RESUMO: O presente artigo aborda a possibilidade da admissibilidade da carta psicografada ser utilizada como meio de prova no processo penal, buscando desmistificar sua associação exclusiva com o âmbito religioso e destacar sua relevância no contexto científico com pesquisa em fontes primárias e secundárias. Será apresentada a fundamentação da carta na religião espírita e a integração com o âmbito jurídico superando as barreiras culturais e metodológicas. Ademais, serão citados os princípios norteadores de defesa permitidos no tribunal como forma de assegurar que a modalidade se torne uma prova legítima. Além disso, a sua fundamentação, os meios para que se torne uma prova confiável através da perícia grafotécnica e em qual momento cabe a sua utilização é a peça-chave do presente trabalho. Este artigo busca entender a natureza das provas que existem no processo penal, seus princípios, e aborda os requisitos técnicos presentes na prova psicografada e principalmente, trazer a reflexão de todos sobre essa possibilidade, visto que a intenção é benéfica para o ordenamento jurídico. Para melhor exemplificar o tema, serão citados alguns casos em que cartas psicografadas foram utilizadas em processos penais.
Palavras-chaves: Direito Processual Penal; Meios de Prova; Carta Psicografada; Tribunal do Júri.
ABSTRACT: The present article addresses the possibility of admitting psychographed letters as evidence in criminal proceedings, seeking to demystify their exclusive association with the religious sphere and highlight their relevance within the scientific context through research in primary and secondary sources. The paper will present the foundation of such letters within the Spiritist religion and their integration into the legal sphere, overcoming cultural and methodological barriers. Furthermore, the guiding principles of defense permitted in court will be cited as a means to ensure that this modality becomes legitimate evidence. Additionally, the article will explore the foundation of psychographed letters, the methods to render them reliable evidence through forensic handwriting analysis, and the appropriate circumstances for their use, which constitutes the key aspect of this work. This article aims to understand the nature of evidence in criminal proceedings, its principles, and the technical requirements present in psychographed evidence, while encouraging reflection on this possibility, given that the intent is beneficial to the legal system. To better illustrate the topic, some cases in which psychographed letters were used in criminal proceedings will be cited.
Keywords: Criminal Procedure Law; Means of Evidence; Psychographed Letter; Jury Trial.
O presente trabalho pretende trazer reflexões sobre a capacidade da aceitação de cartas psicografadas como prova no processo penal, com o intuito de solucionar ou desvendar alguns casos, auxiliar e analisar com seriedade as provas que comprovem sua veracidade. É valido salientar que o Estado é Laico e que hoje a Constituição Federal garante a liberdade de crença, contudo, esta normativa é alvo de críticas e apresenta controvérsias, pois ainda há no judiciário recorrentes decisões influenciadas pela cultura judaico-cristã e isso traz uma reflexão sobre outras possibilidades de religiões influenciarem decisões judiciais.
Esta pesquisa adota uma abordagem qualitativa, baseada em revisão bibliográfica e análise de casos de uso documentados. A metodologia utilizada neste estudo é a revisão bibliográfica, amplamente empregada em pesquisas que buscam aprofundar o entendimento sobre um tema específico por meio da análise crítica e sistemática de publicações já existentes.
Conforme aponta Gil (2002), essa abordagem possibilita a construção de um referencial teórico sólido, permitindo uma visão mais abrangente e fundamentada do objeto de estudo. Ainda, segundo Minayo (2014), essa metodologia também cumpre o papel essencial de reunir e sistematizar as contribuições de diferentes autores, facilitando a análise comparativa entre estudos, o que possibilita a identificação de padrões e divergências nas abordagens e resultados.
Com base nas informações coletadas, o trabalho tem o objetivo de fazer uma análise crítica respeitando as leis vigentes e trazendo reflexão para o tema.
Para tratar sobre esta temática, inicialmente é necessário conceituar a psicografia e as chamadas "cartas psicografadas", bem como tratar sobre o seu simbolismo para a religião espírita. Dessa forma, é possível contextualizar o tema para compreendê-lo.
As cartas psicografadas representam uma forma de comunicação entre o mundo espiritual e o físico, frequentemente utilizadas como consolo para familiares e amigos enlutados. Não há um prazo determinado para que essa comunicação ocorra, ela pode variar de dias a anos, dependendo de cada espírito e de seu nível de evolução, conforme abordado em diversas obras espíritas. Para a doutrina espírita, a vida continua após a morte, o que permite que mensagens de agradecimento, revolta ou outras manifestações sejam reveladas aos médiuns (Justino; Paiva, 2015).
Para Justino e Paiva, a “Psicografia é o ato de escrever realizado por determinado sujeito possuidor de certa capacidade chamada mediunidade o que lhe influencia um espírito desencarnado. Ou seja, é a possibilidade de um espírito transmitir mensagem escrita através de uma pessoa viva que possua tal capacidade” (2015, p. 4). Logo, a psicografia é uma forma de mediunidade, que se refere à capacidade de conexão entre esses dois planos da existência, onde indivíduos com maior sensibilidade conseguem se comunicar com o que é conhecido como mundo espiritual.
Allan Kardec, em seu livro "O Livro dos Médiuns", descreve os fenômenos de psicografia direta e indireta. Kardec esclarece que:
Chamamos psicografia indireta à escrita assim obtida, em contraposição à psicografia direta ou manual, obtida pelo próprio médium. Para se compreender este último processo, é necessário considerar o que ocorre durante a operação. O Espírito que se comunica atua sobre o médium, que, sob essa influência, move mecanicamente o braço e a mão para escrever, sem ter (pelo menos no caso mais comum) a menor consciência do que escreve; a mão atua sobre a cesta e a cesta sobre o lápis. Assim, não é a cesta que se torna inteligente; ela não passa de um instrumento manejado por uma inteligência; não é mais do que um apêndice da mão, um intermediário entre a mão e o lápis (Kardec, 1861, p. 231)
Por outro lado, a psicografia direta permite que o espírito escreva a carta sem a intervenção do médium. Kardec enfatiza que a mensagem deve ser clara e objetiva, revelando a natureza e os pensamentos do espírito, o que contribui para a sua veracidade.
