A doutrina administrativista trata do poder-dever de a própria Administração exercer o controle de seus atos, no que se denomina autotutela administrativa ou princípio da autotutela.
No exercício deste poder-dever, a Administração, atuando por provocação do particular ou de ofício, reaprecia os atos produzidos em seu âmbito, análise esta que pode incidir sobre a legalidade do ato ou quanto ao seu mérito.
Na primeira hipótese - análise do ato quanto à sua legalidade - a decisão administrativa pode ser no sentido de sua conformidade com a ordem jurídica, caso em que terá o ato sua validade confirmada; ou pela sua desconformidade, caso em que o ato será anulado. O princípio da autotutela encontra-se contemplado na Súmula nº 473 do STF, nos seguintes termos:
A Administração pode anular seus próprios atos quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em qualquer caso, a apreciação judicial.
O art. 65, §8º, da Lei nº 8.666/93 disciplina que “a variação do valor contratual para fazer face ao reajuste de preços previsto no próprio contrato, as atualizações, compensações ou penalizações financeiras decorrentes das condições de pagamento nele previstas, bem como o empenho de dotações orçamentárias suplementares até o limite do seu valor corrigido, não caracterizam alteração do mesmo, podendo ser registrados por simples apostila, dispensando a celebração de aditamento.”
O art. 58 da Lei nº 8.666/93, por sua vez, confere à Administração, na gerência dos contratos administrativos, algumas prerrogativas que lhe são próprias, distinguindo-os dos contratos privados. As prerrogativas do Poder Público são peculiaridades presentes, sejam elas explícitas ou implícitas, em todo o contrato administrativo e decorrem de lei ou de princípios próprios ao Direito Público que regem a atividade administrativa.
As cláusulas exorbitantes refletem-se por meio de diversas prerrogativas da Administração, sendo exemplo de algumas delas: possibilidade de alteração e rescisão unilateral do contrato, revisão de preços e tarifas, impossibilidade de exceção de contrato não cumprido, controle do contrato e aplicação de penalidades contratuais.
Assim, ao se verificar hipótese de pagamento a maior, fruto de verificação de sobrepreço ou superfaturamento, identificado pelo setor técnico interno do Pode Público, é possível, em tese, a redução do valor, por expressa autorização legal e embasamento nos princípios administrativos da legalidade, moralidade e eficiência, não necessitando que se aguarde nova prorrogação contratual, já que não se trata de mera negociação de valores, mas sim de pagamento a maior devidamente identificado pela Administração, o que acarreta uma ilegalidade e, portanto, permite a aplicação do poder-dever da Administração de zelar pelo patrimônio público (autotutela).
A Administração detém o poder-dever de fiscalizar, orientar, interditar, intervir e aplicar penalidades. Tais situações já foram objeto de acórdãos do Tribunal de Contas da União, nos quais se determinou que os administradores adotassem providências ao identificarem sobrepreço, porquanto se comprovado esse efeito nefasto, imprescindível a repactuação dos preços com a empresa vencedora de acordo, sob pena de anulação do contrato. Vejamos:
[...] 7.25. Situações semelhantes já foram julgadas por este Tribunal, tendo sido identificados superfaturamentos na execução de contratos, advindos de aditamentos realizados ou de sobrepreço identificado nos editais que os precederam. Há casos também de verificação de sobrepreço em editais, antes da assinatura do respectivo contrato, quando da realização de análise dos custos por este Tribunal.
7.26. Nesse contexto, o TCU por diversas vezes determinou a repactuação/renegociação das condições do contrato ou da proposta da empresa vencedora, sob pena de anulação do contrato ou do certame licitatório, como nos TC 006.821/2002-8 (Acórdão 1600/2003-P); 003.193/2002-5 (Acórdão 244/2003-P); 003.719/2001-2 (Decisão 417/2002-P) e; 008.581/2007-0 (Acórdão 2288/2007-P). (...)
