se torna elegível (I, art. 3º da LC nº 108/2001); a estrutura organizacional da EFPC regida pela LC nº 108/2001 deve ser constituída por conselho deliberativo, conselho fiscal e diretoria executiva (art. 9º da LC nº 108/2001); o resultado deficitário será equacionado por patrocinadores, participantes e assistidos, na proporção existente entre as suas contribuições (art. 21 da LC nº 109/2001), etc.
Acerca da obediência as normas de ordem pública e sua aplicabilidade imediata aos contratos previdenciários, inclusive, vigentes cabe a transcrição de Weintraub[4]:
“A predominância do caráter institucional acarretaria a possibilidade de mudanças dentro da relação jurídica que não estejam previstas contratualmente. Uma lei posterior poderia vir a regrar matérias contidas no contrato, fato que erigiria uma instabilidade jurídica.
Por outro lado, a prevalência do caráter contratual vedaria o regramento de lei posterior sobre o ato jurídico perfeito ocorrido, obstando alterações sociais importantes.
Acreditamos que haja um caráter misto (institucional e contratual simultaneamente). O caráter institucional diz respeito ao aspecto cogente envolvendo a matéria, ou seja, que não é passível de pactuação com liberdade contratual das partes. O elemento cogente não está na obrigatoriedade de ingresso no sistema de Previdência Complementar Privada (que é constitucionalmente facultativo); está na imposição de limites legais que cercam as liberdades contratuais. Uma vez que haja ingresso no sistema, existe uma esfera cogente envolvendo as relações jurídicas que transcendem aquilo que foi contratado.
O fator que impede a supremacia contratual da relação jurídica é a proteção social envolvida. Existe um cunho privado que fica delimitado no campo da seguridade social. Assim, elementos relativos ao contrato que sejam precipuamente negociais não devem ser incluídos no aspecto institucional, ou seja, não devem ser afetados por novas legislações. Elementos contratuais que sejam precipuamente sociais são passíveis de alteração legislativa.
(...)
Concretiza-se uma delimitação da liberdade contratual na Previdência Privada, como uma inserção das previsões estatais no âmbito dos contratos previdenciários. Mas a liberdade contratual não é eliminada. A interferência da lei e do próprio Estado em si (na fiscalização e regulamentação) é marcante, e pode não só limitar a liberdade contratual, como alterar o próprio conteúdo contratual.
(...)
A própria Constituição da República já promoveu a dicotomia contratual/institucional da Previdência Privada, quando se refere ao benefício contratado, sendo um regime regulado por lei complementar, demonstrando a preocupação do legislador constituinte em ressaltar o lado contratual, ainda que regulado por lei.”
A par da obediência às diretrizes legais, as EFPC, patrocinadores, participantes e assistidos não podem estabelecer cláusulas regulamentares em afronta direta as disposições legais. Pensar diferente seria admitir a autonomia privada sem limites e a possibilidade de pactos com cláusulas ilícitas, o que afrontaria os preceitos básicos de direito civil, os quais estabelecem no plano de validade dos negócios jurídicos a licitude do objeto, por conseguinte do próprio contrato.
Nesta linha de pensamento Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald[5] preceitua que:
“(...) considerando o deslocamento do eixo das relações privadas para busca da tutela da pessoa humana, afirmando-se premente preocupação com o princípio da confiança (boa-fé objetiva e função social do contrato), urge revisitar o instituto, dando-lhe novo colorido. Com isso, afirma-se uma necessária limitação da liberdade de determinação do conteúdo negocial (...), com maior intervenção estatal, através das normas de ordem pública, para assegurar a primazia da cidadania.”
Arthur Weintraub[6] citando Orlando Gomes assevera que “a autonomia da vontade (visão individualista) foi delimitada pela ordem pública. Assim, a liberdade de modificar o contrato fica restrita pelo ius cogens envolvendo o interesse público (função social).”
3. Impossibilidade das normas regulamentares da Entidade Fechada de Previdência Complementar prever comando contrário à paridade contributiva.
As disposições regulamentares, pactuadas pelas partes devem guardar consonância com o §3º do art. 202 da Constituição Federal e os dispositivos das Leis Complementares nº 108/2001 e nº 109/2011:
Constituição Federal
Art. 202 (...)
