INTRODUÇÃO
A evolução da autonomia dos municípios brasileiros ao longo das Constituições Federais deu-se de forma pendular, pois a períodos em que houve uma intensa compressão das franquias municipais sucederam-se outros nos quais foi conferida considerável autonomia às municipalidades, e, por sua vez, a períodos em que se atribuiu ampla autonomia aos municípios sobrevieram outros nos quais se defendeu um forte regime interventorial nas municipalidades.
Com a independência do Brasil, foi outorgada a Constituição de 1824, que, em seus artigos 167 a 169, instituiu, em todas as cidades e vilas, Câmaras municipais, às quais foi designado o governo econômico, o exercício das funções municipais, a formação das suas forças policiais, a aplicação das suas rendas, bem como todas as suas particulares e úteis atribuições, a serem regulamentadas por lei ordinária. No entanto, não obstante a existência de tais previsões constitucionais, que fizeram florescer uma forte expectativa em torno da autonomia municipal, a lei regulamentar introduziu um regime de centralismo provincial, no qual os municípios foram submetidos a uma estrita subordinação administrativa e política aos presidentes de suas respectivas províncias.
Proclamada a República, foi editada a Constituição de 1891, a qual previu, em seu artigo 68, que os Estados deveriam se organizar de forma a assegurar a autonomia dos Municípios em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse. Contudo, embora as leis orgânicas tenham reafirmado a autonomia municipal, esse princípio ficou apenas nos textos legais. Destarte, durante a vigência da primeira Constituição republicana, não houve autonomia municipal no Brasil.
Após a Revolução de 1930, foi promulgada a Constituição de 1934, que, diante da experiência do regime anterior, no qual a mera previsão constitucional da autonomia municipal não foi suficiente para a sua efetivação, conferiu às municipalidades um governo próprio e rendas próprias, que viabilizariam a realização dos serviços públicos de interesse local. Todavia, a curta vigência dessa Constituição não permitiu uma visualização da aplicabilidade prática dessas inovações introduzidas na esfera municipal.
O golpe ditatorial de 1937 atingiu profundamente a autonomia municipal, abolindo a eletividade dos prefeitos, mantendo o escrutínio apenas para os vereadores. Durante a vigência da Constituição outorgada em 1937 vigorou um regime interventorial nos Estados-membros e nos municípios, de forma que se pode dizer, até, que nesse regime as municipalidades foram menos autônomas do que sob o centralismo imperial.
Deposto o governo ditatorial, houve uma redemocratização e uma reconstitucionalização do país, através de uma Assembléia Constituinte eleita livremente. A Constituição de 1946 restaurou e, inclusive, revigorou a autonomia municipal, sob o tríplice aspecto político. No campo político, foi garantida a eletividade dos prefeitos e vereadores, exceto nas capitais estaduais, bem como nos municípios onde houvesse estâncias hidrominerais e naqueles declarados de excepcional interesse militar, nos quais os prefeitos eram nomeados pelo governados de seu respectivo Estado-membro ou Território. Administrativamente, a autonomia era baseada na idéia do peculiar interesse e na organização dos serviços públicos locais. Na seara financeira, foi garantida às municipalidades, além da participação em determinados tributos estaduais e federais, a autonomia para decretar e arrecadar tributos municipais, bem como aplicar suas rendas.
O golpe de estado de 1964 criou condições para a edição da Constituição de 1967, que manteve o regime federativo e assegurou a autonomia municipal, embora bem mais restrita do que a das Constituições anteriores. Os atos institucionais e as emendas constitucionais que a sucederam, dentre as quais toma destaque a Emenda Constitucional nº 1 de 1969, limitaram ainda mais as faculdades municipais no tríplice plano político, administrativo e financeiro.
A Constituição Federal de 1988 caracteriza-se por ter erigido os municípios brasileiros a uma posição de destaque em relação aos municípios das outras Federações existentes no mundo, tendo em vista que se operou uma significativa ampliação da autonomia municipal, no tríplice aspecto político, administrativo e financeiro. Inclusive, foi consagrada a expressa integração, na Federação brasileira, dos municípios, que, portanto, passaram a constituir importantes peças da organização político-administrativa brasileira.
Diante desse quadro, a doutrina majoritária sustenta que, com a edição da Constituição de 1988, as municipalidades brasileiras passaram a ser entes federativos. No entanto, essa não é uma questão pacífica, pois alguns doutrinadores defendem que, desde a promulgação da Constituição de 1946, os municípios já se tornaram entidades federativas, ao passo que outros sustentam que, ainda hoje, os municípios são divisões meramente administrativas.
Por meio deste trabalho, buscar-se-á aferir, a partir de uma análise da doutrina e dos dispositivos constitucionais pertinentes, a posição ocupada pelos municípios na Federação brasileira, tema sobre o qual repousa uma profunda divergência doutrinária. Antes disso, no entanto, será esboçada, por meio de um estudo da Teoria da Federação, a diferenciação entre uma mera coletividade territorial e um ente federativo, o que nos fornecerá os subsídios necessários ao enfrentamento do tema central deste trabalho.
1 O FEDERALISMO À LUZ DA CIÊNCIA POLÍTICA
A Teoria da Federação é um dos assuntos mais complexos da Ciência Política, dividindo, até hoje, a opinião dos estudiosos da matéria e constituindo um campo fértil ao surgimento das mais diversas teorias. Feita essa advertência, ressalte-se que, adotando os posicionamentos atualmente dominantes entre os cientistas políticos, serão doravante delineadas a origem histórica do Estado Federal, a sua conceituação jurídica, as suas principais características e a distinção dos Estados-membros para outras coletividades territoriais.
A origem do modelo federativo de Estado remonta a 1787, ano em que os representantes de treze Estados americanos reuniram-se na Filadélfia e elaboraram um texto constitucional que inaugurou uma forma até então desconhecida de organizar o poder político: a Federação. Nessa nova forma de organização, os Estados representados, embora mantivessem a sua individualidade, a sua organização e as suas competências próprias, abririam mão de parcela do seu poder em prol da criação de um novo Estado, composto pela união de todos eles.