A carta psicografada, conforme a doutrina espírita, geralmente apresenta mudanças na caligrafia, refletindo a identidade do espírito que se comunica. O interessante é que a caligrafia tende a ser idêntica à que o espírito utilizava enquanto estava "encarnado", o que serve como um elemento de confirmação de sua autenticidade. Quanto ao médium, é importante ressaltar que se trata de uma pessoa comum, adepta da religião, mas que possui a chamada "faculdade mediúnica". O que distingue seu papel na prática religiosa é seu empenho, estudo e as evidências manifestadas em suas experiências mediúnicas.
Segundo Dias e Herdy (2020), no Brasil, há pelo menos onze casos em que cartas psicografadas foram utilizadas como evidência em processos criminais. Contudo, persiste a controvérsia sobre a validade dessas cartas como provas jurídicas, uma vez que elas não podem ser submetidas ao contraditório. Significando assim que não é possível convocar o espírito para o júri e confrontá-lo com outras testemunhas, levando muitos especialistas em Direito a se oporem ao seu uso. Por outro lado, alguns advogados e criminalistas argumentam que as cartas podem ser consideradas provas jurídicas em função do direito à ampla defesa. Eles acreditam que os jurados devem avaliar questões extrajurídicas e humanitárias, analisando todas as provas também com base em suas próprias crenças, embora não devam se apoiar exclusivamente na carta psicografada para tomar uma decisão judicial (Viapina, 2021). Além disso, defendem que a Constituição Federal é laica e, portanto, deve ser receptiva a todas as religiões, incluindo o Espiritismo.
2.1 A carta psicografada e sua relação com a ciência
A ciência é um campo dinâmico, sempre em busca de novas descobertas, resultando em um constante surgimento de teses comprovadas. Embora não seja absoluta, ela serve como diretriz na verificação de fatos, oferecendo um grau de certeza que aumenta a probabilidade de segurança nas contestações. Nesse contexto científico, a psicografia pode ser considerada como prova em um processo judicial, pois não se trata de um fenômeno isolado, mas sim de diversas situações que já foram investigadas e validadas por métodos científicos. Sendo o Direito uma ciência, ele deve evoluir ao incorporar novos tipos de provas que tenham respaldo científico, com o objetivo de se aproximar da realidade dos fatos em busca da verdade real. É Fato de que as cartas psicografadas geralmente são atreladas apenas a religião, porém, vamos analisar esta perspectiva com base em alguns cientistas que pesquisaram a respeito do tema em questão
Em uma pesquisa cientifica realizada por núcleo da Universidade Federal de Juiz de Fora concluiu-se que informações contidas em diversas cartas do Médium Chico Xavier eram verídicas, médium esse que já teve algumas de suas cartas em tribunais brasileiros. O estudo se iniciou em 2011 e foi feito em parceria com o Departamento de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), a partir do pós-doutorado dos pesquisadores Denise Paraná e Alexandre Rocha. O resultado da pesquisa foi publicado pela revista científica Explore. As informações das cartas continham nomes, endereços e descrição de fatos ocorridos em vida e conforme descrito por um dos pesquisadores, era impossível que Chico tenha tido acesso a essas informações, tendo em vista que eram pessoais e havia 99 cartas.
A prova, no campo do ordenamento jurídico, é fundamental para garantir a busca da verdade dos fatos, contudo, deve ser obtida de forma lícita, uma vez que o Direito nasce dos fatos, O artigo 155 do Código de Processo Penal regula o uso de provas da seguinte forma:
O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.
A prova no processo penal é de extrema importância a proteção dos direitos individuais. Um julgamento justo depende da apresentação de provas claras e convincentes, que sustentem a decisão do juiz. Em resumo, a prova é o alicerce que suporta a verdade dos fatos e a eficácia do sistema judicial.
Já o meio de prova, é o instrumento pelo qual se fornece ao juiz informações que permitem a compreensão e a construção da narrativa do crime, cujos resultados podem ser diretamente aplicados na tomada de decisão. Segundo o Código de Processo Penal, nos artigos 155 a 250, as provas são categorizadas de acordo com sua forma:
A prova testemunhal refere-se a uma pessoa que afirma ter conhecimento de um fato, podendo, assim, confirmar sua autenticidade, sempre agindo com imparcialidade e compromisso com a verdade.
A prova material consiste em qualquer elemento que evidencie o fato, como o exame de corpo de delito e os instrumentos utilizados no crime.
Já a prova documental abrange qualquer suporte que contenha e expresse um pensamento, ideia ou manifestação de vontade humana, servindo para demonstrar e comprovar um fato ou evento de relevância jurídica. Isso inclui documentos escritos, fotografias, gravações de áudio e vídeo, desenhos, esquemas, gravuras, disquetes, CDs, entre outros.
3.1 Princípios de defesa constitucionais do sistema jurídico brasileiro
A distinção entre ampla defesa e plenitude de defesa é de extrema relevância no direito brasileiro e pode ser aplicada em no uso de cartas psicografadas como meio de prova, especialmente no contexto de processos criminais.
A ampla defesa é um princípio constitucional previsto no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal de 1988, que se aplica a qualquer tipo de processo judicial ou administrativo. Ela garante ao réu o direito de apresentar todas as provas lícitas e possíveis em sua defesa e contestar as acusações, propor alegações e impugnar provas apresentadas pela acusação. No caso de uma carta psicografada, seu uso estaria condicionado à legalidade e à análise de sua admissibilidade como elemento complementar. A ampla defesa, portanto, permite que o réu utilize qualquer recurso que considere relevante, desde que respeite os limites legais (Capez, 2014).
Por outro lado, a plenitude de defesa tem um alcance ainda maior e é particularmente associada ao Tribunal do Júri (art. 5º, inciso XXXVIII, da Constituição). Nesse contexto, ela transcende os aspectos técnicos e jurídicos, permitindo ao réu uma abordagem mais flexível. Isso significa que a defesa pode utilizar argumentos de natureza emocional, moral ou até espiritual para persuadir os jurados. Assim, uma carta psicografada pode ser apresentada não apenas como prova técnica, mas como um elemento simbólico ou argumentativo que dialogue com a sensibilidade dos jurados.
