1. INTRODUÇÃO
A Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006, evidencia-se em um panorama de fortes pressões nacionais e internacionais para mitigação da alarmante situação de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Como resposta imediata, conta com diversos dispositivos que buscam restringir direitos ao ofensor e garantir providências salutares à ofendida, destacando-se, entre soluções da primeira espécie, o disposto no artigo 42 do referido estatuto, que acrescentou hipótese de prisão preventiva no Código de Processo Penal (inciso IV, do artigo 313), permitindo-se falar em referida custódia, independente da pena aplicada (detenção ou reclusão), “para garantir a execução das medidas protetivas de urgência”.
O presente artigo visa apresentar uma visão geral da referida Lei, explicando o contexto e as razões de denominar-se Lei “Maria da Penha”, definindo-se, ademais, as principais restrições a serem suportadas pelo suposto ofensor em delitos praticados sob a incidência do referido diploma legal.
Acrescente-se que a escassa produção jurídico-literária do tema, até mesmo ante a especialidade legislativa, o constitui em interessante desafio, com a necessidade de análises mais aguçadas da questão proposta, o que reforça o caráter de relevância da pesquisa. Por tal razão, o referencial teórico utilizado circunscreve-se aos principais expoentes da doutrina penal, processual penal e constitucional.
2. DESENVOLVIMENTO
2.1 Breves Considerações acerca da denominada Lei Maria da Penha.
A Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006, conhecida como “Lei Maria da Penha”, denominação doravante utilizada neste artigo, surge em um contexto de graves opressões femininas e escancaradas pressões internacionais.
A alcunha “Maria da Penha” deve-se ao espírito combativo da farmacêutica cearense, Maria da Penha Maia Fernandes, a qual, após submeter-se a situações de extrema violência perpetradas pelo seu então marido M.A.H.V., resultando em situação irreversível de paraplegia, e ante a morosidade da justiça brasileira, que permitiu o desenrolar da instrução probatória por 18 anos, transcorrendo de 28 de setembro de 1984, data do oferecimento da denúncia perante a 1ª Vara Criminal de Fortaleza a setembro de 2002, oportunidade em que o autor do fato foi preso, procurou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA), sediada em Washington, Estados Unidos, para as providências cabíveis.
Após inúmeras indagações não respondidas formuladas pelo referido órgão internacional ao Estado Brasileiro, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos decidiu tornar público o caso relatado, ensejando, como morosa resposta estatal brasileira, a edição da lei sob análise, a qual se apresenta como instrumento para “coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do §8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher”.
Dos dispositivos mencionados, merece realce a diretriz fixada em 1988, pela Constituição da República, no parágrafo 8º, do artigo 226:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
A omissão estatal com as situações de opressão a que estavam submetidas às mulheres no âmbito doméstico ou familiar só se agrava após a leitura de referida determinação da nossa Carta Magna.
Ao ostentar a família como base da sociedade, a Lei Maior determinou especial atenção, a qual não poderia ser confundida por conduta intervencionista, ou como autorização para invadir aspectos intrínsecos desta organização social. Não se olvida do dever de ponderar quais os limites desta atuação estatal, a qual não poderá se imiscuir em assuntos relacionados à intimidade e privacidade, porém, tal ponderação não poderia servir de justificativa para a completa inércia, nos moldes em que habitualmente ocorria.
Os mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares eram, até então, visivelmente insuficientes, exigindo respostas enérgicas, não apenas de cunho repressivo, mas, sobretudo, preventivo e assistencial.
Surge, então, a lei em comento, a qual concede tratamento penal e processual diferenciado a crimes previstos em nossa vasta e exagerada legislação, agravando a situação dos acusados de violência física, moral ou patrimonial à mulher no âmbito da unidade doméstica.
Dentre tais agravamentos, encontram-se a necessidade de retratação da representação em juízo (artigo 16), a proibição de aplicação de pena pecuniária (artigo 17), a inaplicabilidade da Lei nº 9.099/95, com a conseqüente inutilização de seus institutos despenalizadores (artigo 41) e a possibilidade de prisão preventiva, em qualquer situação, para garantia de execução de medida protetiva de urgência (artigo 42).