Segundo Jellinek, o Estado Federal ou Federação é um “Estado soberano, formado por uma pluralidade de Estados, no qual o poder do Estado emana dos Estados-membros, ligados numa unidade estatal”.[1] Os cientistas políticos classificam-no como uma união constitucional, pois é criado através de uma Constituição, que, por constituir a sua base jurídica, irá fixar as atribuições da União e das unidades federativas, através de uma distribuição de competências.
O Estado Federal é caracterizado pela indissolubilidade do laço federativo, pois os Estados-membros que o compõem não possuem o chamado direito de secessão. Além disso, os cidadãos dos entes federativos compartilham uma única nacionalidade e obedecem a uma legislação federal comum, que cria direitos e obrigações aplicáveis indistintamente a todos os entes federativos.
No âmbito das relações internacionais, a Federação é representada por um único poder político soberano – o da União –, aparecendo como um Estado simples. Por sua vez, do ponto de vista interno, o poder é dividido com as unidades federativas, que, embora se achem, de certa forma, sujeitas ao poder central, são dotadas de autonomia política. Em virtude disto, diz-se que, nos Estados federais, há uma descentralização política. No entanto, para uma melhor compreensão desse fenômeno, mostra-se oportuno realizar uma abordagem preliminar das outras formas de distribuição de competências e poder dentro dos Estados.
A adoção de um modelo de Estado simples ou unitário[2], rigorosamente centralizado, só é possível em pequenos países, de população reduzida. Nesse sentido, até os Estados menos complexos tendem a repartir competências e poderes. A forma mais simples de realizar a distribuição de competências dentro de um Estado é a desconcentração, que consiste na distribuição de uma parcela limitada de competências decisórias[3] no interior de uma mesma pessoa jurídica, por meio da criação de subdivisões internas, geralmente denominadas órgãos. Frise-se, por oportuno, que os órgãos criados por desconcentração não possuem personalidade jurídica própria e continuam vinculados ao poder central por laços de dependência hierárquica.
Outra forma de repartir competências e poderes é a descentralização, que se dá mediante a criação de novas pessoas jurídicas. Segundo Celso Ribeiro Bastos[4], a descentralização pode assumir feição horizontal ou vertical. Por meio da horizontal, cria-se a denominada administração indireta, composta por autarquias, fundações e empresas estatais; e, pela vertical, dá-se origem a circunscrições territoriais, denominadas de municípios, províncias, regiões, departamentos ou comunas.
A descentralização subdivide-se, ainda, em administrativa e política. Para diferenciá-las, Celso Ribeiro Bastos[5] adota o critério de extensão dos poderes conferidos às circunscrições territoriais, afirmando que a descentralização administrativa consiste em atribuir-lhes poder apenas para eleger seus representantes e para, dentro dos seus limites territoriais e da sua competência material, desempenhar funções administrativas, mediante a prestação de serviços públicos. Ainda segundo o doutrinador, a descentralização tornar-se-ia política quando fossem atribuídas funções legislativas aos órgãos locais, ou seja, caso fosse instituído um órgão legislativo com poder para editar leis de aplicabilidade local.
No entanto, esse critério não se mostra inteiramente correto, pois o fato de haver a delegação de atribuições políticas, como o poder de legiferar, não implica per se na caracterização de uma descentralização política. Nesse sentido, podemos citar o exemplo das Regiões italianas, que, embora sejam dotadas de competência legislativa, não são consideradas entidades federativas autônomas.
Em virtude disso, tem logrado maior aceitação entre os cientistas políticos o critério adotado por Paulo Bonavides[6] e por Darcy Azambuja[7], qual seja, o de grau de dependência dos órgãos descentralizados quanto ao poder central. Segundo esses doutrinadores, o que caracteriza a descentralização administrativa é o fato de que as atribuições conferidas às autoridades locais, não importa se administrativas ou políticas, são oriundas de delegação pelo poder central, podendo serem por este aumentadas, diminuídas ou, até, suprimidas. A caracterização da descentralização política, por seu turno, dar-se-ia apenas mediante a atribuição de poderes políticos através de um diploma constitucional rígido, capaz de revesti-los de maior estabilidade. A propósito, se, por um lado, a descentralização administrativa também é compatível com os Estados simples, a configuração da descentralização política implica, inevitavelmente, na existência de um Estado federativo.
Com base nessa idéia, poder-se-ia chegar à conclusão de que a diferença entre um ente federativo e uma mera coletividade territorial não reside na extensão dos poderes que lhes são conferidos, mas no de grau de dependência dos órgãos descentralizados em relação ao poder central, que dependerá da origem jurídica da distribuição das competências e dos poderes: um ato de delegação do poder central ou um diploma constitucional.
Entrementes, os cientistas políticos propugnam a idéia de que o sistema federativo é tradicionalmente orientado por dois princípios básicos: a lei da participação e a lei da autonomia. Quanto à primeira, Paulo Bonavides pontifica que, em virtude dela, “tomam os Estados-membros parte no processo de elaboração da vontade política válida para toda a organização federal, intervêm com voz ativa nas deliberações de conjunto, contribuem para formar as peças do aparelho institucional da Federação”.[8] Assim, por meio da lei da participação, os entes federativos atuam na elaboração da Constituição Federal e das leis federais.
Em relação à contribuição para a formação da vontade federal, ressalte-se que essa forma de atuação dá-se em virtude da adoção, por parte das Federações, de uma forma específica de organização legislativa federal: o bicameralismo ou legislativo dual. Nele, o Poder Legislativo federal é repartido em duas Casas: uma representando o povo, com participação variável dos Estados-membros, segundo índices populacionais; e outra representando os Estados, os quais elegem a mesma quantidade de parlamentares, independentemente da sua respectiva extensão territorial, da sua densidade demográfica ou do seu nível de riqueza. É esta última Casa que, por exprimir equitativamente a vontade dos Estados-membros, permite-lhes, em absoluta igualdade, uma ingerência nos assuntos legislativos federais.