Os tribunais superiores, como o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ), entendem que cartas psicografadas, isoladamente, não possuem validade como prova principal, já que não atendem aos critérios de cientificidade e legalidade. No entanto, elas podem ser aceitas como elementos secundários, desde que acompanhadas de outras provas consistentes. Sendo assim, a diferença entre esses dois princípios reside na abordagem que cada um oferece:
a) A ampla defesa está mais vinculada à validade jurídica e técnica do meio de prova.
b) A plenitude de defesa, por sua vez, explora uma dimensão subjetiva, respeitando a liberdade argumentativa que caracteriza o Tribunal do Júri, onde aspectos emocionais têm maior relevância.
Durante o uso de cartas psicografadas, é importante compreender que a admissibilidade depende de um equilíbrio entre a liberdade de argumentação e o respeito às normas processuais. A defesa deve sempre buscar fundamentar suas estratégias com base em elementos concretos que confiram legitimidade à sua abordagem.
Outro ponto importante é a necessidade de respeitar o contraditório. Caso uma carta psicografada seja utilizada, tanto a acusação quanto a defesa devem ter a oportunidade de se manifestar sobre sua admissibilidade e valor probatório. Esse cuidado reforça a imparcialidade do processo e protege os direitos de ambas as partes.
Por fim, é válido mencionar que o avanço das discussões sobre provas de natureza não convencional, como cartas psicografadas, aponta para uma maior abertura do Direito em lidar com questões que desafiam os limites tradicionais da ciência jurídica. Embora seja um tema controverso, seu uso sob a ótica da plenitude de defesa destaca a importância do respeito às crenças, valores culturais e argumentos que possam influenciar positivamente a percepção dos jurados no julgamento. Desse modo, a compatibilização entre ampla e plenitude de defesa deve sempre visar à realização da justiça.
2.2 Possibilidade de aceitação no Processo Penal Brasileiro
A relação entre religiões e o sistema jurídico é um tema que tem sido debatido ao longo dos anos e continua a ser de grande importância atualmente, tanto no Brasil quanto em várias partes do mundo. A influência dos princípios religiosos nas decisões judiciais, bem como o impacto desses princípios, que são parte do convívio social, nas condutas e dinâmicas do Estado, são assuntos que geram discussões e estudos variados.
É de conhecimento de todos o laicismo do nosso país desde 1988, conforme determinado na Constituição Federal. Nucci (2017) destaca que o Estado deve ser laico em todas as suas decisões, independentemente de sua natureza.
É sabido que a religião teve suas origens nas sociedades antigas, manifestando-se inicialmente no âmbito privado, por meio de cultos domésticos que refletiam seus costumes e leis. Com o tempo, essa relação deu origem às instituições e leis civis, estabelecendo uma conexão entre Religião e Estado que perdura até hoje, influenciando a criação e aplicação das leis. Pesquisas indicam que, desde os primórdios até os dias atuais, muitos povos utilizam a religião como um guia para a conduta e a vida social, tornando inegável a aliança entre religião e poder na trajetória da humanidade. Em diferentes contextos, o Estado pode reconhecer a relevância das religiões, elaborando leis baseadas nas doutrinas e crenças das pessoas, embora geralmente favoreça as religiões mais influentes e reprima as minorias religiosas (ENAP, 2021).
É evidente que Religião e Direito atuam como orientadores das condutas sociais, cada um à sua maneira, moldando as ações dos indivíduos e avaliando-as quando necessário. A Religião orienta por meio da fé, sugerindo que algo maior pode influenciar a vida do indivíduo com base no comprometimento em seguir os preceitos de uma crença específica. Essa influência se manifesta principalmente nas ações individuais, mas pode afetar as dinâmicas coletivas, especialmente em questões relacionadas à saúde e à violência. Por outro lado, o Direito exerce controle social de maneira coletiva, regulando interesses através de regras formais e normas jurídicas que todos devem seguir, independentemente de suas crenças pessoais, visando possibilitar a convivência em sociedade (Rocha; Sampaio, 2016).
Tratar sobre o uso da Carta Psicografada como prova remete à laicidade do Estado, como já abordado anteriormente. Kleis destaca que:
Desse modo, é visto que existem duas correntes relativas à laicidade do Estado, sendo que uma contesta o uso da carta psicografada como prova, pelo fato de o Estado ser laico, não podendo admitir qualquer tipo de prova religiosa, a outra defende que apesar de o Estado ser laico, não exclui a espiritualidade, além disto, ao falar em Proteção de Deus no preâmbulo da Constituição, demonstra que a maioria da população brasileira é teísta, ou seja, concorda com a existência de Deus (Kleis, 2010, p.53).
Ademais, ainda que a carta psicografada seja admitida como prova no processo penal, ela deve ser submetida ao crivo do contraditório e da ampla defesa. Isso significa que, caso uma carta psicografada seja apresentada em juízo, a parte contrária deve ser notificada para que possa contestá-la e apresentar sua versão dos fatos. Além disso, a parte que apresentar a carta psicografada deverá arcar com a responsabilidade de provar sua veracidade, o que pode ser um desafio, uma vez que se trata de uma prova que carece de elementos empíricos para sua validação.
Seria uma prova documental, fundando-se no escrito extraído das mãos do médium? Ou poderia ser uma prova testemunhal, levando-se em conta a pessoa do médium, que a produziu? Não é demais repetir que o devido processo legal (art. 5.°, LIV, CF) se forma validamente com o absoluto respeito ao contraditório e à ampla defesa (art. 5.°, LV, CF). Se a psicografia for considerada um documento (art. 232, caput, CPP), deve submeter-se à verificação de sua autenticidade (art. 235, CPP), havendo, inclusive incidente processual próprio a tanto (art. 145 e ss., CPP). Imaginemos que o defensor junta aos autos uma carta psicografada pelo médium X, com mensagem da vítima de homicídio Y, narrando a inocência do réu Z. Como se pode submeter tal documento à prova da autenticidade? O que fará o promotor de justiça para exercer, validamente, o contraditório? Seria viável o perito judicial examiná-lo? Com quais critérios? Invadiremos o âmago das convicções religiosas das partes do processo penal para analisar a força probatória de um documento, o que é, no mínimo, contrário aos princípios gerais de direito (Nucci, 2017, p.114-115).
Nucci levanta um questionamento relevante sobre os limites da atuação do sistema jurídico em relação às convicções religiosas. Analisando a força probatória de um documento que envolve aspectos de crença, como cartas psicografadas, o risco é de ultrapassar as fronteiras do direito laico e neutro, invadindo esferas íntimas e subjetivas das partes. Isso contraria princípios fundamentais, como a imparcialidade do julgamento e a separação entre religião e Estado, pilares dos sistemas jurídicos democráticos.