Observe-se que as restrições são elencadas com base unicamente na qualidade do sujeito passivo dos delitos, gerando entendimentos pela flagrante inconstitucionalidade.
Neste sentido, Valter Foleto Santin (2006, on line):
Como se vê, a pretexto de proteger a mulher, numa pseudopostura ‘politicamente correta’, a nova legislação é visivelmente discriminatória no tratamento de homem e mulher, ao prever sanções a uma das partes do gênero humano, o homem, pessoa do sexo masculino, e proteção especial à outra componente humana, a mulher, pessoa do sexo feminino, sem reciprocidade, transformando o homem num cidadão de segunda categoria em relação ao sistema de proteção contra a violência doméstica, ao proteger especialmente a mulher, numa aparente formação de casta feminina.
Alguns exemplos emblemáticos de ausência da razoabilidade trazidos à baila com a edição da lei seriam, como exemplo, a propositura da transação penal ao acusado de lesionar um idoso enfermo, e a negativa desta àquele que ameaça a esposa; a lavratura de termo circunstanciado àquele que lesiona o irmão, com oportunidade de composição civil de danos, mas a prisão em flagrante e instauração de inquérito policial àquele que injuria a irmã.
A despeito de tais críticas, não se pode deixar de atentar para os pontos positivos do referido diploma legal, que permite discussões significativas acerca da caótica submissão do gênero feminino, conclamando a sociedade civil para atitudes repressivas e preventivas contra a violência doméstica e familiar em face da mulher, medidas que se afiguravam de urgente aplicação, merecendo a devida consideração.
Neste ponto, incumbe definir, em consonância com o texto legal, a violência doméstica e familiar, entendida, nos termos do artigo 5º da lei em comento, como qualquer ação ou omissão baseada no gênero que cause à mulher lesão, sofrimento físico ou psicológico, dano moral ou patrimonial, realizada no âmbito de relação doméstica, familiar ou de intimidade, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, com ou sem coabitação.
O conceito de agressão baseada no gênero, de cunho essencialmente subjetivo, dá margem à ampla interpretação, exigindo um mínimo de submissão e vinculação do feminino ao poderio do masculino, sob pena de obstaculizar a incidência da lei.
Já na peça inicial acusatória, seja denúncia ou queixa-crime, exige-se a descrição pormenorizada da situação fática que ensejou o evento criminoso, com todas as circunstâncias que o envolveram e com a indicação do autor do fato.
A imputação de crime de violência doméstica e familiar contra a mulher, além disso, exige a descrição de conduta penalmente tipificável, nos termos do mencionado artigo 5º da Lei.
Deve-se ter em mente que o objeto da Lei Maria da Penha é a proteção da mulher numa perspectiva de gênero e em condições de hipossuficiência ou inferioridade física e econômica. A ausência dessas singularidades impõe a inaplicabilidade desse Diploma Legal, como tem decidido o Superior Tribunal de Justiça[1].
Por essa razão, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que: “delito de lesões corporais envolvendo agressões mútuas não configura hipótese de incidência da Lei nº 11.340/06, que tem como objeto a mulher numa perspectiva de gênero e em condições de hipossuficiência ou vulnerabilidade”. Se “não fica evidenciado que as agressões sofridas tenham como motivação a opressão à mulher, que é o fundamento de aplicação da Lei Maria da Penha”, sendo o motivo que deu origem às agressões mútuas, por exemplo, os ciúmes da namorada, “não há qualquer motivação de gênero ou situação de vulnerabilidade que caracterize hipótese de incidência da Lei nº 11.340/06” ··.
Ademais, havendo mera relação de namoro entre as partes, nos termos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, “apesar de ser desnecessária à configuração da relação íntima de afeto a coabitação entre agente e vítima, verifica-se que a intenção do legislador, ao editar a Lei Maria da Penha, foi de dar proteção à mulher que tenha sofrido agressão decorrente de relacionamento amoroso, e não de ligações transitórias, passageiras”[2].