§ 3º É vedado o aporte de recursos a entidade de previdência privada pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, suas autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista e outras entidades públicas, salvo na qualidade de patrocinador, situação na qual, em hipótese alguma, sua contribuição normal poderá exceder a do segurado.
LC nº 108/2001
Art. 6o O custeio dos planos de benefícios será responsabilidade do patrocinador e dos participantes, inclusive assistidos.
§ 1o A contribuição normal do patrocinador para plano de benefícios, em hipótese alguma, excederá a do participante, observado o disposto no art. 5o da Emenda Constitucional no 20, de 15 de dezembro de 1998, e as regras específicas emanadas do órgão regulador e fiscalizador.
§ 2o Além das contribuições normais, os planos poderão prever o aporte de recursos pelos participantes, a título de contribuição facultativa, sem contrapartida do patrocinador.
§ 3o É vedado ao patrocinador assumir encargos adicionais para o financiamento dos planos de benefícios, além daqueles previstos nos respectivos planos de custeio.
LC nº 109/2001
Art. 21. O resultado deficitário nos planos ou nas entidades fechadas será equacionado por patrocinadores, participantes e assistidos, na proporção existente entre as suas contribuições, sem prejuízo de ação regressiva contra dirigentes ou terceiros que deram causa a dano ou prejuízo à entidade de previdência complementar.
Não há espaço de liberdade para que participantes, patrocinadores e Entidades Fechadas de Previdência Complementar - EFPC estabeleçam em seus estatutos, regulamentos dos planos de benefícios ou convênio de adesão regras contrárias ao dispositivo constitucional transcrito, como por exemplo: prever a possibilidade de assunção integral por patrocinador público de déficit em Entidade Fechada de Previdência Complementar.
A questão em apreço já foi objeto de regulamentação pelo Conselho de Gestão da Previdência Complementar. É o que se extrai do parágrafo único do art. 29 da Resolução 26, de 29 de setembro de 2008, onde se trata do equacionamento do déficit de planos de benefícios administrados por entidades fechadas:
Art. 29. O resultado deficitário apurado no plano de benefícios deverá ser equacionado por participantes, assistidos e patrocinadores, observada a proporção quanto às contribuições normais vertidas no exercício em que apurado aquele resultado, sem prejuízo de ação regressiva contra dirigentes ou terceiros que tenham dado causa a dano ou prejuízo ao plano de benefícios administrado pela EFPC.
Parágrafo único. Em relação aos planos de benefícios que não estejam sujeitos à disciplina da Lei Complementar nº 108, de 2001, o resultado deficitário poderá ser equacionado pelos patrocinadores, de forma exclusiva ou majoritária, sem a observância da proporção contributiva de que trata o caput.
De forma indireta disciplina o parágrafo único do art. 29, ora transcrito, que em relação aos planos de benefício sujeitos à LC 108/2001, o resultado deficitário não poderá ser equacionado de forma exclusiva ou majoritária pelos “patrocinadores públicos”, e ressalva diretamente, a contrario sensu, que, para as EFPC não sujeitas a LC nº 108/2001, não há que se respeitar a proporção contributiva entre participantes, assistidos e patrocinadores. Ou seja, veda, justamente, a prática perpetrada na espécie.
Acerca do tema cabe destacar trechos do artigo “Paridade contributiva no regime de previdência complementar: o caráter absoluto da vedação de aporte de recursos a entidades de previdência privada, por parte dos chamados patrocinadores públicos, em superiores aos vertidos por participantes”[7], verbis:
“Afinal, é a Lei Complementar 108, de 29 de maio de 2001, na dicção de seu art. 1º, a responsável por regulamentar, entre outros, o § 3º do art. 202 da Constituição Federal:
Art. 1º A relação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, inclusive suas autarquias, fundações, sociedades de economia mista e empresas controladas direta ou indiretamente, enquanto patrocinadores de entidades fechadas de previdência complementar, e suas respectivas entidades fechadas, a que se referem os §§ 3º, 4º, 5º e 6º do art. 202 da Constituição Federal, será disciplinada pelo disposto nesta Lei Complementar.