Nesse sentido, Marcão corrobora com essa visão, ao afirmar que “Se o Estado Brasileiro é Laico, não se pode aceitar como meio de prova fruto de determinada doutrina religiosa, em detrimento de toda uma diversidade de concepções religiosas ou não”. (Marcão, 2006, p.51). Essa invasão pode desrespeitar as liberdades individuais, bem como comprometer a objetividade necessária para a avaliação das provas, desvirtuando o foco do processo penal, que deve se basear em evidências concretas e universais.
Por outro lado, Timponi (2010) defende que a psicografia pode, em determinados casos, ser um instrumento útil para a busca da verdade material no processo penal, desde que respeite os requisitos legais e seja avaliada com a cautela necessária. Ele destaca, porém, que a sua aceitação deve estar embasada em critérios objetivos, como perícias grafotécnicas e outras análises que possam atestar a autenticidade e a veracidade do conteúdo. A esse respeito, trataremos a seguir sobre a perícia grafotécnica e sua atuação com as cartas psicografadas no meio penal.
A perícia grafotécnica trata-se do exame científico que verifica a autenticidade de documentos, pois confronta a escrita a ser investigada com outras escritas autênticas da pessoa em questão, é a forma mais segura de se confirmar a veracidade das cartas psicografadas, uma vez que conforme mencionado no texto, em alguns casos, o espírito reproduz a grafia idêntica a quando estava encarnado.
Segundo afirmam Justino e Paiva (2015, p. 7),
No exame grafotécnico serão estudados os grafismos da carta e comparados com aqueles produzidos pelo espírito quando encarnado. Vale ressaltar que grafoscopia é uma ciência meramente especulativa que se utiliza de métodos para determinar a veracidade de, por exemplo, assinaturas [...]
Destaca-se, portanto, o objetivo técnico do exame, que é identificar semelhanças ou diferenças entre os traços de uma escrita específica e aqueles registrados previamente pela mesma pessoa, o que é essencial para determinar autenticidade em documentos. Ademais, é evidente que há um debate importante sobre a grafoscopia: embora esta seja baseada em métodos técnicos, sua classificação como uma ciência especulativa indica a existência de limitações ou subjetividades na interpretação dos resultados, especialmente em casos complexos nos quais fatores como imitação ou alteração de padrões podem dificultar conclusões definitivas. Essa dualidade entre técnica e especulação exige que os resultados sejam utilizados com cautela, sempre em conjunto com outras evidências.
Tratando-se da carta psicografada, a utilização da carta psicografada como meio de prova, validada por perícia grafotécnica, é um tema que desperta tanto interesse quanto controvérsia no meio jurídico. Embora existam casos em que esse tipo de prova tenha sido aceito, sua aplicação continua sendo inusual e alvo de debates devido à sua ligação com fenômenos sobrenaturais. Mesmo com o avanço dos métodos probatórios, o uso da psicografia levanta questionamentos éticos, científicos e jurídicos, o que torna seu emprego um desafio para a compatibilização com os critérios de racionalidade e objetividade exigidos pela Justiça.
É o que confirma Oliveira,
A possibilidade da carta psicografada como meio de prova através da perícia grafotécnica é real, pode ser considerada verídica, porém polêmica e inabitual no meio judicial, mesmo com a evolução dos meios de prova ao longo do tempo, em se tratando da psicografia, sempre será preciso considerar os temerosos do sobrenatural (Oliveira, 2024, p. 116).
4 USO DAS CARTAS PSICOGRAFADAS EM PROCESSOS PENAIS BRASILEIROS
É importante salientar que nem todos os casos em que a carta foi apresentada como prova no processo resultaram em uma decisão favorável com base nela. Em muitos casos, a admissão da carta depende da análise cuidadosa de sua autenticidade e relevância no contexto do processo. O juiz, ao avaliar a prova, pode considerar a falta de elementos objetivos que confirmem a veracidade do conteúdo, especialmente se a perícia grafotécnica não conseguir atestar de maneira clara a autoria ou a autenticidade do documento, o que pode comprometer sua aceitação como prova válida. A seguir, alguns exemplos:
4.1 Análise do caso Ercy da Silva Cardoso
Um dos casos mais notórios em que uma carta psicografada foi admitida como prova ocorreu com Ercy da Silva Cardoso, um tabelião da cidade de Viamão, no Rio Grande do Sul, que foi vítima de homicídio em 1º de julho de 2003, sendo alvejado por disparos de arma de fogo. Nesse caso, a utilização da psicografia como elemento probatório ganhou destaque, refletindo o caráter singular do processo. A denúncia formal contra o acusado foi recebida em 12 de agosto de 2003, contendo o seguinte teor:
No dia 1° de julho de 2003, por volta das 21 horas, na Rua Nossa Senhora dos Navegantes, n° 940, na localidade de Itapuã, em Viamão, os denunciados Leandro da Rocha Almeida e a Marques Barcelos, em acordo de vontades e conjunção de esforços entre si e com pelo menos um Indivíduo identificado apenas como “Pitoco”, mediante disparos com arma de fogo (não apreendida), mataram a vítima Ercy da Silva Cardoso, causando-lhe as lesões somáticas descritas no auto de necropsia das fls. 144/145, que descreve como causa mortis hemorragia interna consecutiva à ruptura de vasos cervicais e contusão e lesão bulbo-pontina. A denunciada lara Marques Barcelos, embora casada, mantinha relacionamento amoroso com a vítima. Esta, por sua vez, reIacionava-se sexualmente com outras mulheres. Inconformada e movida por desarrazoado sentimento de ciúmes, a denunciada lara contratou a morte da vítima com o co-denunciado Leandro da Rocha Akneida, prometendo, como recompensa, a importância de R$ 20.000 (vinte mil reais). O denunciado Leandro, então, dando continuidade ao plano delituoso, manteve contato com um indivíduo conhecido como “Pitoco”, passando para ele os horários e costumes da vítima e combinando a consumação do delito, mediante a promessa de pagamento da impo de R$ 1.000,00 (mil reais). Por ocasião do fato, o denunciado Leandro, previamente acertado com a comparsa facilitou o ingresso de “Pitoco” na propriedade da vítima, impedindo, com isso, qualquer reação dos cachorros que guarneciam o local. No interior da residência, com o denunciado Leandro previamente acertado, direta e indiretamente, para a prática delituosa, prestando auxílio moral e material ao comparsa “Pitoco”, propiciou que este se aproximasse do local em que a vítima estava sentada, e, de inopino, desferisse disparos ela, provocando-lhe a morte. O delito foi praticado mediante promessa de recompensa, tendo os executores da ação delituosa utilizado recurso que impossibilitou a defesa da vítima, uma vez os disparos foram efetuados quando ela, sem qualquer possibilidade reação ou fuga, se encontrava distraída, sentada no interior da propriedade em que residia (RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação nº 70016184012, da Primeira Câmara Criminal, de Viamão – RS, 11 nov. 2006).