Em outro precedente, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que “tratando-se de relação entre ex-namorados – vítima e agressor são ex-namorados –, tal não tem enquadramento no inciso III do art. 5º da Lei nº 11.340, de 2006. É que o relacionamento, no caso, ficou apenas na fase de namoro, simples namoro, que, sabe-se, é fugaz muitas das vezes. Em casos dessa ordem, a melhor das interpretações é a estrita, de modo que a curiosidade despertada pela lei nova não a conduza a ser dissecada a ponto de vir a sucumbir ou a esvair-se. Não foi para isso que se fez a Lei nº 11.340!”[3]
A ausência de preenchimento, pela denúncia, da descrição pormenorizada legalmente exigida implica descumprimento aos requisitos do artigo 41 do Código de Processo Penal e, consequentemente, a rejeição da denúncia, seja pela sua inépcia, seja pelo reconhecimento da incompetência absoluta (em razão da matéria) do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher para processar e julgar a demanda face à impossibilidade de subsunção, prima facie, do suposto crime ao disposto na Lei Maria da Penha.
2.2 Conseqüências nocivas ao suposto agressor.
Outro ponto que merece maior consideração, refere-se aos dispositivos trazidos pela Lei em comento que agravaram a situação do ofensor, visando apresentar uma resposta aos crescentes e alarmantes índices de violência registrados na nossa sociedade.
Dentre os mesmos, avulta a exigência de audiência preliminar, para a realização de retratação à representação, consoante emerge do disposto pelo art. 16 do Diploma Legislativo em testilha, in verbis:
Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.
O legislador não foi tecnicamente correto quanto ao emprego do termo “renúncia à representação”, haja vista que o certo seria “retratação à representação”, pois o inquérito somente pode prosseguir após a representação.
O fato é que, de acordo com o referido artigo, para que haja a retratação é necessário que seja marcada audiência para que a vítima manifeste sua vontade perante o juiz, o promotor e seu advogado ou defensor público.
Ocorre que caso nenhuma audiência seja marcada com a vítima, seja em relação ao inquérito policial, seja concernente aos autos do pedido de medidas protetivas, a vítima não poderá manifestar sua vontade em prosseguir ou não com o processo criminal em desfavor do acusado.
Do art. 16 da Lei Maria da Penha, surge uma questão: seria obrigatória a realização de audiência especialmente designada para saber se haverá ou não retratação?
Dessa indagação outra resposta não poderia surgir senão a obrigatoriedade da audiência. Ressalte-se que não precisa necessariamente ser uma audiência especialmente designada para tal finalidade, mas apenas qualquer contato prévio e direto da vítima com o juiz, o promotor e seu advogado ou defensor público, onde a mesma possa manifestar sua vontade sem riscos de estar viciada.
Com efeito, sem a realização de audiência antes do recebimento da denúncia, as vítimas não manifestam a vontade de prosseguir ou não com o feito, porque não pode haver retratação na Delegacia, ou junto ao Ministério Público, ou advogado, ou Defensoria Pública, em virtude do novel art. 16 da Lei Maria da Penha.
A experiência prática demonstra que as vítimas não costumam procurar espontaneamente o Poder Judiciário para requerer a retratação à representação, seja por desinformação, seja por temor de “mexer com a justiça”. Apenas em audiências preliminares aprazadas pelo juiz é que a vítima demonstra interesse em prosseguir ou não com o procedimento em desfavor do acusado.
O fato de haver retratação por parte das vítimas somente na audiência designada também foi constatado pelo juiz de direito de Minas Gerais Leopoldo Mameluque (2007, on line):
Na prática, o juiz da Vara Criminal ao receber a denúncia tem designado audiência para oitiva da vítima, momento em que lhe faculta o exercício da renúncia à representação ofertada. Ocorre que o art. 25 do Código de Processo Penal dispõe que a representação será irretratável depois de oferecida a denúncia. Surge aqui um problema com o qual os tribunais terão que se deparar, pois somente em Belo Horizonte, MG, onde aproximadamente 4.000 denúncias já foram oferecidas, antes de receber a denúncia, é designada audiência para a oitiva da vítima e em 85% desses casos há a referida desistência da representação.