Por sua vez, Paulo Bonavides afirma que, através da lei de autonomia, as unidades federadas podem:
(...) livremente estatuir uma ordem constitucional própria, estabelecer a competência dos três poderes que habitualmente integram o Estado (executivo, legislativo e judiciário) e exercer desembaraçadamente todos aqueles poderes que decorrem da natureza mesma do sistema federativo, desde que tudo se faça na estrita observância dos princípios básicos da Constituição Federal.[9]
A propósito, Darcy Azambuja defende que é essa faculdade de auto-organização e de autogoverno que irá determinar se a coletividade territorial é ou não um Estado, afirmando que “o que distingue um Estado, soberano ou não, de uma coletividade inferior que não merece o nome de Estado, é que aquele tem órgãos próprios, que não se confundem com os de outro Estado, e esses órgãos exercem as três funções essenciais do Estado, a de legislar, de administrar e a da justiça”.[10] Ainda segundo cientista político, a limitação, pela Constituição Federal, do poder de auto-organização não retira o caráter estatal da coletividade territorial, sendo determinante, apenas, para a não qualificação desse poder como soberano.[11]
Portanto, para a caracterização do regime federativo, seria exigida, segundo a teoria federalista tradicional, a conjugação desses dois princípios, quais sejam, o concurso de vontades dos Estados-membros na formação da vontade federal (lei da participação) e a faculdade de auto-organização e de autogoverno, respeitados os limites estabelecidos pela Constituição Federal (lei da autonomia).
No entanto, conforme adverte Paulo Bonavides[12], a descentralização cada vez mais marcante em determinados Estados unitários (v. g. Itália) e os progressivos movimentos centralizadores que vêm sendo observados nos Estados federais têm dado origem a profundas divergências, entre os cientistas políticos contemporâneos, quanto à diferenciação entre o Estado unitário descentralizado e o Estado federal de tendência centralizadora, o que, por sua vez, reflete na distinção entre a mera coletividade territorial e o ente federativo. Para o doutrinador, o melhor critério distintivo é o de grau de dependência dos órgãos descentralizados em relação ao poder central, que, conforme já foi ilustrado, dependerá da origem jurídica da distribuição das competências e dos poderes: um ato de delegação do órgão central (descentralização administrativa) ou um diploma constitucional (descentralização política).
Esclarecedoras são as lições de Charles Durand a respeito dessa diferenciação nos tempos atuais. Após desprezar a aplicação de alguns critérios distintivos outrora utilizados, como o de extensão das autonomias conferidas aos órgãos descentralizados (lei da autonomia), o de origem histórica das coletividades e, inclusive, o de participação dos Estados-membros na formação da vontade federal (lei da participação), o qual, segundo ele, era correto para o federalismo do século XIX, o publicista francês pontifica que “no Estado unitário descentralizado a lei ordinária basta para fixar e modificar o regime jurídico das coletividades internas”, ao passo que “no Estado federal, cabe esse papel não à lei ordinária, mas a uma constituição rígida, a qual, posto que não seja intangível, é todavia muito mais difícil de modificar que a lei ordinária”.[13]
Portanto, seguindo a idéia propugnada por Charles Durand, conclui-se que, diante das variações descentralizadoras e centralizadoras que vêm sendo observadas, respectivamente, no Estado unitário e no Estado federal, o critério que se afigura mais seguro e menos controverso para distinguir essas duas formas de estado é a base jurídica e o grau de estabilidade do regime jurídico das coletividades internas, que dependerá do diploma normativo capaz de alterá-lo: a lei ordinária ou a constituição rígida. Nesse sentido, esse regime afigura-se menos firme no Estado unitário e mais rígido nos Estados federais.
Conforme foi dito anteriormente, a distinção entre Estado unitário e Estado federal reflete diretamente na diferenciação entre uma mera coletividade territorial e um ente federativo. Assim, seguindo a linha de raciocínio já esboçada, pode-se concluir que a qualificação de uma coletividade territorial como ente federativo ocorre quando a ela são conferidos poderes políticos através de um diploma constitucional, capaz de revestir-lhes de autonomia política, ainda que limitada. Por sua vez, continuará sendo uma mera coletividade territorial, se os poderes a ela conferidos, independentemente da sua amplitude, advierem de delegação do poder central.
Traçados os contornos gerais da Teoria da Federação, sobretudo no que concerne à diferenciação entre uma mera coletividade territorial e um ente federativo, restam fornecidos os subsídios necessários para a boa compreensão e a adoção de um posicionamento mais seguro acerca da divergência existente em relação à posição dos municípios na federação brasileira, sobre a qual existem duas vertentes doutrinárias, que serão doravante delineadas.
2 POSIÇÃO DO MUNICÍPIO NA FEDERAÇÃO BRASILEIRA
Com base na teoria tradicional do Federalismo, considerável parte da doutrina tem defendido veementemente a idéia de que os municípios brasileiros, embora integrem a Federação, não são entidades federadas. Os principais argumentos apresentados por essa corrente doutrinária estão ligados ao não preenchimento, por parte dos municípios, dos requisitos tradicionalmente exigidos para a caracterização do regime federativo de Estado.
Nesse sentido, José Nilo de Castro defende que a Federação “não é de Municípios e sim de Estados, cuja caracterização se perfaz com o exercitamento de suas leis fundamentais, a saber, a da autonomia e a da participação”.[14] Assim, segundo o doutrinador, a teoria geral do federalismo não reconhece os municípios como entidades federadas, pois eles não contribuem para a formação da vontade federal, já que não têm representação assegurada no Congresso Nacional e não podem propor emendas à Constituição Federal (art. 60, CF); e, embora sejam relativamente autônomos, não são dotados de plena capacidade de autogoverno, uma vez que não possuem um Poder Judiciário, nem, em regra, um Tribunal de Contas[15].
