RESUMO: Não se questiona na praxis o poder de os magistrados terem acesso a quaisquer documentos no exercício da jurisdição. A dúvida surge em relação a outras autoridades. O sigilo dos laudos médico-periciais da perícia oficial (Lei nº 8.112/90) não é absoluto, pois o acesso pelo juiz, pelo advogado da União e pelo procurador da República é uma exceção ao sigilo médico prevista pelo ordenamento jurídico brasileiro, estando essas autoridades legalmente autorizadas a requisitá-los no exercício das suas atribuições.
I. Considerações iniciais
Em um ensaio anterior, entendeu-se pela legalidade de acesso, em situações específicas, aos laudos médicos das perícias oficiais regidas pela Lei nº 8.112/90. Essa posição foi assim sintetizada:
Ante todo o exposto, por força do art. 5º, inciso X, da Constituição Federal de 1988, do art. 23, § 1º, da Lei nº 8.159/91, e do art. 2º do Decreto nº 4.553/2002, os laudos médico-periciais estão cobertos pelo sigilo legal. Por outro lado, diante da diferenciação feita pelo Código de Ética Médica entre sigilo médico-paciente e sigilo dos prontuários médicos e da posição manifestada pelo Conselho Federal de Medicina nos Pareceres nº 24/1990 e 28/1992, conclui-se que o acesso aos laudos médicos periciais, em situações específicas, é uma exceção ao sigilo médico.[1]
Dando continuidade à análise do tema, cabe agora perscrutar as autoridades que excepcionam esse sigilo e, em consequência, têm a prerrogativa de acessar os laudos médico-periciais. Esse é o tema do estudo.
II. As autoridades legalmente autorizadas a excepcionar o sigilo médico-pericial.
Não se questiona na praxis o poder de os magistrados terem acesso a quaisquer documentos no exercício da jurisdição. A dúvida surge em relação a outras autoridades, como o fornecimento dos laudos médicos aos advogados da União (nas causas em que os servidores questionam o indeferimento do pedido de licença para tratamento de saúde), aos procuradores da República e aos delegados da Polícia Federal. Dessa forma, abordar-se-á a disciplina legal aplicável a estas 3 (três) autoridades.
a) O sigilo em relação aos advogados da União
O mandato dos advogados da União para a representação judicial da União tem substrato constitucional, pois o art. 131 da Constituição Federal de 1988 define que a
Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.
Por se tratar do exercício da advocacia, à carreira de advogado da União aplica-se o Estatuto da Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil (EOAB) - Lei nº 8.906/94, pois, conforme previsão expressa do art. 3º, § 1º, “exercem atividade de advocacia, sujeitando- ao regime desta lei, além do regime próprio a que se subordinem, os integrantes da Advocacia-Geral da União”.
Corolário da aplicação do Estatuto da Ordem dos Advogados à carreira de advogado da União é a obrigação de manter o sigilo advogado-cliente. Em verdade, dispõe o seu art. 7º, inciso XIX, que é direito do advogado recusar-se a depor como testemunha em processo no qual funcionou ou deva funcionar, ou sobre fato relacionado com pessoa de quem seja ou foi advogado, mesmo quando autorizado ou solicitado pelo constituinte, bem como sobre fato que constitua sigilo profissional.
Realce-se que o art. 34, inciso VII, do mesmo Estatuto considera infração disciplinar a violação, sem justa causa, do sigilo profissional. Ademais, o Código de Ética dos Advogados traz capítulo próprio sobre o sigilo profissional:
CAPÍTULO III
DO SIGILO PROFISSIONAL
Art. 25. O sigilo profissional é inerente à profissão, impondo-se o seu respeito, salvo grave ameaça ao direito à vida, à honra, ou quando o advogado se veja afrontado pelo próprio cliente e, em defesa própria, tenha que revelar segredo, porém sempre restrito ao interesse da causa.
Art. 26. O advogado deve guardar sigilo, mesmo em depoimento judicial, sobre o que saiba em razão de seu ofício, cabendo-lhe recusar-se a depor como testemunha em processo no qual funcionou ou deva funcionar, ou sobre fato relacionado com pessoa de quem seja ou tenha sido advogado, mesmo que autorizado ou solicitado pelo constituinte.
Art. 27. As confidências feitas ao advogado pelo cliente podem ser utilizadas nos limites da necessidade da defesa, desde que autorizado aquele pelo constituinte.
Parágrafo único. Presumem-se confidenciais as comunicações epistolares entre advogado e cliente, as quais não podem ser reveladas a terceiros.
Destaque-se, ainda, que o advogado da União também se submete ao regime jurídico da Lei nº 8.112/90, aplicável a todos os servidores públicos federais. Esse diploma, na mesma linha do Código de Ética dos Advogados, impõe-lhe o dever de “guardar sigilo sobre os assuntos da repartição” (art. 116, inciso VIII) e comina pena de demissão pela “revelação de segredo do qual se apropriou em razão do cargo” (art. 132, inciso IX).