Posteriormente, a acusada Iara Marques Barcelos fez sua pronúncia. Em sua defesa, foi apresentada uma carta atribuída à vítima e suposto amante de Iara, Ercy da Silva Cardoso. Na ocasião, informou-se que a carta foi psicografada pelo médium Jorge José Santa Maria, membro da Sociedade Beneficente Espírita Amor e Luz, sediada em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. A referida carta era direcionada a Iara e a seu esposo, e continha um trecho que buscava isentá-la de responsabilidade, trazendo a seguinte mensagem: “[...] o que mais me pesa no coração é ver Iara acusada deste jeito, por mentes ardilosas como as de meus algozes. Por isso, tenho estado triste e oro diariamente em favor de nossa amiga para que a verdade prevaleça e a paz retorne aos nossos corações”.
Dessa forma, o Conselho de Sentença aceitou a tese de defesa baseada na negativa de autoria e absolveu a ré, Iara Marques Barcelos. Inconformados com a decisão, tanto o Ministério Público quanto o assistente de acusação interpuseram recursos de apelação. O assistente alegou a "falsidade da carta psicografada utilizada em plenário", enquanto ambos os recursos apontaram a nulidade do julgamento devido à suspeição do sétimo jurado, o que poderia comprometer a imparcialidade do veredicto.
Em 27 de junho de 2007, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por maioria, acolheu a apelação do Ministério Público e declarou a nulidade do julgamento com base no art. 564, II, do Código de Processo Penal. Consequentemente, a análise do recurso da assistência da acusação foi considerada prejudicada.
Contra essa decisão, Iara Marques Barcelos apresentou embargos infringentes, que foram acolhidos. Assim, a nulidade anteriormente declarada foi afastada, e o caso retornou ao Tribunal para que o apelo da assistência da acusação fosse julgado.
No entanto, a Procuradora de Justiça Irene Soares Quadros sustentou que a utilização da carta psicografada como meio de prova em plenário era ilícita. O relator do caso, Desembargador Manuel José Martinez Lucas, discordou dessa posição. Em sua decisão, ele entendeu que não havia impedimento para a utilização da carta, argumentando que não se tratava de prova ilícita. Para fundamentar sua decisão, o relator baseou-se no art. 5º, inciso VI, da Constituição Federal, que garante a liberdade de crença e convicção, ao afirmar que:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias (BRASIL, 1988).
Ademais, em seu voto, o relator Desembargador Manuel José Martinez Lucas acrescentou considerações que reforçavam a validade do argumento constitucional tais como:
A fé espírita, que se baseia, além de outros princípios e dogmas, na comunicação entre o mundo terreno e o mundo dos espíritos desencarnados, na linguagem daqueles que a professam, é tão respeitável quanto qualquer outra e se enquadra, como todas as demais crenças, na liberdade religiosa contemplada naquele dispositivo constitucional.
Só por isso, tenho que a elaboração de uma carta supostamente ditada por um espírito e grafada por um médium não fere qualquer preceito legal. Pelo contrário, encontra plena guarida na própria Carta Magna, não se podendo incluí-la entre as provas obtidas por meios ilícitos de que trata o art. 5º, LVI, da mesma Lei Maior.
É evidente que a verdade da origem e do conteúdo de uma carta psicografada será apreciada de acordo com a convicção religiosa ou mesmo científica de cada um. Mas jamais tal documento, com a vênia dos que pensam diferentemente, poderá ser tachado de ilegal ou de ilegítimo (RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação nº 70016184012, da Primeira Câmara Criminal, de Viamão – RS, 11 nov. 2006).
Além disso, o Desembargador Relator argumentou que, considerando o sistema de íntima convicção que rege o Tribunal do Júri, não seria viável determinar qual foi a influência exata da carta psicografada na decisão final dos jurados. Ele destacou que não se pode afirmar, com certeza, que o veredicto teria sido diferente caso o documento não tivesse sido apresentado durante o julgamento. Conforme mencionou no trecho:
Ocorre que, como é curial, os jurados, investidos temporariamente da função de magistrados no Tribunal do Júri, julgam por íntima convicção, deixando de fundamentar os votos que proferem, o que decorre de sua própria condição de juízes leigos e da própria sistemática do Júri Popular.
Sendo assim, não se pode sequer saber se, no caso vertente, a referida carta psicografada teve peso na decisão do Conselho de Sentença, ainda que tenha sido tão explorada pela defesa, como afirma a assistência da acusação em suas razões recursais. Em outras palavras, não se sabe se, na ausência do documento em questão, o veredicto não teria sido o mesmo, com base nas outras provas produzidas nos autos e nos debates realizados em plenário (RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação nº 70016184012, da Primeira Câmara Criminal, de Viamão – RS, 11 nov. 2006).
Adicionalmente, o Desembargador Relator enfatizou que a anulação de um julgamento somente seria possível se a decisão dos jurados estivesse completamente dissociada das provas constantes nos autos, atingindo o nível de arbitrariedade, conforme o art. 593, III, "d", do CPP: “Art. 593. Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias: (...) III - das decisões do Tribunal do Júri, quando: (...) d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos”.
Caso exista, ao menos, algum suporte probatório que justifique a decisão do Tribunal do Júri, o veredicto deve ser mantido, sob pena de violação ao princípio da soberania dos veredictos, garantido pelo art. 5º, inciso XXXVIII, alínea "c", da Constituição Federal: “XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: c) a soberania dos veredictos;”.