Embora deva se reconhecer que tais argumentos, fundados na teoria tradicional do federalismo, são bastante respeitáveis, não se pode olvidar de considerar que o modelo federal de Estado não se apresenta de maneira uniforme em todos os países que o adotam. Inclusive, vêm se observando, contemporaneamente, o distanciamento dos atuais regimes federais do modelo concebido pela doutrina tradicional com base nos Estados que inauguraram o regime federativo, sobretudo nos Estados Unidos. Em virtude disso, cada vez mais, se torna inviável a formulação de um conceito definitivo, universal e inalterável de Federação, ou seja, um regime com critérios rígidos cuja inobservância implicaria peremptoriamente na sua descaracterização.
Destarte, seguindo a linha de raciocínio esboçada pelo publicista Charles Durand, reitere-se que os critérios de extensão das autonomias conferidas aos órgãos descentralizados (lei da autonomia) e de participação dos Estados-membros na formação da vontade federal (lei de participação), embora sejam aplicáveis ao Federalismo do século XIX, não se mostram mais eficazes na aferição da caracterização ou não do modelo federalista nos dias atuais.
Por sua vez, José Afonso da Silva, embora admita que a Constituição Federal de 1988 consagrou a tese de que os municípios são entidades federativas de terceiro grau, sustenta que:
Essa é uma tese equivocada, que parte de premissas que não podem levar à conclusão pretendida. Não é porque uma entidade territorial tenha autonomia político-constitucional que necessariamente integre o conceito de entidade federativa. Nem o Município é essencial ao conceito de federação brasileira. Não existe federação de Municípios. Existe federação de Estados. Estes é que são essenciais ao conceito de qualquer federação.[16]
De acordo com o constitucionalista, ao reconhecer o caráter federativo dos municípios, estaríamos admitindo que a Constituição estaria se resguardando contra uma eventual secessão municipal. No entanto, a sanção indicada pela Carta Magna para o caso não é a intervenção federal, e sim a estadual, o que, segundo o autor, evidencia que os municípios continuam a ser divisões político-administrativas dos seus respectivos Estados-membros, não da União. E, para endossar esse argumento, ele aponta que a criação, incorporação, fusão e desmembramento de municípios dependem de lei estadual (art. 18, §4º, CF). Afirma o doutrinador, ainda, que, se os municípios forem considerados divisões políticas do território da União, os Estados, cujos territórios são repartidos em municípios, ficariam sem território próprio. Ademais, ele ressalta que “existem onze ocorrências das expressões ‘unidade federada’ e ‘unidade da Federação’ (no singular e no plural) referindo-se apenas aos Estados e Distrito Federal, nunca envolvendo os Municípios”.[17]
Embora não concordemos com a conclusão, a que chega o doutrinador, de que os municípios não devem ser considerados entes federativos, há que se reconhecer que existe uma certa lógica nos argumentos por ele esboçados. De fato, os municípios constituem divisões político-administrativas dos seus respectivos Estados-membros. Isso se deve ao fato que de o Brasil adota um regime federalista complexo, no qual há uma superposição de entidades federativas, ou seja, uma União composta por Estados-membros, que, por sua vez, são formados de municípios.
Todavia, isso não implica em dizer que os municípios são meras subdivisões administrativas dos seus respectivos Estados-membros, pois, a despeito da possibilidade de intervenção estadual nos municípios e da sujeição das leis municipais às normas gerais federais e estaduais (competência legislativa concorrente), as municipalidades são constitucionalmente dotadas de autonomia, inexistindo, assim, vinculação hierárquica entre tais entes federativos. Inclusive, esse mesmo raciocínio aplica-se aos Estados-membros em relação à União.
Por seu turno, também não se pode inferir que o reconhecimento do caráter de ente federativo aos municípios deixaria os Estados-membros sem territórios próprios, pelo mesmo motivo que a existência de Estados-membros não deixa a União sem território. O que há, na verdade, é a coexistência de esferas governamentais sobre uma mesma base territorial.
Ademais, qualquer argumento contrário ao reconhecimento da integração dos municípios na Federação brasileira sucumbe diante da expressa previsão da Constituição Federal de 1988 no sentido de considerar os municípios como componentes da estrutura federativa. Ela o faz em dois momentos:
Art. 1º – A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos.
Art. 18 – A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.
A inclusão dos municípios na Federação brasileira veio a acolher a reivindicação de municipalistas clássicos, como Hely Lopes Meirelles, que já sustentava a sua autonomia e a sua essencialidade na organização político-administrativa brasileira desde a Constituição de 1946: “a Constituição da República de 1988, corrigindo falha dos anteriores, integrou o Município na Federação como ‘entidade de terceiro grau’”.[18] Segundo o doutrinador, a Constituição de 1988 reconheceu-lhe expressamente a natureza de entidade política de terceiro grau, já não se podendo mais dizer que ele tem poderes meramente administrativos e atribuições delegadas. Destarte, “o município, como ‘pessoa administrativa’, integra a tríade constitucional ‘União-Estado-Município’”.[19]
Corroborando esse entendimento, Celso Ribeiro Bastos preleciona que “o Município é contemplado como peça estrutural do regime federativo brasileiro pelo Texto Constitucional vigente”[20]; Nelson Nery Costa aduz que “o Município, em razão da Constituição Federal, promulgada em 05.10.1988, sofreu profunda transformação, elevando-se num novo patamar como entidade pública. (...) O primeiro e mais significativo aspecto foi colocá-lo formalmente como integrante da Federação Brasileira”[21]; e Alexandre de Moraes afirma que “a Constituição Federal consagrou o Município como entidade federativa indispensável ao nosso sistema federativo, integrando-o na organização político-administrativa e garantindo-lhe plena autonomia”.[22]
Como uma conseqüência necessária da inclusão do município na Federação, a Constituição Federal assegurou-lhe autonomia em relação aos demais entes federativos. A propósito, Paulo Bonavides ressalta que “não conhecemos uma única forma de união federativa contemporânea onde o princípio da autonomia municipal tenha alcançado grau de caracterização política e jurídica tão alto e expressivo quanto aquele que consta da definição constitucional do novo modelo implantado no País com a Carta de 1998”.[23]
A posição ocupada pelos municípios no sistema federativo brasileiro é, de fato, singular em relação à ostentada pelos municípios das outras Federações existentes no mundo. As municipalidades brasileiras são colocadas, pela Constituição Federal, em condições de igualdade com os Estados-membros, de forma que a autonomia municipal assemelha-se bastante com a dos Estados-membros, tendo apenas uma amplitude menor que a destes, já que, por exemplo, os municípios não possuem um Poder Judiciário nem representação assegurada nas Assembléias Legislativas.