Significa dizer que, com relação às entidades reguladas pela LC 108/2001, o legislador optou por estabelecer que o conceito de contribuição normal constante do art. 202, § 3º, somente se contrapõe a uma espécie: a contribuição facultativa, sem contrapartida do patrocinador. É o que se pode inferir de seu art. 6º, § 2º, onde se define qual contribuição pode ser prevista pelos planos de benefícios, além da contribuição normal.
Cumpre esclarecer que tal constatação não constitui óbice à aplicação da LC 109, notadamente de seu art. 19, às entidades também regidas pela Lei Complementar 108. Mesmo porque, com relação a estas, não há qualquer diferenciação impeditiva da instituição de contribuições para o custeio de déficits, serviço passado, entre outras finalidades. Na verdade, quanto a este específico ponto, há que se respeitar tão-somente uma peculiaridade: para as entidades submetidas somente à LC 109 este custeio poderá ser de responsabilidade exclusiva do patrocinador, enquanto, no caso daquelas também sob o pálio da LC 108, sua contribuição (a qualquer título) em hipótese alguma excederá a do participante.
Caberia, aqui, fazer uma alusão comparativa, com o fito de aclarar ainda mais a ideia de que a imposição de respeito à paridade contributiva estabelecida pela EC nº 20/98 e pela LC 108 não importa em nenhum óbice à aplicação integral dos institutos da LC 109 para as entidades patrocinadas por entes públicos. A rigor, apenas se estabelece uma exigência a mais, frise-se, a paridade contributiva. Esta particularidade específica das entidades patrocinadas por entes públicos leva alguns autores a se referirem à LC 108 como se fosse uma espécie de “lei de licitações” para tais entidades, “como forma de imbuir lisura compulsória”. Um exemplo a ilustrar a ideia apresentada seria de um Banco Público, o qual deve obedecer a legislação de licitações e contratos e também as exigências constitucionais de concurso público, o que, à toda evidência, não afasta a necessária observância às exigências da legislação do sistema financeiro brasileiro.
O equívoco residente na interpretação voltada a excluir a incidência da paridade nas chamadas contribuições extraordinárias está no fato de que tal entendimento se vale de um diploma voltado a estabelecer normas gerais (LC 109) para regulamentar um tema específico, tratado, em verdade, por norma igualmente específica (LC 108).
É que a Lei Complementar 109, como se extrai de seu art. 1º, foi editada no intuito de regulamentar o caput do art. 202 da Constituição Federal, que não cuida do instituto da paridade. Tal percepção fica evidente, quando a própria LC 108, em seu art. 2º, faz referência à LC 109, como sendo “[a] Lei Complementar que regula o caput do art. 202 da Constituição Federal:
Art. 2º As regras e os princípios gerais estabelecidos na Lei Complementar que regula o caput do art. 202 da Constituição Federal aplicam-se às entidades reguladas por esta Lei Complementar, ressalvadas as disposições específicas.
Em suma, a Lei Complementar 109 não poderia, quer em seu art. 19, quer em outros dispositivos, excepcionar o princípio da paridade inscrito no § 3º do art. 202 da CF, pelo fato de tal instituto não ser objeto de sua disciplina. Simplesmente não o “enxerga”. Nesse sentido pontua WLADMIR NOVAES MARTINEZ:
A LBPC não tratou da paridade de contribuição (art. 202,§3º, da Constituição Federal), mas a Res. CGPC n. 1/00, à vista dos arts. 5º/6º da EC n.20/98, determinou a aludida paridade, a partir de 16.12.00 para as EPC patrocinadas por estatais.
Não há, desse modo, possibilidade de se contrapor o conceito de contribuição normal inscrito no citado § 3º do art. 202 ao de contribuição extraordinária previsto no art. 19 da LC 109, pois esta antonímia parte do falso pressuposto de que a contribuição normal deste mesmo art. 19 teria o idêntico significado da contribuição normal do Texto Constitucional, o que, de certo, não se sustenta. Trata-se de concepções absolutamente distintas, na medida em que, como dito, a LC 109 é absolutamente estranha ao instituto inscrito no § 3º do art. 202 da Constituição, tratado especificamente pela LC 108, a quem coube regulamentá-lo: “a relação (...) a que se referem os §§ 3º, 4º, 5º e 6º do art. 202 da Constituição Federal, será disciplinada pelo disposto nesta Lei Complementar [LC 108, art. 1º]”.