É oportuno destacar que o Supremo Tribunal Federal atualmente discute o Tema 1087 (Leading Case ARE 1225185), que aborda a possibilidade de um Tribunal determinar a realização de um novo julgamento com base em recurso interposto contra uma absolvição fundamentada no quesito genérico (art. 483, III, combinado com o §2º do CPP), argumentando suposta contrariedade às provas dos autos (art. 593, III, "d", do CPP). O debate gira em torno de avaliar se essa medida comprometeria a soberania dos veredictos, princípio essencial do Tribunal do Júri.
Por fim, a apelação apresentada pela assistência de acusação foi rejeitada, e o acórdão proferido recebeu a seguinte ementa:
JÚRI. DECISÃO ABSOLUTÓRIA. CARTA PSICOGRAFADA NÃO CONSTITUI MEIO ILÍCITO DE PROVA. DECISÃO QUE NÃO SE MOSTRA MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS. Carta psicografada
não constitui meio ilícito de prova, podendo, portanto, ser utilizada perante o Tribunal do Júri, cujos julgamentos são proferidos por íntima convicção. Havendo apenas frágeis elementos de prova que imputam à pessoa da ré a autoria do homicídio, consistentes sobretudo em declarações policiais do co-réu, que depois delas se retratou, a decisão absolutória não se mostra manifestamente contrária à prova dos autos e, por isso, deve ser mantida, até em respeito ao preceito constitucional que consagra a soberania dos veredictos do Tribunal do Júri. Apelo improvido.
A controvérsia chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), contudo, o mérito do caso não foi analisado (Recurso Especial n. 1.358.601 - RS (2011/0037429-0). Isso ocorreu porque, após o decurso de mais de 10 anos desde a data da pronúncia, foi declarada extinta a punibilidade de Iara Marques Barcelos, tornando prejudicada a apreciação do recurso especial apresentado pelo Ministério Público. O caso transitou em julgado em 23 de outubro de 2017.
4.2 Jurisprudência Recente: Decisão de 2019 do Tribunal de Justiça do Paraná TJ –PR
Um caso mais recente data de 2019 e foi analisado pelo Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR). Na situação, tratava-se de um caso de homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor, nos termos do artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro. A defesa alegou, preliminarmente, que houve ofensa aos princípios da ampla defesa e do contraditório devido à não admissão de uma carta psicografada como meio de prova, documento este que foi apresentado para reforçar a inocência do réu.
A carta psicografada, segundo a defesa, não seria uma prova ilícita e, portanto, deveria ser admitida. Contudo, o magistrado de primeira instância fundamentou sua decisão de não aceitá-la, afirmando que a prova não era imprescindível para o deslinde do caso e que sua exclusão estava dentro de sua discricionariedade como julgador. No recurso, a Procuradoria-Geral de Justiça opinou pelo conhecimento parcial do apelo e pela admissão da carta psicografada como meio de prova, sem que isso alterasse o mérito da decisão condenatória.
O TJ-PR, no entanto, manteve a decisão de não admitir a carta psicografada, enfatizando que a prova não tinha relevância suficiente para impactar o julgamento e que não havia violação aos princípios da ampla defesa e do contraditório. A corte considerou que a condenação por homicídio culposo baseava-se em elementos concretos, como a imprudência do réu ao dirigir em alta velocidade, perder o controle do veículo e causar o acidente que levou à morte da passageira.
Tribunal de Justiça do Paraná TJ-PR -PROCESSO CRIMINAL -Recursos -Apelação: APL 0027688-63.2017.8.16.0019 PR 0027688-63.2017.8.16. 0019. APELAÇÃO CRIMINAL. IMPUTAÇÃO HOMICÍDIO CULPOSO COMETIDO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR (ART.302, CAPUT, CTB). CONDENAÇÃO.1) PRELIMINAR DE OFENSA AOS PRINCÍPIOS DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO POR NÃO ADMISSÃO DE DOCUMENTO.INOCORRÊNCIA. DECISÃO FUNDAMENTADA.PROVA QUE NÃO É IMPRESCINDÍVEL PARA O DESLINDE DA CAUSA.DISCRICIONARIEDADE DO JULGADOR.2) PLEITO ABSOLUTÓRIO.ALEGAÇÃO DE QUE O RÉU NÃO AGIU COM CULPA.DESACOLHIMENTO. RÉU QUE, SEM TOMAR AS CAUTELAS EXIGIDAS PELO ARTIGO28, DOCÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO, TRAFEGANDO EM ALTA VELOCIDADE, PERDE O CONTROLE DO VEÍCULO E COLIDE CONTRA UMA ÁRVORE.MORTE DA PASSAGEIRA.IMPRUDÊNCIA CONFIGURADA.RECURSO DESPROVIDO NESTA PARTE.3) PERDÃO JUDICIAL (ART.121,§ 5º, DOCP).NÃO CABIMENTO.AUSÊNCIA DE PROVAS ACERCA DA DESNECESSIDADE DA SANÇÃO PENAL.4) PEDIDO DE AFASTAMENTO DA SANÇÃO DE SUSPENSÃO DA CARTEIRA DE HABILITAÇÃO.IMPOSSIBILIDADE, VEZ QUE CUMULATIVA E OBRIGATÓRIA POR PREVISÃO LEGAL.5) PRETENSÃO DE REDUÇÃO DA PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA.INVIABILIDADE. MONTANTE DE 05 (CINCO) SALÁRIOS-MÍNIMOS COMPATÍVEL COM A SITUAÇÃO ECONÔMICA DO ACUSADO.RECURSO DESPROVIDO. (TJPR -1ª C.Criminal -0027688-63.2017.8.16.0019-Ponta Grossa-Rel.: Juiz Naor R.de Macedo Neto -J. 17.10.2019).A Defesa alega nas razões recursais, preliminarmente, que a não admissão, pelo ilustre Magistrado a quo, da carta psicografada por ela apresentada como meio de prova fere os princípios da ampla defesa e do contraditório. Salienta que, por não se tratar de prova ilícita, não há motivos para não ser ela admitida. A douta Procuradoria-Geral de Justiça, em parecer subscrito pelo ilustre Procurador de Justiça, Dr. Milton Riquelme de Macedo, opina pelo parcial conhecimento do apelo e, na parte conhecida, pelo seu parcial provimento, “tão somente para admitir a carta psicografada como meio de prova, mantendo-se no mais a r. decisão recorrida” (mov. 8.1 –TJ). É o relatório. Voto. II -Cuida-se de recurso de apelação criminal interposto Apelação Crime nº 0027688-63.2017.8.16.0019. (grifos nossos) 8079 (TRIBUNAL DE JUSTIÇA de Mato Grosso do Sul -MS -Habeas Corpus Criminal: HC 1402867-05.2022.8.12.0000 Três Lagoas. 2022.) (TRIBUNAL DE JUSTIÇA do Paraná TJ-PR-Recursos -Apelação: APL 0027688-63.2017.8.16.0019 PR 0027688-63.2017.8.16.0019 (Acórdão) -2019).
