1. Intróito
Sem adentrar no mérito da questão da Aldeia Maracanã, sem a pretensão de se estabelecer qual lado é o correto, o presente artigo busca esclarecer a questão das terras indígenas e sua previsão constitucional.
A preocupação do legislador constituinte, desde 1934, mostra claramente a problemática e a sensibilidade do tema. O (des)interesse da literatura jurídica acerca da questão ratifica a dificuldade que se tem sobre o trato da matéria. No entanto, há um esforço doutrinário, a partir da Constituição de 1988, para que o assunto seja melhor esclarecido, não somente a profissionais do Direito, como também à população em geral.
A própria existência das terras indígenas, desde os tempos remotos, vem sendo questionada pelos colonizadores deste vasto país, inclusive, como conta a própria história nacional, ao mencionar “Descobrimento do Brasil” por Pedro Álvares Cabral. Como cediço, as terras deste país já eram ocupadas por tribos indígenas espalhadas em pontos do território. A relação entre os aborígenes e suas terras é muito semelhante a do “cidadão” e seu domicílio.
O que se difere hoje do passado é, que, na época da colonização, não havia grandes pressões sobre a quantidade de terra a ser utilizada. Hoje, a própria demarcação das terras indígenas, ao mesmo tempo que visa a definir o espaço em que o aborígene tem o direito a conservar sua cultura, sem que haja intervenção do “homem branco”, acaba por “confiná-lo” naquele espaço, sem que se possa exercer a indigenidade fora desses limites territoriais.
Como a terra sempre foi um debate árduo na história brasileira (índios, quilombolas, MST ...), não nos cabe aqui exaurir o tema da terra, mas tratar do ponto indigenista à luz da Constituição de 1988, tendo em vista as recentes notícias sobre o conflito que envolve o Estado do Rio de Janeiro (seu líder político, Governador Sérgio Cabral) e os índios que se encontravam no extinto Museu do Índio, no bairro carioca do Maracanã.
2. Terras Indígenas e Constituição Democrática de 88
A CRFB/88 dedica vários tópicos acerca do tema. O principal deles encontra-se no Título VIII, “DA ORDEM SOCIAL”, Capítulo VIII, sob a denominação “DOS ÍNDIOS”.
O seu art.231 traz a seguinte redação:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
Ora, o que vem a ser “terras que tradicionalmente ocupam”? A própria Lei Maior traz a resposta:
a) são as terras utilizadas para suas atividades produtivas; imprescindíveis para a preservação dos recursos ambientais necessários ao bem-estar dos índios e necessárias à reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições (art.231, parágrafo 1º);
b) destinadas à posse permanente dos índios, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e lagos nelas existentes (art.231, parágrafo 2º).
Não se cogita a questão “temporal” no conceito. O fundamental do conceito é afirmar tais terras como essenciais ao modo indígena de viver. Entender tal conceito requer analisar, no caso concreto, o quão importante é aquele determinado território para a cultura de uma tribo. Não se pode afirmar que o legislador constituinte exige que “terras tradicionalmente ocupadas” sejam aquelas já pertencentes a etnia desde tempos remotos. Uma, porque seria “prova diabólica”. Como estabelecer ônus da prova para uma aldeia, representada por seu cacique, sobre a propriedade remota daquele determinado ponto do território? Duas, seria olvidar de toda a história de colonização e disputas de terras já ocorridas no país.
Mister ressaltar que não é todo e qualquer cidadão, num país miscigenado como o Brasil, que está apto a se declarar índio e requerer tal ou qual terra para que possa, no local, estabelecer uma aldeia para a “preservação” de sua cultura. Pensando assim, qualquer esbulho estaria autorizado e até mesmo bens públicos, que não podem ser usucapidos (arts.183, parágrafo 3º da CRFB/88 e 102, Código Civil), passariam a ser ocupados, em definitivo de forma “originária”.. No caso de bens públicos estaduais e municipais, haveria uma desapropriação às avessas, sem qualquer observância legal, transformando-se aquele bem em “bem da União”. Tal absurdo não pode ser alcançado.
No entanto, deve-se atentar com cuidado o conceito dessas terras. A importância das terras indígenas para as diferentes etnias é tao grande que a própria Lei Maior previu a “inamovibilidade indígena”. A remoção apenas poderá ocorrer em casos excepcionais, como catástrofe que ponha em risco aquela população ou em caso de epidemia. Cessados os riscos, deverá haver a imediata relocalização daqueles. Admite-se, também, sob a deliberação do Congresso Nacional, que os índios sejam removidos quando haja risco a soberania nacional.
Terras indígenas são terras federais, como brevemente abordado acima, pertencentes ao domínio exclusivo da União que, diante da previsão constitucional, sofreu restrição na sua propriedade, já que haverá usufruto exclusivo das riquezas do solo, rios e lagos pelos índios. E além: determinou a Lei Fundamental a inalienabilidade e indisponibilidade das terras indígenas, sendo imprescritíveis os direitos sobre as mesmas.
A própria Carta Magna determina a absoluta nulidade e extinção de qualquer ato jurídico que tenha por objeto a ocupação, domínio e posse das terras indígenas, sem qualquer direito a indenização, excetuadas benfeitorias realizadas de boa-fé (art.231, parágrafo 6º).
Lembrando que a Constituição não criou terras indígenas, limitou-se a reconhecer as já existentes. As demarcadas não necessitam da proteção constitucional, justamente pela demarcação já ocorrida (Lei nº 6.001/73 e Decreto nº 1775/96). As situações fáticas foram reconhecidas pelo legislador constituinte, como um direito originário, precedente e superior a qualquer outro que, eventualmente, possa ter ocorrido em terra indígena.
3. Conclusão
Longe de pacificar um tema difícil como esse, que requer, não apenas um debate doutrinário, mas também uma profunda análise do caso concreto para que se possa a aplicar a norma, cabe concluir que os índios têm um profundo contato com a natureza e uma ideia brilhante de preservação dela e “não há maior violência que se possa cometer contra um indígena do que afastá-lo de seu natural habitat”.
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