O atual conceito e concepção que se tem de jurisdição é fruto de séculos de desenvolvimento teórico e prático, acompanhando as mais importantes modificações ocorridas nos regimes de poder e na realidade em que se inserem os ordenamentos jurídicos em todo o mundo.
Anteriormente ao surgimento do Estado Liberal de Direito, vigoravam os princípios jurídicos do absolutismo, em tempos conhecidos como ancien régime. O Estado Absoluto não se preocupava com o conceito de jurisdição, pois a plebe deveria, simplesmente, se submeteràs normas jurídicas impostas pelos monarcas.
Após grave período de revoluções, e o natural declínio do ancien régime, a classe burguesa ascendeu ao poder, e erigiu o princípio da legalidade como fundamento máximo do sistema jurídico. Tal elevação do princípio da legalidade ocorreu com vistas à própria proteção da burguesia e do Estado Liberal que se pretendia criar, retirando o poder de criar as normas jurídicas das mãos do monarca e atribuindo-o ao Poder Legislativo, formado por essa mesma burguesia. Dessa forma, o princípio da legalidade foi idealizado como forma de garantir aos cidadãos a liberdade pela qual tanto se lutou, impedindo, dessa forma, que os administradores e juízes praticassem qualquer ato que se chocasse com a Lei. Não bastaria uma ordem do rei para que um cidadão tivesse invadida sua liberdade e propriedade, era necessária uma Lei que assim autorizasse, e a criação dessa Lei estava nas mãos do Legislativo.Desenvolveu-se a teoria da tripartição dos Poderes, visando legitimar a submissão dos Poderes Executivo e Judiciário à lei, ou seja, ao Poder Legislativo. Estava criado o absolutismo legislativo.
O princípio da liberdade impunha o tratamento igualitário de todos os cidadãos, não se admitindo qualquer diferenciação, e a Lei era suficiente para solucionar todas as situações que viessem a surgir no seio social, dispensando recurso às normas constitucionais. O princípio da legalidade, nos termos acima, foi imposto com a concepção de que o Direito se resumia à lei, e sua validade independia completamente de sua correspondência com a justiça, estando apenas vinculada ao fato de ter sido produzida pela autoridade competente para tanto, o que desencadeou futuramente o desenvolvimento da teoria positivista do direito.
Àquele tempo, é compreensível que se buscasse proteção contra os desmandos da Administração do Rei e as arbitrariedades dos juízes corruptos, limitando vigorosamente seu poder. Os cargos dos juízes eram hereditários, e também podiam ser comprados e vendidos, daí sua vinculação com o Poder constituído do ancien regime e a necessidade premente de limitação de seus atos.
A idéia que vigorava, e que vigorou por bastante tempo, era a de que ao juiz competia apenas “atuar a vontade da lei”. Como afirmou Chiovenda, o juiz deve “afirmar existente ou inexistente uma vontade concreta da lei em relação às partes” (Principios Del derecho procesal, p. 365). Na mesma linha de pensamento, entendendo ser a função do juiz apenas declarar a vontade da lei(mesmo que para isso criasse a norma individual, como afirmou Kelsen, ou tornasse a lei particular para as partes, segundo Carnelutti), manifestaram-se Kelsen, Carnelutti e Calamandrei.
Atualmente, com a evolução histórica e as conseqüentes modificações ocorridas na sociedade, a concepção de jurisdição foi alterada, acompanhandapela evolução do conceito do princípio da legalidade, especialmente com a expansão da doutrina do neoconstitucionalismo. Passou-se a compreender que não apenas importa a forma com a qual a lei é editada, para o fim de proclamar sua validade, é agora preciso confrontar sua substância, seu conteúdo, com os princípios constitucionais e os princípios de justiça. A lei perde seu posto de supremacia, e passa a se submeter à Constituição.
O trabalho do juiz, ao exercer a jurisdição, não é mais apenas de declarar a vontade da lei, atuando como simples repetidor, mas sim de aplicar a lei após interpretá-la e compreendê-la em conformidade com os princípios constitucionais de justiça e dos direitos fundamentais.
