A doutrina liberal clássica aponta o sistema capitalista como um dos grandes responsáveis pelo progresso da humanidade. Como as pessoas tendem a produzir mais do que consumem, a acumulação do capital poupado gera investimentos que refletem em benefício para toda a sociedade (MISES: 2009, p. 21).
É intuitivo que para promover o desenvolvimento econômico em toda a sua potencialidade, o capital acumulado necessita circular com facilidade. A utilização da moeda como instrumento de circulação de riquezas em substituição ao sistema de escambo representou significativo avanço no campo econômico. Mas o ser humano foi mais criativo: inventou o crédito, o que permitiu que a riqueza circulasse com mais velocidade.
O crédito é baseado na confiança, no dever de boa-fé que deve permear toda relação obrigacional. Representa o direito de uma parte (credor) em relação a uma prestação que deve ser adimplida pela outra parte (devedor). Desponta nesse cenário o título de crédito, na condição de “documento que instrumentaliza o crédito e permite a sua mobilização com rapidez e segurança”. (RAMOS: 2009, p. 223).
Para que o título de crédito cumpra o papel para o qual foi idealizado é necessário que ele seja capaz de materializar e instrumentalizar o direito nele representado, de forma totalmente independente da relação obrigacional que lhe deu origem. Entram em cena os consagrados princípios da cartularidade, da literalidade e da autonomia, positivados no art. 887 do Código Civil, com a seguinte redação: o título de crédito, documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido, somente produz efeito quando preencha os requisitos da lei.
Por cartularidade, entende-se que o exercício do direito representado no título requer a sua apresentação. É a posse da cártula que comprova o direito ao crédito nela escriturado. O “direito não existe sem o documento, não se transmite sem a sua respectiva transferência e não pode ser exigido sem a sua exibição”. [3]
Noutro giro, o direito e, por consequência, também a obrigação representada no título, correspondem ao que nele está registrado, em sua literalidade. É por isso que “o devedor não é obrigado a mais nem o credor pode ter outros direitos senão aqueles declarados no título”.[4]
Porém, a característica mais importante dos títulos de crédito, “a pedra angular de todo o regime jurídico cambial, é o princípio da autonomia”.[5] É a autonomia que garante a cambiaridade, a circulabilidade e a negociabilidade do título; é dela que decorrem os subprincípios da abstração e da inoponibilidade das exceções pessoais ao terceiro de boa-fé.[6] Significa que o título pode circular livremente, totalmente desvinculado da relação obrigacional que lhe deu origem. Assim, o legítimo portador da cártula pode exercer seu direito de crédito sem que lhe possam ser opostas exceções pessoais ou vícios relacionados ao negócio original. A autonomia dos títulos de crédito encontra-se positivada no art. 916 do CC, que dispõe que “as exceções fundadas em relação de devedor com os portadores precedentes, somente poderão ser por ele opostas ao portador, se este, ao adquirir o título tiver agido de má-fé.”
Mas essa autonomia – a exemplo dos demais princípios cambiários – não é absoluta. Depende de uma condição para que seja reconhecida no mundo jurídico: que o título de crédito tenha circulado, ou seja, que tenha sido repassado a um terceiro pelo credor primitivo. Foi o que reafirmou o STJ no julgamento do Recurso Especial nº 1078399.[7] Na assentada, a Quarta Turma da Corte Superior reconheceu a possibilidade do devedor comprovar em sede de exceção de pré-executividade, desde que por meios idôneos, a quitação de dívida representada em nota promissória, não obstante o título ainda estar de posse do credor.
Conforme se verifica no voto do eminente Relator do REsp, Ministro Luis Felipe Salomão, foi sustentado no recurso que a posse das cártulas pelo credor gera presunção de inadimplência, e que não seria válido o pagamento sem o resgate do título (cartularidade) ou o lançamento da quitação no próprio documento (literalidade).
O ilustre magistrado asseverou que os princípios da cartularidade, literalidade e autonomia “visam a conferir segurança jurídica ao tráfego comercial e celeridade na circulação do crédito, que deve ser transferido a terceiros de boa-fé purificado de todas as questões fundadas em direito pessoal”.
Todavia, esclareceu que aqueles princípios devem ser mitigados na hipótese do título não ter sido colocado em circulação, pois entre o credor originário e o devedor existe uma relação contratual, o que permite a utilização das defesas pessoais admitidas pelo ordenamento jurídico. Vale conferir o seguinte trecho do voto do i. Relator:
“Com efeito, a relação jurídica existente entre o devedor de nota promissória e seu credor contratual direto é regida pelo direito comum, não se lhes aplicando os princípios cambiários que impedem a oposição de exceções pessoais, mostrando-se, por isso mesmo, cabível a alegação de pagamento extracartular.”
Firme nesse entendimento, o Recurso Especial em comento foi parcialmente conhecido, para ter negado seu provimento.
A decisão do STJ está em harmonia com a finalidade do instituto cambiário. Afinal, a função que o título de crédito pretende desempenhar em prol do desenvolvimento econômico decorre de sua portabilidade, que por sua vez se caracteriza apenas quando a cártula é colocada em circulação. Antes disso, o título serve tão somente para documentar e garantir uma obrigação contratual estabelecida entre credor e devedor. Por outro lado, o Decisum privilegia a boa-fé objetiva, o ideal de justiça distributiva – de dar a cada um o que é seu – e a vedação ao enriquecimento sem causa, na media em que reconhece o adimplemento da obrigação, desde que comprovado o pagamento da dívida por meio idôneo, ainda que o título esteja na posse do credor originário.
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Referências Bibliográficas:
CARVALHO DE MENDONÇA, J. Xavier. Tratado de Direito Comercial Brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1938.
GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Titulos de crédito e contratos mercantis. São Paulo: Saraiva, 2004.
MISES, Ludwig von. As seis lições. Trad. Maria Luiza Borges. 7ª ed. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2009.
RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Curso de Direito Empresarial. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2009.
NOTAS:
[1] MISES, Ludwig von. As seis lições. Trad. Maria Luiza Borges. 7ª ed. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2009, p. 21.
[2] RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Curso de Direito Empresarial. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2009, p. 223.
[3] GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Titulos de crédito e contratos mercantis. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 06 in: RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Curso de Direito Empresarial. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2009, p. 229.
[4] CARVALHO DE MENDONÇA, J. Xavier. Tratado de Direito Comercial Brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1938, p. 47 in: RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Curso de Direito Empresarial. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2009, p. 231.
[5] RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Curso de Direito Empresarial. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2009, p. 232.
[6] RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Curso de Direito Empresarial. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2009, p. 232.
[7] STJ – RECURSO ESPECIAL Nº 1.078.399 - MA (2008/0169689-3) RELATOR : MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO – 4ª Turma – Data do Julgamento: 02/04/2013. DJe: 09/04/2013.
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