Noutros termos, tem-se que a base de toda a argumentação de inexigência de paridade nas contribuições extraordinárias apoia-se na seguinte premissa: quando o art. 202, § 3º determina que, em hipótese alguma, a contribuição normal do patrocinador poderá exceder a do segurado, contrario sensu, está a admitir que outras modalidades de contribuição não estariam abarcadas por esta obrigatoriedade. Como visto, esta chamada interpretação contrario sensu é equivocada, na medida em que o parâmetro de contraposição, ao invés de ser a classificação inscrita na própria lei que regulamenta este dispositivo constitucional – LC 108/2001 –, é substituído por previsão legal que não se volta a discipliná-lo (a LC 109/2001).
Diz-se que o instituto da paridade é, de fato, estranho à classificação instituída pela LC 109, em seu art. 19, pois o critério norteador que a permeia é diverso: o da temporalidade, ou, nos termos de obra doutrinária coordenada por WAGNER BALERA, o da pontualidade:
As denominadas contribuições normais são aquelas ordinárias, rotineiras, as quais provêm tanto dos patrocinadores/instituidores, como dos participantes, destinadas diretamente ao pagamento dos benefícios de natureza previdenciária.
São aquelas que são processadas e posteriormente cobradas, destinando-se à constituição de reservas técnicas.
No entanto, mesmo ocorrendo a cobrança das contribuições normais, este ato, por si só, não significa que haverá o efetivo pagamento, verificando-se, assim, o déficit ou a falta de recolhimento dos contribuintes por serviços já prestados no âmbito do plano, referidos na norma como serviços passados.
Assim, aquelas contribuições que não foram pagas pontualmente, transformaram-se, quando efetivamente recolhidas ao plano nas denominadas contribuições extraordinárias, as quais, ao fim e ao cabo, são destinadas, igualmente à constituição de reservas. (grifado)
(...)
Por outro lado, a leitura da LC 108/01 evidencia, sem demandar grandes esforços hermenêuticos, que o critério utilizado para a classificação das contribuições nela tratadas é completamente diverso. Guia-se efetivamente pela ótica da responsabilidade. Ou seja, diferencia contribuições, como sendo de responsabilidade do patrocinador e dos participantes (normal) ou exclusivamente dos participantes, sem contrapartida do patrocinador (facultativas). Reafirma, ainda, em atenção ao princípio da paridade (o qual se dispõe a regulamentar) que a contribuição normal do patrocinador não poderá exceder à do participante:”
Portanto, tem-se a paridade contributiva com preceito a ser obedecido pelas EFPC´s regidas pela Lei Complementar nº 108/2001, não podendo ser afastado por disposições das partes (autonomia privada e liberdade contratual), na medida em que afrontaria mandamento de ordem pública estatuído tanto em nível constitucional como infraconstitucional.
4. Da nulidade de cláusula regulamentar contrária a paridade contributiva.
Diante do reconhecimento da paridade contributiva como norma de ordem pública a ser obedecida em virtude da ocorrência de déficit no plano de benefícios, não se pode reconhecer a validade jurídica das disposições regulamentares contrárias, as quais se constituem em cláusulas nulas[8], na medida em que afrontam dispositivo legal de interesse público assegurados constitucionalmente.
Importante registrar entendimento do Tribunal de Contas da União de que “não cabe alegação a ‘direito adquirido’ e a ‘ato jurídico perfeito’, visto que atos ofensivos aos princípios constitucionais não se convalidam.”
Desse modo, afasta-se de plano qualquer argumentação, de ofensa a ato jurídico perfeito, na medida em que sequer há formação de ato jurídico perfeito, uma vez que o regulamento com cláusulas em desacordo com à paridade contributiva, exigida para as EFPC submetidas à LC nº 108/2001, não se constitui em conformidade com a lei vigente à época de sua formação.
