A criação do Banco Nacional de Devedores Trabalhistas gerou alguma polêmica acerca de sua aplicação aos entes públicos, tendo ocorrido em algumas localidades a inclusão indevida destes entes em razão de suas condenações em processos trabalhistas. Diante desta situação, o presente artigo buscará esclarecer as razões jurídicas da impossibilidade de inclusão de entes públicos no referido cadastro, especialmente por duas razões: i) a Lei que cria o Banco Nacional de Devedores Trabalhistas não se aplica ao Poder Público; ii) o Poder Público está sujeito a procedimento especial para o pagamento de dívidas decorrentes de sentença transitada em julgado, o que impossibilita a ocorrência do inadimplemento previsto na Lei que criou o mecanismo.
1. Inaplicabilidade da Lei nº 12.440/2011 aos entes públicos
A Lei nº 12.440/2011 promoveu alterações no Decreto nº 5.452/43 (Consolidação das Leis Trabalhistas) e na Lei nº 8.666/93 (Lei de Licitações), instituindo a Certidão Negativa de Débitos Trabalhistas – CNDT, que passou a ser exigida para a comprovação da inexistência de débitos inadimplidos perante a Justiça do Trabalho. Regulamentando a Lei, o Tribunal Superior do Trabalho editou a Resolução Administrativa nº 1470/2011, instituindo o Banco Nacional de Devedores Trabalhistas e disciplinando a emissão da CNDT.
Segundo a Lei, a CNDT pode ser obtida por qualquer interessado, e apenas não será emitida quando em seu nome constar: 1) o inadimplemento de obrigações estabelecidas em sentença condenatória transitada em julgado proferida pela Justiça do Trabalho ou em acordos judiciais trabalhistas; ou 2) o inadimplemento de obrigações decorrentes de execução de acordos firmados perante o Ministério Público do Trabalho ou Comissão de Conciliação Prévia. Determina a Lei, ainda, que a CNDT certificará a empresa em relação a todos os seus estabelecimentos, agências e filiais, com prazo de validade de 180 dias.
O Tribunal Superior do Trabalho, por meio da norma regulamentadora, instituiu o BNDT e determinou a inclusão obrigatória do devedor que, devidamente cientificado, não pagar o débito ou descumprir obrigação de fazer ou não fazer, no prazo previsto em lei.Como se verá a seguir, tais normas não são aplicáveis ao Poder Público, referindo-se apenas a pessoas jurídicas de direito privado, e foram instituídas com a finalidade de possibilitar o controle, pelo Estado, do cumprimento dessas obrigações trabalhistas, como pressuposto à possibilidade de contratar com a Administração Pública.
A conclusão no sentido da inaplicabilidade destas normas ao Poder Público decorre de diversos fatores, merecendo destaque os seguintes: a própria lei refere-se expressamente à “empresa”; as alterações promovidas pela Lei 12.440/2011 na Lei de licitações aplicam-se apenas aos entes privados; a regulamentação do TST indica sua aplicabilidade apenas aos entes privados; a tramitação da Lei no Senado e na Câmara dos Deputados demonstra sua destinação completa ao setor privado, inexistindo referência à aplicação ao Poder Público.
Inicialmente, a Lei nº 12.440/2011 afirma que a CNDT poderá ser obtida pelo “interessado”, para em seguida afirmar que a certidão certificará “a empresa” em relação a todos os seus estabelecimentos. A utilização da expressão “empresa”, no mesmo artigo que trata do “interessado”, sugere a coincidência entre estes dois conceitos, indicando que a empresa interessada poderá obter a certidão e ela valerá para todos os seus estabelecimentos. Este primeiro indicativo é reforçado em seguida, com a alteração do art. 27, inciso IV, e art. 29, inciso V, da Lei de Licitações. As alterações promovidas passaram a exigir das empresas licitantes, para sua habilitação nos procedimentos licitatórios, a comprovação de regularidade trabalhista, e que esta comprovação consistirá na apresentação da CNDT.