Por outro lado, a manifestação de prosseguir ou não com o processo apresenta-se com um direito da vítima, cabendo ao Poder Judiciário instrumentalizá-la. A representação e sua retratação consistem em uma poder em favor da mulher para que a mesma consiga se reconciliar, agilizar a alimentos, separação judicial, divisão de bens entre outras vantagens.
Vejamos agora a posição do Professor Pedro Rui da Fontoura Porto (2006) sobre o tema:
Ademais, o direito de decidir sobre representar ou não pressupõe a possibilidade de conciliação civil, o que, seguramente, atende a interesses da vítima, nem sempre sediados na exclusiva punição criminal do seu agressor, mas, fundamentalmente atrelados ao interesse reparatório dos danos sofridos, inclusive aqueles de caráter moral que, segundo afirma a doutrina da responsabilidade civil extramaterial, têm evidente caráter punitivo e pode importar em severa punição ao agressor.
Neste sentido, ressalta a Desembargadora Maria Berenice Dias (2007), em seu livro “A Lei Maria da Penha na Justiça”, no capítulo 16, versa sobre a intenção de muitas vítimas, quando estas procuram uma delegacia para registrar a ocorrência, vão buscar apenas o restabelecimento da paz em seu lar, não tendo a intenção de se separarem ou verem seu cônjuge ou companheiro preso. Apenas verem cessadas as agressões.
A Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul alerta sobre a ineficácia da lei, se, toda vez que a mulher solicitar ajuda à polícia para retomar a paz em sua casa, o companheiro for processado e/ou preso, esta medida poderá ter efeito contrário, ou seja, faz com que a vítima se abstenha de procurar a delegacia temendo a prisão do companheiro, que na maioria das vezes viveram vários anos juntos.
Insta ressaltar que o objetivo da retratação, que deve ocorrer em audiência marcada, é permitir a restauração dos laços familiares, não podendo o Estado-Juiz se imiscuir na intimidade familiar contra a vontade da própria vítima.
O Tribunal de Justiça de São Paulo já se posicionou acerca da nulidade em caso de não ser marcada audiência para averiguar se haverá ou não representação, nos termos do art. 16 da Lei Maria da Penha:
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO. 6ª CÂMARA DO 3º GRUPO DA SECÇÃO CRIMINAL. HABEAS CORPUS Nº 01158674.3/6-0000-000. RELATOR RICARDO TUCUNDUVA
A redação do artigo 16 da Lei nº 11.340/06, realmente deixa a desejar. Ali, o legislador confunde ´renúncia´ com ´retratação´, mas, não obstante, deixa mais do que claro -claríssimo- que a audiência apontada vítima, antes do recebimento da denúncia, é conditio sine qua non para o desencadeamento da ação penal contra o indigitado agressor, para que não se perca tempo com pessoas que não tem amor próprio, ou não sabem bem o que querem, amoldando-se ao célebre e triste vaticínio de Nelson Rodrigues.
No caso, o próprio Juiz do processo admite que tal audiência não foi realizada, de sorte que o feito está nulo, a partir do despacho de recebimento da denúncia, inclusive, até porque o momento de agredida retratar-se da representação que oferecera é, precisamente, durante a audiência referida pelo art. 16 da Lei Maria da Penha. Nem antes, nem depois.(grifos nossos).
A respeito do tema o promotor de justiça de São Paulo Luis Paulo Sirvinskas (2006) leciona:
O Promotor de Justiça deverá ofertar denúncia antes da audiência especialmente designada para eventual desistência? Tal medida não será possível caso não tenha sido colhida à representação. Caso a ofendida, depois de se conciliar com o agressor, resolva desistir da representação, qual seria o destino da eventual denúncia ofertada? Seria simplesmente rejeitada ou esquecida? E as medidas protetivas de urgência seriam revogadas? Quais seriam os efeitos dessa revogação? Há prazos preestabelecidos para a duração das medidas?