Tampouco, há que se falar em primazia do princípio da segurança jurídica para validar regulamento com cláusulas contrárias à Lei Fundamental e as leis regulamentares (LC nº 108/2001 e LC nº 109/2001), o que conduziria a perpetuação de ato administrativo eivado de inconstitucionalidade e ilegalidade, algo inadmissível no Estado Democrático de Direito.
Neste sentido é o entendimento do Tribunal de Contas da União, consoante trechos dos itens 9 e 10 do voto do Relator no do Acórdão 475/2008-Plenário:
9. No que concerne ao princípio da segurança jurídica, (...), há que se ter presente o pensamento que prepondera no Tribunal, no sentido de que aquele postulado (princípio da segurança jurídica) só prevalece sobre o princípio da legalidade em situações extremas, (...), consoante vem-se manifestando a Corte de Contas em circunstâncias análogas (Acórdãos nºs 2.266/2005-Plenário, 2.040/2006-Plenário, 2.329/2006-Plenário, 2.919/2006-2ª Câmara, 398/2007-Plenário, 514/2007-Plenário, 1.258/2007-Plenário, 1.731/2007-Plenário, entre outros).
10. É a tese defendida pela maioria dos membros deste Colegiado, ao considerar que a segurança jurídica constitui exceção à regra de invalidação dos atos ilegais, devendo, por isso, ser vista sempre de forma restritiva.
Igualmente, deve se afastar a ofensa a direito adquirido[9], pois se não há constituição de direitos anteriores a vigência da redação do §3º do art. 202 da Constituição Federal, com a redação dada pela EC nº 20/1998, época em que seria possível a assunção integral pelas patrocinadoras públicas dos possíveis déficits existentes, não se formará a garantia constitucional de tal direito.
O que se observa é a constituição de reservas para percepção futura de benefícios (expectativa de direito), não se assemelhando ao direito adquirido em si cuja conceituação importa-se do §2º do art. 6º da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (Decreto- lei nº 4.657/1942): “consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo prefixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem”.
Registra-se, também, que cláusula de regulamento em desobediência à paridade contributiva jamais poderá ser convalidada por decurso temporal em razão de afronta direta aos preceitos constitucionais e infraconstitucionais, representando dispositivo contrário ao interesse público, o qual eleva a paridade contributiva como princípio constitucional a ser obedecido por todas as EFPC´s que se encontram sob a égide da Lei Complementar nº 108/2001.
Cabe destacar que ainda que o órgão fiscalizador, Superintendência Nacional de Previdência Complementar – PREVIC aprovasse uma cláusula de regulamento de plano de benefício administrado por EFPC contrária a paridade contributiva tal ato administrativo seria eivado de vício de nulidade.
Ora, o ato administrativo que aprova o regulamento de planos de benefícios consiste em uma espécie de ato homologatório[10], na medida em que se trata de ato vinculado em que a autarquia fiscalizadora observará a adequação do ato privado, que lhe foi submetido, com os pressupostos legais impositivos de observância obrigatória.
Para Celso Antônio Bandeira de Mello[11]: “O ato administrativo é válido quando foi expedido em absoluta conformidade com as exigências do sistema normativo. Vale dizer, quando se encontra adequado aos requisitos estabelecidos pela ordem jurídica. Validade, por isto, é a adequação do ato às exigências normativas”. Continua o administrativista “os atos administrativos praticados em desconformidade com as prescrições jurídicas são inválidos. A noção de invalidade é antitética à de conformidade com o Direito (validade).”
O regulamento com dispositivos contrários a Lei Fundamental e as normas reguladoras da previdência privada, e que até hoje produz efeitos, deve ser invalidado[12], não se tratando de uma faculdade, mas de um dever, em razão da primazia do princípio da legalidade.
Este é o entendimento dos enunciados das súmulas nº 473 e nº 346 do Supremo tribunal Federal:
"A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos, ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial." (Súmula nº 473.)
"A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos." (Súmula nº 346.)
A manutenção de cláusulas regulamentares em afronta aos preceitos constitucionais e a aprovação pelo órgão fiscalizador não tem o poder de conferir imutabilidade ao ato administrativo[13], o qual reconhecidamente eivado de nulidade por homologar regulamento com conteúdo contrário à paridade contributiva.