Alongou-se o discurso sobre o suporte normativo acerca do conhecido dever de sigilo entre advogado e cliente e sobre a Lei nº 8.112/90 para se demonstrar que não haverá violação à intimidade do periciado no fornecimento de laudos médico-periciais aos advogados da União exatamente porque a sua disciplina legal os obriga ao dever de sigilo das informações e documentos que tiverem acesso no exercício da função[2]. Ademais, o acesso a esses documentos não se reveste de simples deleite. Ao contrário, são indispensáveis ao bom desempenho da atividade institucional de representação judicial e extrajudicial da União, bem como ao exercício do assessoramento e da consultoria jurídica.
Importante dizer que, enquanto o art. 27 do Código de Ética dos Advogados prevê que o causídico somente pode utilizar as confidências autorizadas pelo cliente, a lei confere ao advogado da União, como preposto desta, o poder de decidir quais documentos são pertinentes para a defesa do Instituto. O art. 4º da Lei 9.028/95 estabelece que “na defesa dos direitos ou interesses da União, os órgãos ou entidades da Administração Federal fornecerão os elementos de fato, de direito e outros necessários à atuação dos membros da AGU”. Em suma, a opção legislativa foi conceder aos advogados da União o acesso aos laudos médico-periciais e, ao mesmo tempo, imputar-lhes a obrigação de sigilo sobre esses documentos, sob pena de responsabilidade pela violação ao Estatuto da Ordem dos Advogados e dos deveres do servidor público previstos na Lei nº 8.112/90.
É importante deixar claro, também, que a posição aqui adotada está em plena consonância com o art. 89 do Código de Ética Médica, que veda ao médico “liberar cópias do prontuário sob sua guarda, salvo quando autorizado, por escrito, pelo paciente, para atender ordem judicial ou para a sua própria defesa.” Note-se que o Código de Ética autoriza o médico a utilizar o prontuário médico para a sua própria defesa. Cabe definir o significado da expressão “para a sua própria defesa”.
Tem-se claro que a finalidade desse dispositivo não é autorizar o médico a utilizar o prontuário em uma ação de cobrança, imobiliária, tributária... Mostra-se evidente que o Código de Ética autoriza a utilização do prontuário para defesa do ato praticado no ofício de médico em relação àquele paciente, isto é, para demonstrar que a atuação do médico foi de acordo com o conhecimento e com os padrões exigidos pela ciência médica. Contudo, o médico-réu num processo não tem capacidade postulatória (de falar em juízo), o que exigirá que se contrate um advogado, o qual, necessariamente, terá que ter acesso a esse prontuário, sob o sigilo do Estatuto da Ordem dos Advogados, para realizar a defesa judicial.
Ora, se o Código de Ética Médica autoriza o uso do prontuário médico para defesa do ato praticado no ofício de médico, se o médico terá que contratar um advogado que terá acesso ao laudo, é corolário lógico que o Código de Ética Médica também autoriza o uso do laudo médico-pericial para que o advogado da União defenda a perícia administrativa em nome da União. Não há diferença teleológica entre essas duas situações.
Conclui-se, então, por força do art. 4º da Lei nº 9.028/95, que os advogados da União possuem autorização legal para ter acesso aos laudos médico-periciais, respondendo, no entanto, pela destinação que derem a esses documentos sigilosos.
b) O sigilo dos laudos em relação aos procuradores da República
A análise do caso em relação ao acesso aos laudos pelos procuradores da República não destoa muito daquela feita no que tange aos advogados da União. Há, sim, distinção no fundamento jurídico.
O Ministério Público Federal, do qual são membros os procuradores da República, é, nos termos do art. 127 da Constituição Federal de 1988, “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. Dentre as funções institucionais do Ministério Público (art. 129), a quem cabe promover privativamente a ação penal pública, está o poder de requisitar, na forma de lei complementar, informações e documentos para a instrução de procedimentos[3].
A Lei Complementar nº 75/1993, que dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União, prevê no art. 8º, caput e incisos, que para o exercício de suas atribuições, o Ministério Público da União poderá requisitar informações, exames, perícias e documentos de autoridades da Administração Pública direta ou indireta, e ter acesso incondicional a qualquer banco de dados de caráter público ou relativo a serviço de relevância pública.
Acrescente-se que o § 2º do art. 8º dispõe que nenhuma autoridade poderá opor ao Ministério Público, sob qualquer pretexto, a exceção de sigilo, sem prejuízo da subsistência do caráter sigiloso da informação, do registro, do dado ou do documento que lhe seja fornecido. Entretanto, esse poder sofre limitação pelo § 1º do mesmo artigo, ao prever que o membro do Ministério Público será civil e criminalmente responsável pelo uso indevido das informações e documentos que requisitar.
