por Francisco Sannini Neto – Delegado de Polícia – Pós-Graduado com Especialização em Direito Público pela Escola Paulista de Direito – Professor de Direito Penal e Processo Penal da Unisal e
Eduardo Luiz Santos Cabette - Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia e Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na Unisal.
Introdução
Os doutrinadores do Direito e a mídia em geral, vêm discutindo com assiduidade o tema proposto na PEC n°37/2011. O referido projeto de emenda constitucional foi adjetivado pelos representantes do Ministério Público como a PEC da ilegalidade. Os Delegados de Polícia, por outro lado, defendem a legalidade e a observância dos valores constitucionais imbuídos no projeto.
Como já se pode perceber, o conteúdo da famigerada PEC diz respeito ao poder investigatório do Ministério Público, sendo que, se alterada a Constituição da República, será posta uma pá de cal nesse assunto, ficando as investigações criminais restritas às Polícias Judiciárias (Polícia Civil e Federal).
Vários argumentos podem ser utilizados para defender um ou outro ponto de vista[1]. Contudo, o objeto deste estudo é analisar apenas a teoria dos poderes implícitos, constantemente invocada para justificar o suposto poder investigatório do Ministério Público. Conforme será demonstrado, entendemos que a mencionada teoria não pode ser aplicada no caso em discussão, sendo o seu conteúdo absolutamente desvirtuado por entendimentos pouco comprometidos com a técnica jurídica. É preciso que nós não nos deixemos levar por posicionamentos passionais e ligados a uma determinada instituição, especialmente nesse momento, diante de tanta celeuma sobre o assunto.
Em tempo, vale consignar que as conclusões expostas nesse trabalho em hipótese alguma são influenciadas pela nossa atividade como Delegado de Polícia, sendo fruto apenas de estudos intensos sobre o tema. Vaidades e outras questões de somenos importância não podem influenciar na análise jurídica de casos tão relevantes como o aqui discutido. Independentemente do ponto de vista adotado neste artigo, o importante mesmo é que todas as instituições ligadas à persecução penal trabalhem em sintonia, de maneira integrada e sem rivalidades, afinal, todos lutamos pelo mesmo objetivo, qual seja, a Justiça.
Investigação Ministerial e a Teoria dos Poderes Implícitos
A teoria dos poderes implícitos tem sua origem na Suprema Corte dos EUA, no ano de 1819, no precedente Mc CulloCh vs. Maryland. De acordo com a teoria, a Constituição, ao conceder uma função a determinado órgão ou instituição, também lhe confere, implicitamente, os meios necessários para a consecução desta atividade.
Nesse contexto, os defensores da investigação Ministerial argumentam que, ainda que a Constituição da República não tenha conferido expressamente ao Parquet a possibilidade de investigar infrações penais, tal prerrogativa estaria inserida de maneira implícita no dispositivo que confere ao Ministério Público a titularidade da ação penal (art.129, inc.I). Em outras palavras, se a opinio delicti fica a cargo do Promotor Público, deve-se outorgar a ele os meios necessários para melhor exercer a sua função, o que, segundo os defensores da tese, incluiria a possibilidade de realizar as investigações.
A teoria em estudo também poderia ser explicada pelo famoso adágio “quem pode o mais, pode o menos”. Assim, se o Ministério Público pode o mais (propor a ação penal), também pode o menos (realizar investigações preliminares).
Com todo respeito aos posicionamentos nesse sentido, mas não podemos concordar com tais conclusões, senão vejamos.
Primeiramente, devemos destacar que a teoria dos poderes implícitos não pode ser aplicada quando tratarmos de matéria em que sejam atribuídos poderes explícitos. Ora, o artigo 144, §1°, inciso IV e §4°, da Constituição da República, confere às Polícias Judiciárias (Federal e Civil) atribuição para realizar as investigações criminais. Isso significa que o legislador constitucional reservou às Policias Civil e Federal um campo de atividade exclusiva que não pode ser desrespeitado por normas infraconstitucionais ou, pior, por atos administrativos (v.g. Resoluções do Ministério Público).
Desse modo, podemos afirmar que a explicitude do texto constitucional exclui em absoluto a implicitude, não sobrando espaço para qualquer interpretação em sentido contrário.
Outra questão que merece ser colocada diz respeito à suposta relação de meio e fim existente entre a investigação criminal e a ação penal. De acordo com José Afonso da Silva, que proferiu parecer recente sobre o tema[2], o meio para o exercício da ação penal consiste no aparato institucional com habilitação, competência adequada e condições materiais para fazê-lo.
Por outro lado, o objetivo da investigação criminal não é servir o titular da ação penal, mas a própria Justiça. A finalidade da investigação preliminar é a perfeita elucidação do crime e de todas as suas circunstâncias, fundamentando, assim, a necessidade ou não do processo. Tanto isso é verdade que o Inquérito Policial em muitas ocasiões reúne elementos que são favoráveis ao próprio investigado.