Por sua vez, a Resolução Administrativa nº 1470/2011, do Tribunal Superior do Trabalho, ao regulamentar a Lei nº 12.440/2011, estabelece diversos dispositivos claramente incompatíveis com o regime jurídico de direito público, por exemplo:
Art. 1º (...)
§ 1º-A Antes de efetivar a ordem de inclusão do devedor no BNDT, em caso de execução por quantia certa, o Juízo da Execução determinará o bloqueio eletrônico de numerário por meio do sistema BACENJUD (art. 655, I, CPC) e também registrará no sistema, quando for o caso, a informação sobre a existência de garantia total da execução.
(...)
§ 4º Uma vez inscrito, o devedor comporá pré-cadastro para a emissão da CNDT e disporá do prazo improrrogável de 30 (trinta) dias para cumprir a obrigação ou regularizar a situação, a fim de evitar a positivação de seus registros junto ao BNDT.
Ambos os dispositivos são inaplicáveis ao Poder Público, pois não há possibilidade jurídica de bloqueio eletrônico de numerário nem de pagamento do débito em 30 dias, diante do procedimento próprio de precatórios, como será melhor detalhado no próximo tópico. Contrariamente, caso a norma objetivasse aplicação ao Poder Público, haveria previsão específica neste sentido, determinando a adoção de procedimento alternativo, adequado às particularidades normativas do ente estatal, o que não há.
Por fim, toda a tramitação legislativa que resultou na edição da Lei em questão demonstra sua vocação exclusiva à regulação do setor empresarial. Este claro direcionamento às pessoas jurídicas de direito privado pode ser verificado no Parecer elaborado pelo Deputado Rodrigo Maia, e aprovado pela Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público da Câmara dos Deputados, na análise do Projeto de Lei nº 7.077/2002, que originou a Lei nº 12.440/2011[1]. Neste Parecer, o relator do PL refere-se à CNDT afirmando que:
“Tal certidão, a ser fornecida pela Justiça do Trabalho, é exigida de empresa, individual ou coletiva, nas hipóteses de contratação ou renovação de contrato com o Poder Público; no caso de recebimento de benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios; na alienação ou oneração de bem imóvel; no registro de alterações da empresa. As três primeiras hipóteses também são aplicáveis a pessoas físicas”.
Esta é a descrição do objetivo do PL, qual seja, a instituição de uma certidão negativa trabalhista a ser exigida da empresa como requisito para a contratação com o Poder Público. Não há qualquer referência ou preocupação com eventuais débitos do próprio Estado, ou a qualquer restrição à celebração de convênios.
Mais adiante, na elaboração do seu voto, o relator do PL pondera sobre a importância da instituição da CNDT, afirmando que sua exigência como requisito para a participação em licitação pública estimula as empresas ao cumprimento de suas obrigações trabalhistas, concluindo pela aprovação do projeto:
“Com efeito, ao se exigir que, para participar de licitações, as empresas apresentem a certidão negativa de débitos trabalhistas, há o estímulo para que a empresa cumpra as suas obrigações trabalhistas para não ser impedida de contratar com o Poder Público”.
Seguindo para a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados, o mesmo PL foi objeto de novo Parecer, tendo como Relator o Deputado Luiz Couto, aprovado pela referida Comissão em 25 de outubro de 2008[2]. Neste Parecer, novamente, é destacada a intenção do projeto, no sentido de exigir das empresas a quitação dos débitos trabalhistas como condição para a contratação com o Poder Público:
“A proposição tem o intuito de aproximar o tratamento dado aos créditos trabalhistas do modelo criado para reduzir o inadimplemento junto à Fazenda Pública e à Seguridade Social. Realmente não é razoável que os contratantes com o Poder Público cuidem, apenas, de regularizar sua situação com a Fazenda Pública e com a Previdência Social, relegando a último plano a preferência legal dos créditos trabalhistas, em detrimento dos trabalhadores”.