A Promotoria de Justiça, no nosso entender, não deverá ofertar denúncia antes da audiência designada, sabendo-se que a ofendida poderia desistir da representação. Somente após a realização da audiência de ratificação da representação é que a Promotoria de Justiça poderia ofertar denúncia. Esta não pode servir de barganha entre a ofendida e o agressor. E, uma vez recebida à denúncia, a vítima não mais poderá se retratar da representação (art. 102 do CPP e art. 25 do CPP).
No mesmo sentido o promotor de justiça do Paraná Leonardo da Silva Vilhena e seu estagiário Juliano Aparecido de Souza argumentam (2007):
Em outras palavras, sem que se saiba a vontade real da vítima, estar-se-ia prosseguindo com a ação penal. E todos que já atuaram nos Juizados Especiais Criminais, notadamente nesta área de violência doméstica, sabem que na maioria das vezes a vítima não comparecesse em Juízo para “ratificar” sua representação. A conseqüência seria um grande número de ações penais condicionadas à representação em que a própria vítima (que não tem a obrigação de dizer a verdade durante a instrução criminal e, normalmente é a principal prova dos autos) não estaria nem um pouco interessada em sua procedência.
A solução, neste caso, seria, ao que nos parece, adotar-se o mesmo entendimento predominante nos Juizados Especiais Criminais, que entende como obrigatória a ratificação do exercício do direito de representação perante o Juiz, sob pena de, em caso de inércia (pelo não comparecimento ou pelo não exercício imediato) de prosseguimento do prazo de decadência (que teve seu como seu termo inicial a data do conhecimento da autoria do fato pela vítima ou seu representante legal).
O artigo não é claro a respeito da necessidade de referida audiência em todos os casos, porém, em uma interpretação sistemática, tudo leva a crer neste sentido, já que a vítima não teria qualquer outra oportunidade de se manifestar, a não ser em sede de instrução processual, caso fosse seguido o rito processual do CPP.
Quanto ao momento processual, os referidos autores confirmam a necessidade de tal audiência acontecer antes do recebimento da denúncia, vejamos:
Importante assinalar, também, que com relação à audiência preliminar de que trata o art. 16 da lei em estudo, esta será realizada antes do recebimento da denúncia, mas isto não quer dizer que a denúncia já deva ter sido oferecida pelo Ministério Público.
Não há empecilhos para a designação de tal audiência nos moldes da Lei 9.099/95, ou seja, como audiência preliminar. Não enxergamos qualquer motivo justificável para que seja oportunizada a “renúncia” do direito de representação em momento posterior ao oferecimento da denúncia, já que, como se disse, traria um trabalho injustificado ao Ministério Público e contribuir-se-ia apenas para atrasar a solução da lide penal.
O prejuízo em razão da não designação de audiência com a vítima é patente, tanto para esta como para o acusado, que continuará respondendo ao processo, sendo que se fosse realizada a audiência preliminar com a vítima a mesma poderia manifestar se tem interesse ou não que o paciente seja punido.
Em semelhante sentido, encontram-se precedentes de escol, no seio da jurisprudência do Colendo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, consoante demonstra o venerando precedente assim alinhavado:
Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. 1ª Turma Criminal. Recurso em Sentido Estrito nº 20070110971848RSE. Relator Sandra de Santis. Julgado em 28/08/2008. DJ 15/10/2008 p. 102.
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - CONTRAVENÇÃO PENAL - LEI 11.340/06 - NECESSIDADE DE AUDIÊNCIA PRELIMINAR - AUSÊNCIA DE CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE - INEXIGÊNCIA DE FORMALISMO NO EXERCÍCIO DO DIREITO DE REPRESENTAÇÃO - EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE - INVIABILIDADE.
I - A representação prescinde de formalidade e pode ser verificada pela demonstração da parte interessada, que procurou a autoridade policial para que seja apurada e processada a infração penal.