Destaca-se o item 16 do voto do Relator no Acórdão nº 2429/2005 – Segunda Câmara do Tribunal de Contas de União:
“16. Assim, em face do princípio da legalidade, o alcance do artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal, é mitigado no âmbito da Administração Pública. Para ter reconhecida a regularidade de seus atos, não basta ao agente público demonstrar a inexistência de vedação para sua prática. É necessário demonstrar haver, na legislação, autorização expressa para sua realização.”
O ato administrativo de aprovação do regulamento, como já dito, é na verdade ato homologatório, o que não deixa margem a qualquer juízo de conveniência e oportunidade quanto ao mérito, apenas se averigua a conformidade do regulamento da EFPC com a legalidade ou não.
5. Conclusão
O comando constitucional do §3º do art. 202 da Constituição Federal não pode ser relativizado contratualmente pelas partes integrantes da relação de previdência complementar, no caso específico participantes, patrocinador público e Entidade Fechada de Previdência Complementar.
Trata-se de norma de ordem pública, de caráter absoluto, a partir de sua vigência, não se podendo permitir há existência de regras de direito privado em dissonância com a ordem constitucional, mesmo diante de uma relação de natureza contratual.
Neste sentido, faz-se obrigatória a obediência à paridade contributiva nas contribuições vertidas pelos patrocinadores públicos no patrocínio de Entidades Fechadas de Previdência Complementar, inclusive, na ocorrência de resultado deficitário.
6. Referências Bibliográficas
FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Direito civil – teoria geral. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2006.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 26ª ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2011.
ONGARATTO, Vinícius. Ato Jurídico Perfeito, Coisa Julgada e Direito Adquirido. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIII, n. 81, out 2010. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8805&revista_caderno=2>. Acesso em dez 2012.
PULINO, Daniel. Previdência Complementar. Natureza jurídico-constitucional e seu desenvolvimento pelas Entidades Fechadas. São Paulo: Editora Modelo, 2011.
ROCHA, Leonardo Vasconcellos. Paridade contributiva no regime de previdência complementar: o caráter absoluto da vedação de aporte de recursos a entidades de previdência privada, por parte dos chamados patrocinadores públicos, em valores superiores aos vertidos por participantes. Revista Virtual da AGU. Ano XII, nº 125, junho 2012.
SOUZA, Márcio Luís Dutra de. O princípio da boa fé na Administração Pública e sua repercussão na invalidação administrativa. Revista Virtual da AGU, Ano XII, nº 125, junho 2012.
WEINTRAUB, Arthur Bragança de Vasconcelos. A influência da previdência privada dos EUA no Brasil. Revista de Direito Social, Porto Alegre, NOTADEZ INFORMACAO v.15, jul. 2004
[1] PULINO, Daniel. Previdência Complementar. Natureza jurídico-constitucional e seu desenvolvimento pelas Entidades Fechadas. São Paulo: Editora Modelo, 2011, pp. 282-283.
[2]Segundo Pulino: “Apesar de inequivocamente submetida a regime jurídico de direito privado – que é sua própria espinha dorsal – , a atividade de previdência complementar desenvolve-se dentro de limites acentuadamente marcados em lei.
Antes de qualquer especificidade que possamos apontar para o setor, é preciso dizer que, por definição, a autonomia privada é sempre sujeita às limitações impostas pela ordem estatal, que delimita o espaço em que se pode inserir a atividade normativa dos particulares.” (Ob. cit., p. 286)
[3] Neste sentido, o seguinte julgado:“A concepção moderna do princípio da autonomia da vontade, que se harmoniza com o princípio da obrigatoriedade dos contratos, afastou-se do caráter absoluto anterior e, diante de determinadas circunstâncias, admite a imposição de limites ao poder de contratar...”(TJ/RJ, AC. 5ª Câm. Cív., Ap. Cív. 10.128/2000, Rel. Des. Mílton Fernandes de Souza, DOERJ 6.11.2000)
[4] WEINTRAUB, Arthur Bragança de Vasconcelos. A influência da previdência privada dos EUA no Brasil. Revista de Direito Social, Porto Alegre, NOTADEZ INFORMACAO v.15, jul. 2004, pp.175-177 e 179.