O Parecer faz expressa menção aos “contratantes com o Poder Público”, demonstrando claramente qual o destinatário da norma em discussão. O Parecer cita manifestação do Ministro do TST, Vantuil Abdala, sobre o PL, em trecho que merece transcrição:
“(...) Naturalmente, não me parece que seja inconstitucional um projeto dessa natureza, porque, quando o artigo 37, XXI, da Constituição Federal diz que somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações, entende-se que também a empresa que não paga um débito trabalhista é uma empresa que não tem idoneidade econômico-financeira. Isso nada mais é do que a falta de garantia de cumprimento de obrigações e o poder público não deve mesmo atribuir um contrato de monta, de responsabilidade, a quem não tem idoneidade.
Não há prova maior de inidoneidade do que a de quem não paga sequer direitos dos trabalhadores. Uma empresa que não cumpre com essa obrigação elementar, fundamental, de pagar o sagrado direito do trabalhador, é muito provável que ela não cumpra com outras obrigações. Empresas desse tipo não devem mesmo ser admitidas num processo de licitação pública para contratar com o poder público. Já é uma tradição, e das mais louváveis, exigir-se a comprovação da idoneidade econômica, que é, como diz a norma, indispensável à garantia do cumprimento das obrigações.
Não deve haver o inadimplemento de uma condenação imposta pela Justiça. Aliás, já há muitos anos, para se registrar uma escritura pública da transferência de um bem, exige-se a certidão negativa de débito para com a União. Por que não se exigir a certidão negativa de débitos para com os trabalhadores? No Brasil, exige-se a certidão negativa de condenação perante qualquer órgão do Judiciário, menos da Justiça do Trabalho.
De maneira que não vejo nenhuma inconstitucionalidade. Data vênia, somente um mau empresário, alguém que não quer cumprir com sua obrigação trabalhista, que já foi discutida e objeto de condenação com trânsito em julgado, é capaz de ter a ideia de não querer essa norma aprovada e alegar que ela é inconstitucional. Os bons empresários não têm nada a temer, porque obterão a certidão negativa de condenação na Justiça do Trabalho de maneira fácil, rápida e gratuita. Quem tem a temer alguma coisa é aquele que não paga e não quer pagar ? E esse não deve mesmo ser admitido a contratar com o poder público?”
O Parecer prossegue nesta mesma linha, abordando a necessidade de se exigir das empresas a quitação de seus débitos trabalhistas como requisito para a contratação com a Administração. Este é o intuito do legislador, e a leitura integral do Parecer da CCJC pode esclarecer bem este sentido, evitando outras transcrições.
Chegando ao Senado Federal, o Projeto foi submetido à apreciação da Comissão de Assuntos Sociais, que aprovou Parecer do Senador Casildo Maldaner. O teor do Parecer não deixa dúvidas acerca do real objetivo da norma, no mesmo sentido já esclarecido pela Câmara dos Deputados:
“O projeto sob exame tem por finalidade dar aos créditos trabalhistas tratamento similar ao dispensado, atualmente, pela legislação pátria, no combate ao inadimplemento junto à Fazenda Pública e à Seguridade Social. Busca-se, na verdade, obrigar os empregadores a quitar suas dívidas trabalhistas, não raras vezes consideradas de baixo impacto pela área financeira das empresas, já que os encargos que incidem sobre elas são relativamente pequenos.
O projeto vem, portanto, em boa hora. Com ele não só se aparelha o Estado de mais um mecanismo de comprovada eficiência na contratação de empresas idôneas na execução de seus contratos, como também, cria-se um instrumento capaz de convencê-las a buscar soluções mais rápidas para os litígios decorrentes das relações de trabalho e o consequente adimplemento, em menor prazo, das dívidas trabalhistas.
A despeito de já dispor a Administração Pública de instrumentos legais de fiscalização e cobrança dos direitos trabalhistas, estamos convencidos que, com a instituição da CNDT, será estimulado o equacionamento das pendências judiciais e, concomitantemente, haverá maior controle do pagamento dos créditos trabalhistas.