II - O art. 16 da Lei Maria da Penha exige, nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida, a designação de audiência com a finalidade precípua de admitir a retratação. Ofertada a representação, não pode haver o arquivamento do feito sem a referida audiência.
III - Recurso provido”. (grifos nossos).
Ultrapassada a discussão do artigo 16 da Lei em comento, outro dispositivo restritivo aos direitos do suposto agressor que importa indicar é o 17, verbis:
Art. 17. É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa.
Não se olvida que a pena é um mal necessário, devendo ser adequada para cada situação, visando proteger a contento o bem jurídico lesionado, de forma a não atingir direitos fundamentais do ofensor e da vítima.
A utilização de penalidades alternativas de forma indiscriminada, em especial as mencionadas pelo artigo em comento (penas pecuniárias, em especial, cestas básicas e pagamento isolado de multa), resultam, eventualmente, em sensações de impunidade por parte dos envolvidos no fato delituoso, seja vítima ou ofensor. Não se olvida da desproporcionalidade de determinadas situações em que as vítimas, após o vexame e constrangimentos a que foram submetidas, presenciarem os agressores serem “penalizados” com pagamentos de cestas básicas, sanção que, no mais das vezes, não lhe provocam a mínima reflexão ou remorso.
Na realidade, referido dispositivo não precisaria estar presente caso os intérpretes tivessem a cautela, em especial no momento da aplicação, de aferir quais as penalidades adequadas e suficientes ao caso em apuração.
Importa considerar que a referida determinação legal não preconiza a utilização, em todos os casos, das penas privativas de liberdade, como única hipótese de correção e conscientização do ofensor. Deve-se ter em mente, sempre, os males que o sistema carcerário acarreta, não estando afastada a aplicação de sanções restritivas de direitos (prestação de serviços à comunidade, limitação de fim de semana ou interdição temporária de direitos).
Por fim, incumbe mencionar acerca do que dispõe o dispositivo emanado do art. 41 da Lei em comento:
Art.41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995.
Este preceito tem o condão de inibir a aplicação dos institutos despenalizadores presentes na Lei º. 9.099/95, como, por exemplo, a transação penal, a composição civil dos danos, e a suspensão condicional do processo.
Afasta-se a possibilidade de desfecho ou suspensão prematura do procedimento sem a devida anuência da vítima e, em alguns casos, até mesmo contrários à manifestação de vontade desta.
Com base na literalidade, referida determinação acaba por afastar, igualmente, o disposto no parágrafo único, do artigo 69, da Lei dos Juizados Especiais Criminais, qual seja:
Art. 69. A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários.
Parágrafo único. Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança. Em caso de violência doméstica, o juiz poderá determinar, como medida de cautela, seu afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima.
Vislumbra-se, assim, a plena possibilidade de imposição de prisão em flagrante para supostos autores de fatos delituosos sob a abrangência da Lei Maria da Penha, ainda que de “menor potencial ofensivo”, ou seja, independente da pena futura a ser aplicada.
Por óbvio que deverão ser respeitados os ritos procedimentais, tais como a solicitação expressa do ofendido ou seu representante legal nos casos de ações penais públicas condicionada a representação e ações penais privadas, bem como um mínimo de fundamento, seja para evitar fuga, resguardar a vítima, ou mesmo para acautelar provas.
Ato sucessivo, deverá o delegado, com base nos dispositivos processuais penais, aferir a possibilidade de concessão de fiança, nos termos do artigo 322 do Código de Processo Penal (CPP).
Art. 322. A autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4(quatro) anos.
Na realidade, considerando que a grande maioria dos delitos submetidos ao Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher referem-se a lesões corporais leves (art. 129, §9º, do CP[4]) e ameaça (art. 147 do CP[5]), ambos punidos com pena de detenção, inferior a 4(quatro) anos, visualiza-se a possibilidade de prestação de fiança na generalidade dos casos.
Interessante anotar que somente indiciados de parca situação financeira permanecem reclusos, expondo a gritante diferença dispensada pela disciplina processual penal entre ricos e pobres.