Conforme analisado, a discussão em torno da carta psicografada neste caso demonstra que há desafios do sistema jurídico brasileiro para lidar com provas baseadas em crenças ou práticas espirituais. Embora não exista vedação expressa para a utilização de tais documentos, sua admissibilidade depende do contexto e da avaliação do juiz sobre sua relevância e impacto no processo. No caso em análise, o tribunal concluiu que a carta não era essencial para a análise dos fatos e, por isso, não deveria ser admitida como prova.
Assim, este julgamento reafirma a necessidade de um equilíbrio entre os princípios da ampla defesa e do contraditório e a busca pela objetividade e racionalidade nas decisões judiciais, especialmente quando se trata de provas não convencionais, como cartas psicografadas. A decisão demonstra que, para serem admitidos, esses documentos devem cumprir critérios de relevância e impacto direto sobre a matéria em discussão.
4.3 Citação no caso Boate Kiss
Durante o julgamento no Tribunal do Júri sobre a tragédia do incêndio na Boate Kiss, em 2011, a advogada de defesa de Marcelo de Jesus dos Santos, músico da banda Gurizada Fandangueira e responsável por acender o artefato pirotécnico durante o show, apresentou uma carta psicografada como parte de sua estratégia para tentar provar sua inocência. A advogada apresentou um áudio que, segundo ela, continha uma mensagem psicografada atribuída a um dos 242 jovens que perderam a vida na tragédia.
Na mensagem, a voz supostamente dizia:
Procurem aceitar as determinações divinas. Eu também lamento tudo o que ocorreu, mas só me resta tentar me adaptar à realidade. [...] Vamos lembrar que os responsáveis também têm famílias e não tiveram qualquer intenção quanto à tragédia acontecida. Pensemos no fato como uma fatalidade e hoje já começamos a entender um pouco em sentido mais profundo do que nos ocorreu de ponto de vista da lei de causa e efeito.
Esse recurso foi usado pela defesa como uma tentativa de sensibilizar os jurados, apresentando a tragédia como uma fatalidade sem intenção direta dos envolvidos e apelando para a compreensão espiritual e emocional do caso. A estratégia da Dra. Tatiana Borsa foi questionada devido à ética. A advogada afirmou que sua ideia não era apelar para a emoção, mas demonstrar para os jurados que existem outros pais, como os de Guilherme, que não estão se movendo pelo sentimento de vingança.
O Ministério Público não apresentou oposição à juntada do áudio e do livro como elementos no julgamento. A defesa argumentou que o procedimento estava em conformidade com o artigo 479 do Código de Processo Penal (CPP), que permite a inclusão de materiais deste tipo até três dias úteis antes do início do julgamento.
Segundo a defesa, a juntada foi realizada dentro do prazo legal, sem qualquer contestação, e está respaldada em jurisprudência, como o agravo do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de 2012 (Ag 1.388.283-RS). Marcelo foi condenado a 18 anos de prisão por homicídio simples com dolo eventual., E atualmente, ele e os outros três réus foram beneficiados por um Habeas Corpus (HC) concedido pelo desembargador José Manuel Martinez Lucas, da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. A decisão determinou que o juiz responsável pelo júri, Orlando Faccini Neto, se abstivesse de expedir mandados de prisão para os condenados. O pedido de HC foi elaborado pela defesa de Elissandro Callegaro Spohr, um dos réus, quando os jurados estavam reunidos na sala secreta para a votação dos quesitos do mesmo dia. Essa medida suspendeu temporariamente os efeitos imediatos das condenações no processo.
No entanto, em 4 de fevereiro de 2025, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) manteve as condenações dos quatro réus envolvidos no incêndio da Boate Kiss, ocorrido em Santa Maria (RS) em 2013. A decisão confirmou o entendimento do ministro Dias Toffoli, que, em setembro de 2024, havia restabelecido as sentenças impostas pelo Tribunal do Júri e determinado a prisão imediata dos condenados. As defesas haviam recorrido, alegando nulidades processuais, mas o STF considerou que tais alegações não foram apresentadas no momento processual adequado, reforçando a soberania do veredicto do júri popular (CONJUR, 2025).
Com a decisão do STF, as condenações foram restabelecidas, e os réus devem cumprir as penas estabelecidas pelo Tribunal do Júri. Essa decisão marca um desfecho significativo no âmbito jurídico para um dos casos mais trágicos da história recente do país.
A presente pesquisa buscou explorar a admissibilidade das cartas psicografadas como meio de prova no processo penal brasileiro, considerando os desafios e implicações jurídicas que envolvem sua utilização. O estudo revelou que, embora a questão ainda seja altamente controversa, há precedentes nos quais tais cartas foram aceitas no Tribunal do Júri, sobretudo com base no princípio da plenitude de defesa. No entanto, a ausência de critérios objetivos e científicos sólidos para validar essas mensagens espirituais dificulta sua aceitação generalizada, tornando essencial uma análise criteriosa de sua viabilidade no âmbito jurídico.
Um dos principais pontos observados é a necessidade de equilibrar os princípios da ampla defesa e do contraditório com a laicidade do Estado, princípio fundamental da Constituição Federal. Ainda que o Brasil reconheça a liberdade religiosa, a aceitação de provas de cunho espiritual pode abrir precedentes delicados, suscitando debates sobre a influência da fé nas decisões judiciais. Nesse sentido, a perícia grafotécnica aparece como um mecanismo relevante para conferir maior credibilidade às cartas psicografadas, mas, por si só, não elimina as questões éticas e metodológicas associadas a esse tipo de prova.