(...)
Assim, relativamente ao mérito da proposta, não há reparos a fazer, pois é inaceitável que os contratantes com o Poder Público releguem a um segundo plano a preferência legal dos créditos trabalhistas, em detrimento dos trabalhadores”.
Pelo exposto, a interpretação da Lei nº 12.440/2011 conduz à conclusão de que não é ela destinada ao Poder Público, mas exclusivamente às empresas, com a clara finalidade de exigir dos contratantes com a Administração a quitação de seus débitos trabalhistas. Esta conclusão é autorizada pelo próprio texto da norma, pela lei que é alterada por ela (lei de licitações), pela regulamentação do TST e, principalmente, pelo estudo das discussões travadas e dos objetivos buscados ao longo do processo legislativo.
2. Impossibilidade de inclusão de entes públicos no BNDT – ausência de inadimplemento – pagamento por precatórios
A disciplina de pagamentos devidos pela Fazenda Pública está previsto na Constituição Federal:
“Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim”.
A regra dos precatórios para pagamentos dos débitos da Fazenda Pública decorrentes de sentença judicial é incompatível com o regramento previsto na Lei nº 12.440/2011, diante da inexistência de inadimplemento do Estado. Havendo sentença transitada em julgado, constituindo uma dívida a ser paga pelo ente público, este pagamento será realizado por meio de precatórios, seguindo estritamente os trâmites legais. A regra do precatório impede o inadimplemento do Estado.
Este argumento, por si só, já afasta a aplicação da Lei nº 12.440/2011 à Fazenda Pública, pois seu artigo primeiro, que altera a CLT, é claro em afirmar sua a finalidade da CNDT é a comprovação de inexistência de débitos inadimplidos perante a Justiça do Trabalho:
Art. 642-A. É instituída a Certidão Negativa de Débitos Trabalhistas (CNDT), expedida gratuita e eletronicamente, para comprovar a inexistência de débitos inadimplidos perante a Justiça do Trabalho.
No caso dos entes públicos, faltará sempre a premissa fundamental para a aplicabilidade do dispositivo, pois pelo sistema constitucional inexiste débito inadimplidodestes entes perante a Justiça do Trabalho. Quaisquer débitos decorrentes de sentença transitada em julgado serão quitados segundo o procedimento de precatórios previsto na Constituição, procedimento este controlado pelo próprio Tribunal, sem que em nenhum momento fique configurado o inadimplemento deste ente público.
Conclui-se, portanto, pela inaplicabilidade da Lei nº 12.440/2011 aos entes públicos, por pressupor a ocorrência de inadimplemento, o que o art. 100 da Constituição impede que aconteça.
3. Conclusão
A partir das ponderações acima elencadas, conclui-se que inclusão de entes públicos no Banco Nacional de Devedores Trabalhistas – BNDT, impedindo a emissão da Certidão Negativa de Débitos Trabalhistas – CNDT criada pela Lei nº 12.440/2011, constitui ato ilegal, bem como a exigência de tal certidão como condição para a celebração de Convênios.
A Lei nº 12.440/2011 foi criada com a única e exclusiva finalidade de exigir das empresas privadas a quitação de seus débitos com a Justiça do Trabalho como requisito para a participação em licitações públicas e para a celebração de contratos administrativos com Administração. Não se aplica, portanto, ao Poder Público, que não pode ser incluído no referido BNDT e de quem não pode ser exigida a CNDT em nenhuma circunstância.
Mestre em Direito das Relações Internacionais pelo Uniceub. Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GOMES, Milton Carvalho. Apontamentos sobre o Banco Nacional de Devedores Trabalhistas e sua inaplicabilidade aos entes públicos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 dez 2012, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/33087/apontamentos-sobre-o-banco-nacional-de-devedores-trabalhistas-e-sua-inaplicabilidade-aos-entes-publicos. Acesso em: 22 nov 2024.
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