Essas limitações, entretanto, não descaracterizam a sua natureza de entidade federativa, pois a autonomia municipal é assegurada diretamente pela Constituição Federal, constituindo, deste modo, um direito público subjetivo da municipalidade, já que o seu exercício não depende dos Estados-membros. É justamente em virtude do fato de ser constitucionalmente assegurada que a autonomia municipal erige os municípios à categoria de entidades federativas.
Superada a divergência doutrinária acerca da posição ocupada pelos municípios no regime federativo brasileiro, passemos à análise do elemento que, por ser constitucionalmente garantido, confere-lhes a natureza de entidades federativas, qual seja, a autonomia municipal. Sobre ela, serão analisados o conceito, o conteúdo e a classificação doutrinária.
3 AUTONOMIA MUNICIPAL
Foi apontado anteriormente que uma das diferenças entre a União e as demais entidades federativas é o fato de que aquela é dotada de soberania, ao passo que as últimas possuem apenas autonomia. Antes de encetarmos um estudo acerca da autonomia municipal, afigura-se oportuna uma breve distinção entre soberania e autonomia, formas de poder que, não raramente, são confundidas pelos operadores do Direito.
Nelson Nery Costa aponta que a soberania pode ser decomposta em dois aspectos: o interno e o externo. Segundo o autor, “no primeiro, predomina a idéia de que o Estado impera sobre qualquer outra instituição no domínio do seu território, estando indivíduos e sociedades formadas por estes submetidas ao poder central”, ao passo que “externamente, nas relações internacionais os Estados estão numa posição de igualdade e, não, de dependência”.[24]
Nas Federações, os entes federativos participam da formação da soberania nacional, mas não dispõem desse poder, que é exclusivo da União. Assim, no plano interno, a União encontra-se numa posição de absoluta supremacia e, no plano externo, ela está em posição de igualdade em relação aos outros países. Essa supremacia interna é percebida principalmente pela forma de distribuição das matérias de competência legislativa, bem como pela instituição de um tribunal supremo, ao qual é incumbida a tarefa de fazer prevalecer a Constituição Federal sobre as demais ordenações.
Entretanto, se, por um lado, a União aparece como único sujeito de direito na ordem internacional; no âmbito interno, existem entidades dotadas de autonomia, poder que, embora seja limitado em relação à soberania, confere um considerável grau de independência. O termo autonomia é de origem grega, significando a capacidade de se governar por leis próprias (nomos). Hely Lopes Meirelles conceitua autonomia como uma “prerrogativa política outorgada pela Constituição a entidades estatais internas (Estados-membros, Distrito Federal e Municípios)”.[25]
Assim, enquanto a soberania interna é um poder ilimitado, a autonomia é uma prerrogativa concedida e limitada pela Constituição Federal. Se a autonomia não tivesse limites, ela confundir-se-ia com a soberania. Os Estados-membros e os municípios gozam de autonomia, ou seja, atuam livremente no campo a eles destinado pela Constituição Federal.
A autonomia municipal é bastante semelhante a dos Estados-membros, tendo apenas uma amplitude menor que a destes. No entanto, conforme adverte Nelson Nery Costa “ainda que mais restrita, condicionada pelo ‘peculiar interesse’, não se pode negar a ‘autonomia’ dos Municípios e de sua integração ao sistema federativo”.[26]
De fato, nos regimes constitucionais anteriores, a autonomia do município advinha de uma delegação do seu respectivo Estado-membro. Todavia, a atual Constituição já assegura diretamente essa autonomia, que, deste modo, constitui um direito público subjetivo da municipalidade, cujo exercício não mais depende dos Estados-membros. É justamente em virtude do fato de ser constitucionalmente assegurada que a autonomia municipal erige os municípios à categoria de entidades federativas.
Diante da ausência de um método infalível e da diversidade de pontos de vista sociológicos, políticos e jurídicos, a delimitação do conteúdo e a sistematização da autonomia municipal é objeto de significativas divergências na doutrina. Contudo, a despeito da discussão existente acerca do assunto, pode-se dizer, a partir da análise do texto constitucional e da doutrina pertinente, que a autonomia dos municípios brasileiros é composta pelos seguintes elementos: a) elaboração da Lei Orgânica Municipal; b) eleição direta do Prefeito, Vice-prefeito e vereadores; c) edição de leis municipais; d) administração própria, prestação de serviços públicos de interesse local e ordenação do território municipal; e) decretação de tributos e aplicação das rendas municipais.