Outro aspecto relevante é a influência que elementos não convencionais, como cartas mediúnicas, podem exercer sobre o julgamento dos jurados no Tribunal do Júri. A capacidade de convencimento emocional dessas provas pode impactar significativamente o veredicto, o que reforça a necessidade de um debate aprofundado sobre os limites entre crença pessoal e legalidade. Além disso, ao observar os casos concretos citados ao longo do estudo, fica evidente que a aceitação dessas provas depende, em grande parte, da postura do magistrado e da forma como a defesa constrói sua argumentação.
Dessa forma, acredito que a introdução de provas com origem espiritual no processo penal deve ser tratada com extremo cuidado. Embora seja inegável o impacto que essas cartas podem ter para familiares enlutados e até mesmo para a defesa de acusados, é fundamental que o Direito mantenha seu compromisso com a racionalidade, imparcialidade e previsibilidade. O sistema jurídico não pode se basear em elementos que não possam ser confrontados adequadamente no contraditório, sob pena de comprometer a segurança jurídica e a isonomia processual.
Portanto, este estudo reforça a necessidade de um aprofundamento contínuo sobre o tema, de modo que futuras discussões possam estabelecer diretrizes mais claras para a possível utilização das cartas psicografadas no ordenamento jurídico brasileiro. A compatibilização entre fé e Direito é um desafio constante, mas o compromisso com a ciência, a imparcialidade e a justiça devem sempre prevalecer.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 05 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em 11 mai 2023.
BRASIL. Código de Processo Penal (1941). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm. Acesso em 11 mai 2023.
BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em 11 mai 2023.
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2014.
CAVALCANTI, Maria Fernanda Vianez de Castro. A psicografia como meio de prova no Tribunal do Júri. Conteúdo Jurídico, Brasilia-DF, 2018. Disponível em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52139/a-psicografia-como-meio-deprova-notribunal-do-juri. Acesso em 11 maio 2023.
CONJUR. Supremo mantém condenações de réus da tragédia da Boate Kiss. Consultor Jurídico, 4 fev. 2025. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-fev-04/supremo-mantem-condenacoes-de-reus-da-tragedia-da-boate-kiss/. Acesso em: 10 fev. 2025.
CZERSKI, Wilson. As Cartas Psicografadas como Prova nos Tribunais. Disponível em http://www.oconsolador.com.br/35/wilson_czerski.html. Acesso em 11 maio 2023.
DIAS, J. M; HERDY, R. Limite Penal - Por falar em ciência: cartas psicografadas não são meio de prova. Consultor Jurídico. Conjur, 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-abr-17/limite-penal-falar-ciencia-cartas-psicografadas-nao-sao-meio-prova/. Acesso em: 16 de jan.2024.
FREITAS, Jardel de Freitas. Aplicações Práticas da Psicografia no Processo Penal Brasileiro. Disponível em http://httpcartasdepaulotarso.dihitt.com.br/noticia/aplicacoes-praticas-da-psicografiano-processo-penal-brasileiro. Acesso em 11 mai 2023.
GARCIA, Ismar Estulano. Psicografia como prova jurídica. Goiânia: AB, 2010.
GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projeto de pesquisa. São Paulo: Atlas, 2012.
GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Direito à prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2011.
GRINOVER, Ada Pellegrini. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório. Revista Jurídica Consulex, Brasília, Ano III, n 169, p.33-36, out.2015.
JUSTINO, André Luiz Araújo; DA SILVA PAIVA, Diogo Henrique. Prova Psicografada no Processo Penal. Revista de Iniciação Científica. Disponível em: https://www.unifeg.edu.br/webacademico/site/revista-pic/ed/2015/DIR_-_Andre.pdf.
KARDEC, Allan. O livro dos médiuns, ou, guia dos médiuns e dos evocadores: espiritismo experimental. 1ª edição. Brasília: Conselho Espírita Internacional, 2011.
KARDEC, Allan. Livro de Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita. 83 ed. São Paulo: Lúmen, 2006.
KLEIS, R. O uso da carta psicografada como prova no processo penal. 2010. 130 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito), Curso de Direito, Universidade do Vale do ItajaíUNIVALI. Itajaí 2010.
MARCÃO, Renato. Psicografia e Prova Penal. Revista Jurídica Consulex. Brasília, V.10, n.229, p. 18/3, 2006.
MIGALHAS –Boate Kiss: Advogada usa carta psicografada para defender vocalista. 10 de dezembro de 2021.Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/356361/boate-kiss-advogada-usa-carta-psicografada-para-defender-vocalista. Acesso em: 30 set.2023.
MINAYO, Maria Cecília de Souza (Org). Pesquisa Social: Teoria, Método e Criatividade. 6. ed. Petropólis: Editora Vozes, 2014.
NUCCI. Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 6. ed. rev., atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.
DE OLIVEIRA, Janaine E. A Grafoscopia na Psicografia:: Perícia em Cartas Psicografadas, Possibilidade de Identificação Gráfica e Autoria da Escrita. Revista Pleiade, [S.l.], v. 18, n. 44, p. 111-117, 2024. Disponível em: https://pleiade.uniamerica.br/index.php/pleiade/article/view/1056. Acesso em: 10 nov. 2024.
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação nº 70016184012, da Primeira Câmara Criminal, de Viamão – RS, 11 nov. 2006.
TIMPONI, Miguel. A Psicografia ante os Tribunais. 5. ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2010.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA do Paraná TJ-PR-Recursos -Apelação: APL 0027688-63.2017.8.16.0019 PR 0027688-63.2017.8.16.0019 (Acórdão) -2019. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-pr/835124276/inteiro-teor-835124281. Acesso em: 03 dez. 2024.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA de Mato Grosso do Sul -MS - Habeas Corpus Criminal: HC 1402867-05.2022.8.12.0000 Três Lagoas. 2022. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-ms/1746496479. Acesso em: 03 dez. 2024.
Graduação em Direito pela PUCSP(2021). Especialista em Direito penal e processo penal pela PUCSP(2023). Mestrando em Direito Penal pela PUCSP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AMUD, Michel Lima Sleiman. O valor jurídico da carta psicografada no processo penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 fev 2025, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/67932/o-valor-jurdico-da-carta-psicografada-no-processo-penal. Acesso em: 04 mar 2025.
Por: MATHEUS BISPO ALVES DOS SANTOS
Por: Sidio Rosa de Mesquita Júnior
Por: Joaquim Leitão Júnior
Por: Igor Justin Carassai
Precisa estar logado para fazer comentários.