É preciso que fique claro que a instrução preliminar (investigação) não está vinculada à acusação e nem à defesa, mas, sim, à Justiça, buscando a verdade dos fatos. Mais do que isso, uma investigação oficial e imparcial se caracteriza como uma garantia ao investigado, que não será submetido ao processo de maneira desnecessária. Nesse sentido, considerando que a investigação criminal subsidia tanto a acusação, como o investigado, como estabelecer uma relação de meio e fim com a ação penal?
Na verdade, uma coisa não tem nada a ver com a outra, tratando-se de institutos distintos, ainda que complementares, tanto que a própria Constituição conferiu tais atribuições a órgãos diferentes. A investigação é um procedimento de instrução preliminar que, dentro de um sistema escalonado de formação da culpabilidade, [3] justifica ou não o início do processo. A ação penal, por outro lado, embora subsidiada pela investigação preliminar, nada mais é do que uma pretensão acusatória que objetiva provocar o Estado-Juiz a exercer o seu direito de punir por meio do devido processo legal.
Desmistificado esse primeiro ponto de vista, passemos agora a análise do adágio “quem pode o mais, pode o menos”. Conforme salientado acima, para os defensores do poder investigatório do Ministério Público, se ele pode o mais (propor a ação penal), também pode o menos (investigar).
Em contraponto a este entendimento, nos socorremos mais uma vez das lições de José Afonso da Silva. De acordo com autor, este argumento não pode se sustentar no campo do direito público, especialmente no Direito Constitucional. Isto, pois, questiona o autor, o que é mais e o que é menos no campo de distribuição de competências constitucionais? A Constituição da República outorga competência e atribuição aos diversos poderes, instituições e órgãos, sendo que nenhum é mais ou menos. São o que são devido a determinações constitucionais, que, como tais, devem ser acatadas. Eventualmente, podem existir regras subentendidas às regras enumeradas (e não poderes implícitos), o que não ocorre no caso em questão, uma vez que as regras de investigação na esfera penal são expressas e conferem atribuições diretamente às Polícias Judiciárias.[4]
Para aqueles que não se contentarem com esse argumento, nós trazemos a seguinte questão: como ficaria essa premissa (do quem pode o mais, pode o menos) nos crimes de ação penal de iniciativa privada? Persistindo esse entendimento, nós podemos concluir que, nessas situações, o poder investigatório também deveria ser estendido à vítima, que é titular da ação penal de iniciativa privada. Ora, se a vítima pode o mais (oferecer queixa-crime), ela também pode o menos (investigar).
Assim como na ação penal pública, também haveria uma relação de meio e fim entre a investigação criminal e a vítima nos delitos que se procedem mediante queixa.
Vejam, caros leitores, a que ponto nós chegaríamos em prevalecendo esse entendimento. Seria surreal imaginar a Defensoria Pública (como representante da vítima desprovida de recursos) realizando atos de investigação nos crimes de ação penal de iniciativa privada! Uma vítima e/ou seu advogado constituído expedindo notificações de comparecimento à sua casa ou escritório sob pena de desobediência e condução coercitiva com relação a testemunhas!
Na mesma linha de raciocínio, ainda poderíamos destacar um outro aspecto ligado à lavratura do auto de prisão em flagrante. Como é cediço, esta modalidade prisional se caracteriza como uma das formas de instauração de Inquérito Policial. Em outras palavras, a prisão em flagrante dá início à investigação criminal. Nesse sentido, se o Ministério Púbico pode realizar a investigação – já que pode propor ação penal, que é o mais – ele também poderia lavrar o auto de prisão em flagrante, que nada mais é do que uma forma de instauração do procedimento investigativo.
Contudo, ninguém - ao menos por enquanto - defende a possibilidade do Promotor de Justiça lavrar autos de prisão em flagrante. Isto, pois, assim como no exemplo acima, nós estamos no campo de divisão de atribuições, sendo que as únicas autoridades com atribuição legal para a lavratura do auto de prisão em flagrante são os Juízes (excepcionalmente) [5] e os Delegados de Polícia (regra). Imagine-se então o absurdo que seria a lavratura de um Auto de Prisão em Flagrante pela própria vítima por seu advogado constituído ou um defensor público em casos de ação penal privada! Não se está falando em prender (ato físico) alguém em flagrante (flagrante facultativo passível de realizar-se por qualquer do povo nos termos do artigo 301, CPP), mas de lavrar e presidir um “Auto de Prisão em Flagrante”!
Outro aspecto relevante. Se levarmos a ferro e fogo a expansão descontrolada dos chamados “Poderes Implícitos”, então por que será que o STF declarou inconstitucional a Lei do Crime Organizado quando permitia aos Juízes exercer investigação (Adin 1570-2, de 12.02.2004)? Ora, se o Juiz pode o mais, que é presidir o processo e julgar (muito mais que o MP ou a Polícia), por que então não poderia investigar? A investigação não seria um meio para a busca de sua convicção de julgador? Note-se o absurdo a que se chega quando se pretende distorcer e agigantar indevidamente uma teoria como essa.