No que concerne à sistematização dessas faculdades conferidas aos municípios, o constitucionalista Alexandre de Moraes as classifica em uma tríplice capacidade:
Dessa forma, o município ‘auto-organiza-se’ através de sua Lei Orgânica Municipal e, posteriormente, por meio da edição de leis municipais; ‘autogoverna-se mediante a eleição direta de seu prefeito, Vice-prefeito e vereadores, sem qualquer ingerência dos Governos Federal e Estadual; e, finalmente, ‘auto-administra-se’, no exercício de suas competências administrativas, tributárias e legislativas, diretamente conferidas pela Constituição Federal.[27]
José Afonso da Silva, por sua vez, isola a competência legislativa municipal em uma classe autônoma, resultando numa distribuição das faculdades municipais em quatro categorias:
a) capacidade de auto-organização, mediante a elaboração de lei orgânica própria;
b) capacidade de autogoverno, pela eletividade do Prefeito e dos Vereadores às respectivas Câmaras Municipais;
c) capacidade normativa própria, ou capacidade de autolegislação, mediante a competência de elaboração de leis municipais sobre áreas que são reservadas à sua competência exclusiva e suplementar;
d) capacidade de auto-administração (administração própria, para manter e prestar os serviços de interesse local).[28]
Do confronto entre as classificações desses doutrinadores, observa-se que a principal diferença entre elas é a alocação da competência legislativa municipal. Enquanto Alexandre de Moraes a coloca em duas capacidades (auto-organização e auto-administração), José Afonso da Silva a destaca em uma categoria autônoma. Embora essa dissonância constitua uma discussão meramente acadêmica, não gerando conseqüências práticas em virtude da adoção de uma ou outra forma de sistematização, será utilizada, neste trabalho, a classificação de José Afonso da Silva, pois, ao deslocar a competência legislativa municipal para uma categoria autônoma, ela torna mais fácil a visualização e o estudo desse elemento.
Essas capacidades, por seu turno, dão origem às espécies de autonomia dos municípios. Quanto a essas espécies de autonomia, constata-se, também, uma multiplicidade de classificações doutrinárias. José Afonso da Silva[29] e Nelson Nery Costa[30] adotam uma divisão categorias: política, normativa, administrativa e financeira. No entanto, por entendermos que a autonomia normativa está inserida na política, adotaremos a classificação esboçada por Hely Lopes Meirelles[31], que divide a autonomia em política, administrativa e financeira. Passemos, então, ao estudo dessa tríplice autonomia.
A autonomia política é composta pelas capacidades de auto-organização (elaboração da Lei Orgânica Municipal), de autogoverno (eleição direta do Prefeito, Vice-prefeito e vereadores) e de normatização própria (exercício da competência legislativa municipal).
A capacidade de auto-organização vem insculpida no artigo 29 da Constituição Federal:
Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado.
Nos regimes constitucionais anteriores, as leis orgânicas eram, em regra, elaboradas pelos Estados-membros, que regiam a organização e a administração dos municípios que os compunham. A exceção a esse quadro era o Rio Grande do Sul, que delegou esse encargo aos seus municípios; e o Paraná e a Bahia, que adotaram a mesma posição em relação às suas capitais. Todavia, como se pode observar do dispositivo constitucional supracitado, a Constituição de 1988 conferiu a todos os municípios o poder de promulgar a sua própria lei orgânica, respeitos, apenas, os princípios estabelecidos na Constituição da República e do respectivo Estado-membro.
Dentre os preceitos constitucionalmente exigidos na elaboração da Lei Orgânica Municipal, figuram regras atinentes à eleição, à posse, ao subsídio, ao julgamento e à perda do mandato do prefeito (art. 29, incisos I, II, III, V, X e XIV, CF); ao número, à remuneração, às garantias, às proibições e às incompatibilidades dos vereadores (art. 29, incisos IV, VI, VII, VIII, IX, CF); à organização das funções da Câmara Municipal (art. 29, inciso XI, CF); à cooperação das associações representativas no planejamento municipal (art. 29, inciso XII, CF); e aos projetos de lei municipal de iniciativa popular (art. 29, inciso XIV, CF).
José Afonso da Silva adverte que houve um excessivo alargamento do conteúdo da Lei Orgânica Municipal, sustentando que “certa ‘incisomania’, na redação da Constituição, levou o constituinte a incluir como inciso do art. 29 matérias que não podem constituir conteúdo da Lei Orgânica municipal, porque não se trata de assunto de sua competência”.[32] De fato, o constitucionalista está com a razão, pois determinadas matérias previstas no artigo 29 da Constituição Federal (art. 29, incisos I, II, IV e VIII, CF) são de competência do constituinte federal, cabendo à Lei Orgânica apenas reproduzi-las.
Por sua vez, a capacidade de autogoverno, que tem base jurídica no artigo 29, incisos I e II, da Constituição Federal, refere-se à eleição direta dos representantes dos Poderes Executivo (prefeito e vice-prefeito) e Legislativo (vereadores) municipais. Frise-se, conforme bem anota Nelson Nery Costa, que, “ao contrário da União e dos Estados, os Municípios não têm Poder Judiciário próprio, de modo que o preenchimento dos cargos políticos se dá exclusividade pelo voto popular”.[33]
Por fim, a capacidade de normatização própria compreende a competência para legislar sobre assuntos de interesse local (art. 30, inciso I, CF), para suplementar a legislação federal e a estadual no que couber (art. 30, inciso II, CF); bem como a competência comum, juntamente com a União, os Estados e o Distrito Federal, para dispor sobre as atividades elencadas no artigo 23 da Constituição Federal.
Em relação à expressão “interesse local”, Hely Lopes Meirelles pontifica que “’interesse local’ não é interesse exclusivo do município; (...) O que define e caracteriza o ‘interesse local’, inscrito como dogma constitucional, é a ‘predominância’ do interesse do Município sobre o do Estado ou da União”.[34] Ademais, a legislação sobre os assuntos de interesse local, esclarece o doutrinador, “abrange não só as leis votadas pela Câmara e promulgadas pelo prefeito como, também, os regulamentos expedidos pelo Executivo, em matéria de sua alçada”.[35]
Via de regra, não há submissão da legislação municipal à do Estado-membro ou da União, pois, diante da repartição constitucional de competências legislativas, o que há é um respeito recíproco entre os entes federativos. Contudo, no exercício da competência legislativa comum, o município deve observar as diretrizes gerais estabelecidas pelas legislações federal e estadual.