O novo princípio da legalidade não é mais formal, mas eminentemente substancial.
A jurisdição passou a ser entendida não mais como a função de revelar a lei, mas de elaborar uma solução normativa judicial, a partir da norma legal, da norma constitucional e dos princípios de justiça no caso concreto.
Não se pode negar que, no estágio atual do Direito, o conceito de jurisdição em muito se distancia da simples aplicação da Lei, afastando-se da própria origem da palavra juris dictio. A jurisdição, para considerar os princípios regentes do Regime Constitucional de Direito, bem como os princípios democrático e de justiça, compreende a elaboração, pelo juiz, de uma norma jurídica que possa reger o caso concreto posto à sua análise, atuando como criador do Direito (não no sentido de criar direitos não existentes, mas sim no sentido de criar uma norma para o caso concreto que reflita a aplicação do sistema de regras e princípios jurídicos, e passe a fazer parte do Direito como um todo, nos termos afirmados pela teoria unitária do ordenamento jurídico). Não se afirma, com isso, que o juiz lançar-se-á a uma atividade legiferante, pois o que ocorre é o contrário, o juiz buscará no sistema jurídico as normas e interpretações que mais correspondam aos princípios expressos e implícitos na Constituição. Não se há de esquecer o vínculo indissolúvel de função jurisdicional com realização da justiça no caso concreto.
A grande preocupação da jurisdição não é de repetir o que dizem as leis e evitar sua violação, mas sim de realizar uma interpretação que possa de fato efetivar a tutela dos direitos emanados da Constituição da República. Uma decisão que não atenda aos princípios de justiça e os direitos fundamentais, mesmo que atente para todas as regras legais aplicáveis, será uma decisão que viola frontalmente todo o sistema jurídico, não constituindo jurisdição.
Acerca do tema, opina Luiz Guilherme Marinoni (Teoria Geral do Processo, p. 45-46):
“Não há como negar, hoje, a eficácia normativa ou a normatividade dos princípios de justiça. Atualmente, esses princípios e os direitos fundamentais têm qualidade de normas jurídicas e, assim, estão muito longe de significar simples valores. Aliás, mesmo os princípios constitucionais não explícitos e os direitos fundamentais não expressos têm plena eficácia jurídica.
Tal tomada de consciência é muito importante para se concluir que tais princípios e direitos conferem unidade e harmonia ao sistema, não dando alternativa ao juiz e ao jurista senão colocar a lei na sua perspectiva. Vale dizer que as normas constitucionais são vinculantes da interpretação das leis.”
No caso concreto, o exercício da função jurisdicional deve ser realizado através de uma interpretação finalística do sistema jurídico, firmando bases nos princípios constitucionais, especialmente da justiça (art. 3º, inciso I, da CF), dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da CF), e da igualdade substancial (art. 5º, caput, da CF).
Segundo Dworkin,deve-se aceitar que o sistema jurídico é formado historicamente, assim como os direitos são criados ao longo dos tempos, o que remete à necessidade de uma interpretação construtiva do ordenamento jurídico, através da aplicação de princípios contidos no sistema (considerando sua diferenciação entre normas-regras e normas-princípios). Dworkin pensa que o juiz Hercules (figura criada por ele para descrever o juiz ideal) deve decidir quais princípios serão aplicados em cada caso concreto.
Dessa forma, o juiz, ao julgar, confrontará a situação posta à sua mesa com os princípios existentes no sistema, e realizará interpretação de acordo com o momento histórico atual, com a situação social e econômica em vigor, e outros fatores de influência externa, realizando interpretação construtiva do ordenamento, podendo dele extrair direitos que não existiam em outro momento histórico e outra situação social, mesmo que as normas interpretadas não tenham se modificado.
Referências Bibliográficas
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 2012
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
MARINONI, Luis Guilherme. Teoria Geral do Processo. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2006.
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