Eis os aspectos os quais importava realçar.
3. CONCLUSÃO
Os crescentes índices de violência doméstica e familiar contra a mulher demandavam respostas enérgicas dos órgãos de Estado, pressionados por organismos internacionais e pela sensação de impunidade gerada pelo modo como a legislação pátria tratava o tema, a solução encontrada foi a edição da Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006, conhecida na sociedade como “Lei Maria da Penha”, em homenagem à cearense, símbolo da luta em prol dos direitos das mulheres violentadas.
A par das importantes inovações, e acesos debates jurídicos acerca da constitucionalidade ou mesmo estigmatização da mulher, promovidos pelo citado estatuto, salientam-se no presente artigo as conseqüências nocivas trazidas ao ofensor, que sofreu restrições ao seu direito à liberdade, em especial com o afastamento dos institutos despenalizadores da Lei nº. 9.099, de 26 de setembro de 1995, que possibilitou a imposição da prisão em flagrante, independente da pena cominada à infração cometida, e a inserção de uma nova hipótese de cabimento de custódia preventiva: para possibilitar a execução das medidas protetivas de urgência.
Nesse contexto, não se olvida da possibilidade de decretação de prisão preventiva na hipótese de cometimento de crime punido com detenção, independente da pena aplicada, no âmbito da violência doméstica. O que não se pode perder de vista é que, inobstante ao fato da Lei Maria da Penha ter criado novas possibilidades de incidência, não derrogou as disposições constantes no caderno processual penal, devendo ser seguidos com cautela o abrandamento proposto pelas medidas cautelares diversas à prisão, exigindo do intérprete razoabilidade e proporcionalidade na análise casuística.
Não obstante, percebe-se que o tema não encontra guarida tranqüila nos pretórios, merecendo, por tal razão, análises e debates mais profundos, visando estabelecer todas as garantias essenciais ao direito de liberdade dos cidadãos.
4. REFERÊNCIAS
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CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2004, v.1
CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica: lei maria da penha (Lei nº 11.340/2006), comentada artigo por artigo. 2. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
DIAS, Maria Berenice. A lei maria da penha na justiça. 1.ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
GRECO, Rogério. Curso de direito penal. 6.ed., Rio de Janeiro: Impetus, 2006.
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______. Decreto – Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Publicado na CLBR de 1940.
______. Decreto – Lei nº 3.688, de 03 de outubro de 1941. Lei das Contravenções Penais. Publicada na CLBR de 1941.
______. Decreto-Lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial [da] União, Rio de Janeiro, 13 out. 1941.
______. Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Diário Oficial [da] União, Brasília, 08 ago. 2006.
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[1] Superior Tribunal de Justiça. 3ª Seção. Conflito de Competência nº88.027/MG. Relator Ministro Og Fernandes. Julgado em 05/12/2008, DJe 18/12/2008.
[2] Superior Tribunal de Justiça. 3ª Seção. Conflito de Competência nº 94.438/MG. Relator Ministro Jorge Mussi. Julgado em 29/10/2008. DJe 13/03/2009.e Superior Tribunal de Justiça. 3ª Seção. Conflito de Competência nº 90.766/MG. Relator Jorge Mussi. Julgado em 29/10/2008. DJe 13/03/2009.
[3] Superior Tribunal de Justiça. 3ª Seção. Conflito de Competência nº 91.980/MG. Relator Nilson Naves. Julgado em 08/10/2008. DJe 05/02/2009.
[4] 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: (Redação dada pela Lei nº 11.340, de 2006)
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos. (Redação dada pela Lei nº 11.340, de 2006)
[5] Art. 147 - Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
: Defensora Pública do Distrito Federal, atuando no Juizado de Violência Doméstica em Sobradinho/DF.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LAVOR, Denise Brito Gaspar. Aspectos gerais da Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 mar 2013, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/34049/aspectos-gerais-da-lei-no-11-340-de-07-de-agosto-de-2006. Acesso em: 22 nov 2024.
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