A autonomia administrativa, por seu turno, está relacionada à capacidade de auto-administração, abrangendo a administração própria, a prestação de serviços públicos de interesse local e a ordenação do território municipal. A administração própria, de acordo com Hely Lopes Meirelles, “é a gestão dos negócios locais pelos representantes do povo do Município, sem interferência dos poderes da União ou do Estado-membro”.[36] O interesse local, conforme já foi dito, não é o exclusivo do município, mas aquele em há uma predominância do interesse deste sobre o do Estado ou da União.
A propósito, Nelson Nery Costa discorre o seguinte:
A organização dos serviços públicos locais está direcionada para aqueles que dizem respeito à vida urbana, em especial naquilo que é relativo ao transporte, instrução primária, saúde, água, saneamento, pronto-socorro, sinalização das vias públicas, logradouros de uso comum do povo, assistência social e muitos outros que atendam às necessidades comuns e ao bem-estar dos munícipes.[37]
A Constituição Federal elenca, em seu artigo 23, os serviços públicos cuja prestação é da competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
(...) omissis
II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;
III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;
IV - impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural;
V - proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência;
VI - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas;
VII - preservar as florestas, a fauna e a flora;
VIII - fomentar a produção agropecuária e organizar o abastecimento alimentar;
IX - promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico;
X - combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos;
XI - registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios;
XII - estabelecer e implantar política de educação para a segurança do trânsito.
Além disso, a Carta Magna, em seu artigo 30, atribui aos municípios a competência privativa para a criação, organização e supressão de distritos (inc. IV); a organização e a prestação, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, dos serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo (inc. V); a manutenção de programas de educação infantil e de ensino fundamental (inc. VI); a prestação de serviços de atendimento à saúde da população (inc. VII); a promoção do adequado ordenamento territorial (inc. VIII); a promoção da proteção do patrimônio histórico-cultural local (inc. IX).
Por derradeiro, a autonomia financeira envolve o poder de decretação e arrecadação dos tributos de competência municipal e de aplicação das rendas municipais, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei (art. 30, inciso III, CF). Ela afigura-se um pressuposto necessário à efetivação da própria capacidade de auto-administração, cuja previsão mostrar-se-ia inócua se não fossem assegurados os recursos financeiros necessários à realização das atividades que nela estão inseridas, independentemente das outras entidades federadas.
O municipalista Hely Lopes Meirelles esclarece que “no regime vigente, os tributos da competência do Município estão discriminados na Constituição Federal (art. 156), cabendo-lhe, ainda, a participação em outros arrecadados pela União (arts. 153, §5º, II, 158, I e II, e 159, I, “b”) e pelo Estado-membro (arts. 158, III e IV, e 159, §3º)”.[38] Assim, pode-se concluir que a competência tributária exclusiva municipal, embora essencial, não é a única fonte de renda dos municípios, aos quais é garantido, também, o direito público subjetivo ao repasse de uma fração de determinados tributos arrecadados pelo seu respectivo Estado-membro e pela União.
Frise-se, por sua vez, que a competência municipal para a instituição de impostos é meramente regulamentar, ou seja, não implica na faculdade de criar impostos que não estejam constitucionalmente previstos, mas, sim, na fixação do quantum a ser arrecadado e da forma de arrecadação. Além da competência para instituir impostos, foi atribuída ao município a possibilidade de instituir taxas, contribuições de melhoria e contribuições sociais. Por ser uma matéria afeita mais ao ramo do Direito Tributário, não serão tecidos maiores detalhes acerca dessas espécies de tributo.
Cumpre ressaltar, ainda, que a autonomia financeira também assegura aos municípios a faculdade de aplicar as rendas municipais de acordo com a oportunidade e a conveniência da Administração Pública municipal, não dependendo do seu respectivo Estado-membro ou da União, apenas de previsão na lei orçamentária municipal. A única restrição nesse ponto é a obrigação de o município aplicar, anualmente, pelo menos 20% (vinte por cento) da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino (art. 212, CF).
CONCLUSÃO
À luz do exposto, pode-se inferir que o critério mais seguro e menos controverso para distinguir uma coletividade territorial de um ente federativo é a base jurídica e o grau de estabilidade do regime jurídico da coletividade em análise. Destarte, a qualificação de uma coletividade territorial como ente federativo ocorre quando a ela são conferidos poderes políticos através de um diploma constitucional, capaz de revestir-lhes de autonomia política. Por sua vez, continuará sendo uma mera coletividade territorial, se os poderes a ela conferidos, independentemente da sua amplitude, advierem de delegação do poder central.
No que concerne aos municípios brasileiros, ficou constatado que a Constituição Federal de 1988 previu-os como integrantes da Federação, o que faz com que o regime federalista adotado pelo Brasil seja caracterizado pela superposição de entidades federativas, ou seja, uma União composta por Estados-membros, que, por sua vez, são formados de municípios.
Diante disso, pode-se dizer que a posição ocupada pelos municípios no sistema federativo brasileiro é, de fato, singular em relação à ostentada pelos municípios das outras Federações existentes no mundo, pois eles foram erigidos à categoria de entidades federativas. As municipalidades brasileiras são colocadas, pela Constituição Federal, em condições de igualdade com os Estados-membros, de forma que a autonomia municipal assemelha-se bastante com a dos Estados-membros, tendo apenas uma amplitude menor que a destes, já que, por exemplo, os municípios não possuem um Poder Judiciário nem representação assegurada nas Assembléias Legislativas.
Contudo, apontou-se que essas limitações não descaracterizam a sua natureza de entidade federativa, uma vez que as municipalidades são constitucionalmente dotadas de autonomia, que, deste modo, constitui um direito público subjetivo do município, cujo exercício não está sujeito à intervenção dos Estados-membros. É justamente em virtude do fato de ser constitucionalmente assegurada que a autonomia municipal erige os municípios à categoria de entidades federativas. Inclusive, esse mesmo raciocínio aplica-se aos Estados-membros em relação à União.