Dessa forma, a exemplo do que ocorre com os advogados da União, os procuradores da República também tem autorização legal de acesso aos laudos médico-periciais, respondendo igualmente pela destinação dada ao documento.
c) O sigilo dos laudos em relação aos delegados da Polícia Federal
No que diz respeito ao fornecimento de laudos médico-periciais aos delegados da Polícia Federal, a situação tem nuances diferenciadas.
Com efeito, ao contrário dos advogados da União e dos procuradores da República, os delegados da Polícia Federal não têm as suas atribuições previstas em estatuto próprio de carreira. A atuação deles está prevista no “Título II – Do Inquérito Policial”, do Decreto-Lei nº 3.689/1941, que instituiu o Código de Processo Penal.
Segundo o Código de Processo Penal, a polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria[4]. Assim que tiver conhecimento da ocorrência de infração penal, a autoridade policial deverá dirigir-se ao local do cometimento do fato, garantindo que não haja alteração da cena do crime até a chegada dos peritos criminais[5].
A lei garante à autoridade policial o poder de apreender objetos que tiverem relação com o fato, de colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do delito, de ouvir o ofendido e o indiciado, de proceder ao reconhecimento de pessoas e coisas, de realizar acareações, de determinar o exame de corpo de delito e a realização de perícias, de ordenar a identificação do indiciado por processo datiloscópico e de averiguar a vida pregressa do indiciado[6].
Porém, ainda que o Código de Processo Penal determine à autoridade policial a colheita de todas as provas que servirem para o esclarecimento do delito e que garanta o sigilo do inquérito policial, não se visualiza, dentre os poderes concedidos pela lei, autorização para que os delegados de Polícia tenham acesso diretamente a documentos sigilosos. É bem verdade que o munus da segurança pública é de interesse de toda a coletividade. Contudo, uma interpretação sistemática reclama a incidência do art. 13 da própria lei processual penal, que impõe à autoridade policial o dever de realizar diligências requisitadas pelo juiz ou pelo Ministério Público.
Nesse diapasão, como o inquérito tem por finalidade servir de base para o oferecimento de denúncia, ato privativo do Ministério Público, e esta instituição tem prerrogativa de requisitar documentos sigilosos, cabe à autoridade policial representar ao Ministério Público ou ao Poder Judiciário a solicitação de acesso aos laudos médicos da perícia oficial, pois eles enquadram-se nas várias situações em que a lei retira o poder da polícia agir diretamente, como, por exemplo, a quebra de sigilo telefônico e a quebra de sigilo fiscal.
III. Considerações finais
O ser humano naturalmente é vocacionado para a vida em sociedade. No entanto, esse sentido coletivo depende da manutenção da individualidade de cada pessoa, pois existem informações íntimas que podem causar prejuízo à imagem individual ou, simplesmente, não dizer respeito a toda coletividade. Essa é exatamente a situação dos laudos médico-periciais originados na perícia oficial para concessão de licença para tratamento de saúde (Lei nº 8.112/90), que, por força de lei, estão cobertos pelo sigilo.
O sigilo dos laudos médico-periciais, entretanto, não é absoluto. O acesso aos laudos médico-periciais pelo juiz, pelo advogado da União e pelo procurador da República é uma exceção ao sigilo médico prevista pelo ordenamento jurídico brasileiro, estando essas autoridades legalmente autorizadas a requisitá-los no exercício das suas atribuições.
[1] JARDIM, Rodrigo Guimarães. O alcance do sigilo dos laudos médicos na perícia oficial (LEI Nº 8.112/90). Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 13 abr. 2013. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.42926>. Acesso em: 02 mai. 2013.
[2] FERREIRA, Fabrizio Rodrigues. Da importância do sigilo profissional na advocacia. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3331, 14 ago. 2012 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/22409>. Acesso em: 02 mai. 2013.
[3] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 994/997.
[4] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de processo penal comentado, volume 1. 8.ed.rev., aum. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 29.
[5] Ibidem, p. 42.
[6] Ibidem, p. 42.
Procurador Federal. Chefe da Divisão de Patrimônio Imobiliário e Coordenador-Geral de Matéria Administrativa Substituto da Procuradoria Federal Especializada junto ao INSS, Direção Central em Brasília/DF. Especialista em Direito Público pela Universidade Potiguar (UnP). Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais - Direito - pela Universidade de Passo Fundo, RS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JARDIM, Rodrigo Guimarães. As autoridades legalmente autorizadas a excepcionar o sigilo do laudo médico nas perícias oficiais (Lei nº 8.112/90) Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 maio 2013, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/34988/as-autoridades-legalmente-autorizadas-a-excepcionar-o-sigilo-do-laudo-medico-nas-pericias-oficiais-lei-no-8-112-90. Acesso em: 22 nov 2024.
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