1. INTRODUÇÃO.
O presente trabalho tem por escopo analisar a possibilidade de o Estado responder civilmente, com fulcro no art. 37, parágrafo 6º, da CF/88, por dano a terceiros de boa-fé decorrente do exercício do seu poder de autotutela na anulação de ato eivado de ilegalidade.
2. O PODER DE AUTOTUTELA DA ADMINISTRAÇÃO E A RESPONSABILIDADE DO ESTADO.
É cediço que a Administração Pública age pautada por uma série de prerrogativas indispensáveis para se alcançar o interesse público primário, estando sua atuação limitada, contudo, por uma gama de princípios, dentre os quais se destacam os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, nos termos do art. 37, caput, da CF/88, bem como da segurança jurídica e da boa-fé.
Nesse viés, é importante destacar que o princípio da legalidade tem uma conotação peculiar no Direito Administrativo. Com efeito, enquanto no direito privado, o particular só é obrigado a fazer aquilo que a lei determina, segundo disposição do art. 5º, II, da CF/88, no Direito Administrativo, o administrador apenas pode fazer aquilo que a lei permite, não sendo lícito atuar diante de sua omissão. Assim, “(...) se a administração pública está sujeita à lei, cabe-lhe, evidentemente, o controle da legalidade.”, o que se convencionou chamar de poder de autotutela.
Em consonância com esse entendimento, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula de n.º 473 segundo a qual “a administração pode anular os seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revoga-los, por motivos de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.”
Em regra, como os atos ilegais não originam direitos, eles são extirpados do ordenamento jurídico retroativamente, ou seja, com efeitos ex tunc. Partindo dessa premissa, verifica-se a importância do enunciado de súmula citado anteriormente ao colocar a salvo os direitos adquiridos, considerando que o Estado Democrático de Direito não é pautado apenas no princípio da legalidade, mas também nos princípio da segurança jurídica, cujo viés subjetivo é o princípio da confiança, e no princípio da boa-fé.
Esclarece Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo que
isso não significa que o ato nulo gere direito adquirido. Não há direito adquirido à produção de efeitos de um ato nulo. Depois de anulado, o ato não mais originará efeitos, descabendo cogitar de invocação de “direitos adquiridos” visando a obter efeitos que o ato não gerou antes de sua anulação. O que ocorre é que eventuais efeitos já produzidos perante terceiros de boa-fé, antes da data de anulação do ato, não serão desfeitos. Mas serão mantidos esses efeitos, e só eles, não o ato em si.
A aplicação do princípio da confiança e da boa-fé na seara do direito administrativo implica em uma série de consequências, tais quais, a possibilidade de manutenção de atos administrativos inválidos, a manutenção de atos praticados por funcionário de fato, a regulação dos efeitos já produzidos pelo ato ilegal, a fixação de prazo para anulação, nos termos do art. 54 da Lei 9.784/99, entre outros.
No contexto da responsabilidade civil do Estado em decorrência de dano causado pela anulação de ato eivado de ilegalidade, é importante ponderar o princípio da legalidade e o princípio da confiança e da boa-fé, considerando que o ato praticado anteriormente pelo Estado deu origem a uma relação jurídica entre o mesmo e o particular, criando a expectativa neste último de que a situação perduraria, dado que os atos praticados pela administração presumem-se legítimos.
Na defesa da possibilidade dessa responsabilização do Estado, sabe-se que nos termos do art. 37, parágrafo 6º, da CF/88, essa responsabilidade é objetiva e decorre do risco administrativo, não sendo necessária a comprovação de culpa ou dolo do agente. Nesse contexto, ainda que o dano causado ao particular seja proveniente de ato lícito, haverá o dever de indenizar, uma vez preenchidos os demais requisitos da responsabilidade civil extracontratual. Nesse sentido, Fernanda Marinella destaca que
na responsabilidade objetiva, a obrigação de indenizar incumbe ao Estado em razão de um procedimento lícito ou ilícito que produziu lesão na esfera juridicamente protegida de outrem. Caso o Administrador pratique condutas ilícitas, a indenização deve acontecer, e o fundamento é o princípio da legalidade. (...) De outro lado, o princípio da isonomia é grande fundamento da responsabilidade civil na teoria objetiva com condutas lícitas.
Logo, ainda que ao anular um ato administrativo o Estado esteja atuando pautado na legalidade, com sói a ocorrer quando exerce o seu poder de autotutela, haverá o dever de indenizar os particulares de boa-fé que sofreram prejuízos. Ademais, se a invalidade do ato decorreu de conduta ímproba anteriormente praticada pelo gestor público, com mais razão se vislumbra o dever de indenização do Estado, que deve responder pelos atos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros.
Nesse contexto, um caso emblemático chegou ao Supremo Tribunal Federal. Discutia-se a viabilidade de indenização do servidor concursado que em razão da anulação do concurso público que lhe propiciou a investidura no cargo, foi exonerado. Trata-se do Recurso Extraordinário 460.881, de relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence, julgado em 18 de abril de 2006, pela Primeira Turma, cuja ementa transcreve-se:
Ato administrativo: ilegalidade: anulação e ressarcimento de danos morais. Súmula 473.CF, art. 37, § 6º. A Administração Pública pode anular seus próprios atos, quando inquinados de ilegalidade (Súmula 473); mas, se a atividade do agente público acarretou danos patrimoniais ou morais a outrem - salvo culpa exclusiva dele, eles deverão ser ressarcidos, de acordo com o disposto no art. 37, § 6º, da Constituição Federal.
Com efeito, outra não poderia ter sido a conclusão do Pretório Excelso, considerando que o indivíduo, ao se submeter a um concurso público, é obrigado a se dedicar aos estudos, investir na compra de livros e cursos, e, mesmo após a aprovação, é levado, muitas vezes, a mudar de cidade, alugar imóvel, etc, fugindo ao princípio da razoabilidade a desconsideração dessas circunstâncias pela Administração ao anular o respectivo certame. Demais disso, frise-se que esse fato pode causar sério prejuízo à personalidade do indivíduo, que, por exemplo, teve de abandonar um antigo emprego e agora se encontra sem fonte alternativa de renda, dando ensejo à responsabilização não apenas pelo dano material sofrido, mas também pelo dano moral configurado.
3. CONCLUSÃO.
Em resumo, com arrimo na doutrina e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, verificou-se que as pessoas jurídicas de direito público têm de responder pelos danos que causem a sujeitos de boa-fé em decorrência da anulação de atos sobre os quais se assentavam relações jurídicas, sobretudo, em razão dos princípios da segurança jurídica e da boa-fé, bem como da responsabilidade objetiva do Estado, consagrada no art. 37, parágrafo 6º, da CF/88, que impõe o dever de indenizar, ainda que o ato praticado seja considerado lícito.
REFERÊNCIAS:
MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 5 ed. Niterói: Impetus, 2011.
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