Observou-se, também, a partir da análise do texto constitucional e da doutrina pertinente, que a autonomia dos municípios brasileiros é composta pelos seguintes elementos: a) elaboração da Lei Orgânica Municipal; b) eleição direta do Prefeito, Vice-prefeito e vereadores; c) edição de leis municipais; d) administração própria, prestação de serviços públicos de interesse local e ordenação do território municipal; e) decretação de tributos e aplicação das rendas municipais.
Tais faculdades dos municípios foram agrupadas em quatro categorias de capacidades: de auto-organização (elaboração da Lei Orgânica Municipal), de autogoverno (eleição direta do Prefeito, Vice-prefeito e vereadores), de normatização própria (exercício da competência legislativa municipal) e de auto-administração (administração própria, a prestação de serviços públicos de interesse local e a ordenação do território municipal).
A reunião das capacidades de auto-organização, de autogoverno e de normatização própria dá forma a autonomia política dos municípios. A autonomia administrativa, por seu turno, está relacionada à capacidade de auto-administração. Por fim, a autonomia financeira, que envolve o poder de decretação e arrecadação dos tributos de competência municipal e de aplicação das rendas municipais, afigura-se um pressuposto necessário à efetivação da própria capacidade de auto-administração, cuja previsão mostrar-se-ia inócua se não fossem assegurados os recursos financeiros necessários à realização das atividades que nela estão inseridas.
De todo o exposto, ressalte-se que os critérios aplicáveis ao Federalismo do século XIX para a diferenciação entre uma mera coletividade territorial e um ente federativo não se mostram mais eficazes perante os modelos federalistas dos dias atuais. Destarte, seguindo a linha de raciocínio esboçada pelo publicista francês Charles Durand, pode-se concluir que a qualificação de uma coletividade territorial como ente federativo ocorre quando a ela é conferida autonomia através de um diploma constitucional. No caso dos municípios brasileiros, a eles foi garantida, pela Constituição Federal de 1988, a tríplice autonomia política, administrativa e financeira, o que, à luz do que foi defendido, é suficiente para erigi-los à categoria de entidade federativa.
REFERÊNCIAS
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SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
[1] JELLINEK, Georg. Allgemeine Staatslehre. 3. ed. Berlin, 1914, p. 769.
[2] Segundo Paulo Bonavides, há um Estado simples ou unitário quando “a ordem jurídica, a ordem política e a ordem administrativa se acham aí conjugadas em perfeita unidade orgânica, referidas a um só povo, um só território, um só titular do poder público de império.” (BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 149)
[3] Essa limitação dá-se por meio de critérios espaciais ou materiais.
[4] BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 106.
[5] BASTOS, Celso Ribeiro. Ibidem, p. 107.
[6] BONAVIDES, Paulo. Ibidem, p. 155-156.
[7] AZAMBUJA, Darcy. Introdução à Ciência Política. 13. ed. São Paulo: Globo, 2003, p. 131.
[8] BONAVIDES, Paulo. Ibidem, p. 181.
[9] BONAVIDES, Paulo. Ibidem, p. 181.
[10] AZAMBUJA, Darcy. Ibidem, p. 148.
[11] Frise-se, nesse ponto, que, seguindo a posição majoritária entre os cientistas políticos, a soberania não é uma característica essencial do Estado.
[12] BONAVIDES, Paulo. Ibidem, p. 156-157.
[13] DURAND, Charles. La Téchnique du Fédéralisme. Le Fédéralisme. Paris: Presses Universitaires de France, p. 180-181.
[14] CASTRO, José Nilo de. Direito Municipal Positivo. 5. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 57-58.
[15] Exceções: São Paulo e Rio de Janeiro.
[16] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 474-475.
[17] SILVA, José Afonso da. Ibidem, p. 640.
[18] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 42.
[19] MEIRELLES, Hely Lopes. Ibidem, p. 122.
[20] BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 276.
[21] COSTA, Nelson Nery. Curso de Direito Municipal Brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 52.
[22] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 276.
[23] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 314.
[24] COSTA, Nelson Nery. Ibidem, p. 97.
[25] MEIRELLES, Hely Lopes. Ibidem, p. 85.
[26] COSTA, Nelson Nery. Ibidem, p. 99.
[27] MORAES, Alexandre de. Ibidem, p. 277.
[28] SILVA, José Afonso da. Ibidem, p. 641.
[29] SILVA, José Afonso da. Ibidem, p. 641.
[30] COSTA, Nelson Nery. Ibidem, p. 100.
[31] MEIRELLES, Hely Lopes. Ibidem, p. 88.
[32] SILVA, José Afonso da. Ibidem, p. 643.
[33] COSTA, Nelson Nery. Ibidem, p. 110.
[34] MEIRELLES, Hely Lopes. Ibidem, p. 104.
[35] MEIRELLES, Hely Lopes. Ibidem, p. 103.
[36] MEIRELLES, Hely Lopes. Ibidem, p. 103.
[37] COSTA, Nelson Nery. Ibidem, p. 103.
[38] MEIRELLES, Hely Lopes. Ibidem, p. 106.
Formado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba, foi contemplado com a abreviação da duração do curso de graduação, por ter sido considerado aluno com extraordinário aproveitamento nos estudos (artigo 47, § 2º, da Lei 9.394/96), e com o título de "Láurea Acadêmica Destaque da Graduação", em reconhecimento ao seu excelente desempenho acadêmico (Coeficiente de Rendimento Escolar: 9,43). Especialista em Prática Judicante pela Universidade Estadual da Paraíba, em convênio com o Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba - Escola Superior da Magistratura "Desembargador Almir Carneiro da Fonseca". Foi Assistente Jurídico, cargo privativo de bacharel em direito do quadro de pessoal do Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba, junto ao Gabinete da Exma. Desa. Maria de Fátima Moraes Bezerra Cavalcanti, no período de 18/06/2010 a 20/01/2011. É, desde 02/02/2011, Assessor da Segunda Câmara Especializada Cível do Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Luiz Gonzaga Pereira de Melo. O Município como Ente Federativo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 jan 2013, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/33624/o-municipio-como-ente-federativo. Acesso em: 22 nov 2024.
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