[5] FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Direito civil – teoria geral. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2006, p.396.
[6] Ob. cit., p. 174.
[7] ROCHA, Leonardo Vasconcellos. Paridade contributiva no regime de previdência complementar: o caráter absoluto da vedação de aporte de recursos a entidades de previdência privada, por parte dos chamados patrocinadores públicos, em valores superiores aos vertidos por participantes. Revista Virtual da AGU. Ano XII, nº 125, junho 2012.
[8] Para Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald: “A nulidade viola interesses públicos, cuja proteção interessa a todos, à própria pacificação social.” (Ob. cit., p. 414)
[9] Segundo Vinícius Ongaratto: “(...) quando alguém, na vigência de uma lei determinada, adquire um direito relacionado a esta, referido direito se incorpora ao patrimônio do titular, mesmo que este não o exercite, de tal modo que o advento de uma nova lei, revogadora da anterior relacionada ao direito, não ofende o status conquistado, embora não tenha este sido exercido ou utilizado; por exemplo, o funcionário público que, após trinta anos de serviço, adquire direito à aposentadoria, conforme a lei vigente, não podendo ser prejudicado por eventual lei posterior que venha ampliar o prazo para a aquisição do direito à aposentadoria”. (ONGARATTO, 2010)
[10] “Homologação – é o ato vinculado pelo qual a Administração concorda com ato jurídico já praticado, uma vez verificada a consonância dele com os requisitos legais condicionadores de sua válida emissão. Percebe-se que se diferencia da aprovação a posteriori em que a aprovação envolve apreciação discricionária ao passo que a homologação é plenamente vinculada”. (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 26ª ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2011, p. 440).
[11] Ob. cit., pp. 387 e 465.
[12] Segundo Celso Antônio: “Se é ato abstrato, como o regulamento, por exemplo, sua característica específica reside justamente em ser fonte contínua de efeitos. Isto é, toda vez que se renove a situação abstrata nele prevista, o ato produz novamente um fluxo de efeitos. (...) Nestes casos a invalidação surge para cumprir um duplo objetivo: impedir que a fonte produtora de efeitos (o ato) continue a gerar novas relações e suprimir as já nascidas. Portanto, ataca cumulativamente o ato e os efeitos, inclusive os já ocorridos.(...)
Perante atos inválidos a Administração Pública não tem discrição administrativa que lhe permite escolher com liberdade se convalida um ato viciado ou se deixa de fazê-lo. Também não tem liberdade para optar se invalida ou se deixa de invalidá-lo. Finalmente, não pode, outrossim, eleger livremente entre as alternativas de convalidar ou invalidar, ressalvada uma única hipótese: tratar-se de vício de competência em ato de conteúdo discricionário.” (Ob. cit., p. 467 e 479)
[13] Neste sentido são as palavras de Márcio Luís Dutra de Souza: “O Estado Democrático de Direito gera reflexos no próprio exercício da função administrativa, pois passa não só a considerar uma atuação em conformidade com a lei, mas em consonância com o Direito, vale dizer, à totalidade do complexo sistema de fontes que conforma o ordenamento jurídico e caracteriza, temporalmente, as relações entre o Direito e a Justiça. Com efeito, a moderna concepção de Administração Pública comporta não apenas respeito aos ditames da lei ordinária, mas também à Constituição Federal e aos direitos fundamentais ali inseridos”. (SOUZA, Márcio Luís Dutra de. O princípio da boa fé na Administração Pública e sua repercussão na invalidação administrativa. Revista Virtual da AGU, Ano XII, nº 125, junho 2012, p. 6)
Procuradora Federal, Chefe de Divisão da Coordenação Geral de Representação Judicial na Procuradoria Federal junto à PREVIC, Especialista em Direito Público pela Universidade de Brasília.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Dirlene Gregório Pires da. Da incidência das normas de direito público na relação de previdência complementar com patrocínio público: obediência à paridade contributiva Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 dez 2012, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/32944/da-incidencia-das-normas-de-direito-publico-na-relacao-de-previdencia-complementar-com-patrocinio-publico-obediencia-a-paridade-contributiva. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Maurício Sousa da Silva
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