Também tem passado ao largo dessa discussão um fato importante. Dispõe o Código de Processo Penal que se uma pessoa houver funcionado num dado caso como Autoridade Policial, não poderá atuar como Juiz no mesmo caso (artigo 252, I, CPP). Em seguida o artigo 258 do mesmo Codex estende aos membros do Ministério Público os mesmos impedimentos dos juízes, o que leva à conclusão de que se uma pessoa atuou como Delegado de Polícia num caso, não pode ser o Promotor do mesmo caso. Tudo isso, seja com relação ao Juiz ou ao Promotor, está ligado ao Princípio da Imparcialidade e ao Princípio Acusatório pleno com divisão bem determinada de funções. Então, por que um promotor poderia investigar e acusar ao mesmo tempo, se quando ele investiga como Delegado não o pode de acordo com a lei?
Nem mesmo a Súmula 234 STJ pode salvar a absurdidade da situação, pois ela somente afirma não haver impedimento a que o Promotor que “participou” da investigação atue no processo. “Participar” é bem diferente de atuar diretamente e especialmente de presidir. “Participar” o promotor sempre participa, até nos casos de ação penal privada ao menos como “custos legis”; em todos os casos na atuação em “controle externo” (grifo em “externo”) da Polícia Judiciária; exarando e requerendo cotas; eventualmente acompanhando alguma diligência (como, por exemplo, se prevê na Lei de Interceptação Telefônica – Lei 9296/96). Agora, se o Promotor atua como se Delegado fosse, por óbvio que fica impedido de atuar de acordo com a simples inteligência dos artigos 252, I c/c 258, CPP. Não há dúvida que o Código de Processo Penal de 1941 já vislumbrava uma indesejável relação incestuosa entre investigador e acusador potencial. Ora, mas esse Código é considerado por quase todos, senão por todos, uma legislação forjada na mais obscura fórmula autoritária, tendo como modelo o Código Rocco italiano. Será possível que a chamada “Constituição Cidadã” é que pretende misturar acusador potencial com investigador e desequilibrar, tornar parcial, tudo quando se pretende preservar de um Sistema Acusatório no bojo de um Código de Processo Penal considerado autoritário? Não seria isso um retrocesso bárbaro? Não haveria aí algo de distorcido no raciocínio?
Frente ao exposto, defendemos o entendimento de que a teoria dos poderes implícitos não pode ser invocada para subsidiar o suposto poder investigatório do Ministério Público. Estamos certos de que essa discussão ainda vai longe, sendo que o apelo ao público leigo pode até influenciar no resultado final desse debate. Entretanto, temos a convicção de que, numa análise técnico-jurídica, a investigação realizada pelo Ministério Público não encontra qualquer amparo legal ou constitucional. Aos olhos do povo a retórica pode fazer sentido, mas ela não se sustenta aos olhos do jurista, conforme demonstrado neste estudo.
Independentemente de qualquer coisa, continuaremos defendendo um trabalho integrado entre os órgãos responsáveis pela persecução penal, pois só assim a sociedade será beneficiada e a Justiça será realizada.
REFERÊNCIAS
JURISTAS dizem que MP não pode fazer investigação. Disponível em : http://www.conjur.com.br/2013-mar-30/juristas-afirmam-investigacao-criminal-exclusividade-policia?utm_source=twitterfeed&utm_medium=twitter, Acesso em 05/04/2012.
SANNINI NETO, Francisco. Polícia Judiciária e a Devida Investigação Criminal Constitucional. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/22533/policia-judiciaria-e-a-devida-investigacao-criminal-constitucional, acesso em 06.04.2013.
[1] Nosso posicionamento sobre o assunto está bem detalhado em outro trabalho denominado Polícia Judiciária e a Devida Investigação Criminal Constitucional. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/22533/policia-judiciaria-e-a-devida-investigacao-criminal-constitucional, acesso em 06.04.2013.
[2] JURISTAS dizem que MP não pode fazer investigação. Disponível em : http://www.conjur.com.br/2013-mar-30/juristas-afirmam-investigacao-criminal-exclusividade-policia?utm_source=twitterfeed&utm_medium=twitter . Acesso em 05/04/2012.
[3] Aqui a expressão “culpabilidade” é empregada em seu sentido amplo.
[4] JURISTAS dizem que MP não pode fazer investigação. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-mar-30/juristas-afirmam-investigacao-criminal-exclusividade-policia?utm_source=twitterfeed&utm_medium=twitter. Acesso em 04/04/2013.
[5] E observe-se que se o Juiz lavra o auto de prisão em flagrante fica impedido de instruir e julgar o processo respectivo (inteligência do artigo 307 c/c 252, I, CPP). Por que o Promotor de Justiça poderia prender em flagrante, formar convicção sobre a legalidade da prisão, quando instado a manifestar-se sobre sua própria prisão, firmar convencimento sobre autoria e materialidade, acusar e seguir no processo? A nomeação para Promotor traria alguma aura de santidade imparcial às pessoas que as coloca acima de outros mortais como advogados, Delegados e Juízes?
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós - graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós - graduação da Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado da Unisal.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
Precisa estar logado para fazer comentários.