7.27. Para concluir essa questão, percebe-se que o fato de o objeto já ter sido adjudicado à empresa vencedora não é óbice à repactuação dos preços, caso haja necessidade, já tendo sido determinada por esta Corte até mesmo a renegociação de contratos já assinados. Nesses casos deve prevalecer o interesse público sobre o privado, materializado na possibilidade de adequação dos preços dos serviços, ainda a serem executados, àqueles praticados no mercado, evitando-se dano ao erário.” (Acórdão 3033/2009, Plenário, Relator Ministro Benjamin Zymler) – grifo nosso
Os Tribunais pátrios também já se manifestaram no sentido de ser um “imperativo da Administração, em estrito cumprimento de dever legal”, adotar providências imediatas no sentido de “infirmar os indícios de preço excessivo”, “[...] reduzindo-o à escala de custos formadores de seus montantes e à exata correspondência com a prestação executada”.[1]
Pode-se citar também, por analogia, a Orientação Normativa nº 65 da Consultoria Jurídica da União de Minas Gerais, editada em 13/10/2010, a qual entendeu que, no caso de pagamento indevido pela Administração de tributos ou outros encargos legais, é cabível a glosa do pagamento indevido, vejamos:
“Contrato administrativo. Glosa de rubricas contratuais previstas em contrariedade à lei. Necessidade de devolução da quantia indevidamente recebida pelo contratado. Procedimento cabível. Art. 65, § 5º, da Lei nº 8.666/93. Devido processo legal.
Há pagamento indevido pela Administração ao contratado, quanto a tributos ou outros encargos legais, nas seguintes hipóteses:
- Ausência de previsão legal de encargo ou tributo cobrado pela contratada;
- Não incidência do encargo/tributo cobrado sobre o objeto da contratação;
- Pagamento pela Administração de despesa com encargo legal/tributo em valor superior ao legalmente devido.
Em qualquer dessas situações, é cabível a glosa do pagamento indevido por ato unilateral da Administração Pública, mediante a aplicação do art. 65, § 5º, da Lei nº 8.666/93, respeitado o contraditório e a ampla defesa, através do seguinte procedimento:
1 - Contrato vigente:
1.1 Calcule os valores pagos indevidamente;
1.2 Notifique o contratado para que tome ciência do desconto a ser efetuado nas próximas faturas, fixando-lhe prazo para manifestação, podendo produzir ou requerer a produção de provas de seu interesse;
1.3 Havendo necessidade de instrução probatória, por iniciativa da Administração ou do Contratado, os atos de instrução deverão ser objeto de ciência/oportunidade/consideração, e, ao final, deve-se abrir prazo de 10 dias para que o Contratado manifeste-se a respeito de todo o processo;
Profira juízo decisório;
1.4 Caso o contratado expresse sua aceitação, não apresente impugnação, ou a Administração considere-a, motivadamente, improcedente, proceda à compensação dos valores apurados com as faturas vincendas;
1.5 Altere o contrato por meio de termo aditivo, a fim de expurgar as rubricas indevidamente previstas na planilha de custos;
Considerados procedentes os motivos do contratado, não proceda à glosa.
2 - Contrato extinto:
2.1. Calcule os valores pagos indevidamente;
2.2 Notifique o contratado para que tome ciência, fixando-lhe prazo para manifestação, podendo produzir ou requerer a produção de provas de seu interesse, além de informar-lhe: que a garantia contratual será executada ou, inexistindo-a, estabelecendo prazo para que o contratado devolva os valores para a Administração;
2.3 Havendo necessidade de instrução probatória, por iniciativa da Administração ou do Contratado, os atos de instrução deverão ser objeto de ciência/oportunidade/consideração, e, ao final, deve-se abrir prazo de 10 dias para que o Contratado manifeste-se a respeito de todo o processo;
2.4. Profira juízo decisório;
2.5.1 Caso se entenda pela necessidade de ressarcimento e o contratado expresse sua aceitação, não apresente impugnação, ou a Administração considere-a, motivadamente, improcedente, proceda a execução da garantia ou aguarde o transcurso do prazo de devolução fixado;
2.5.2 Considerados procedentes os motivos do contratado, não proceda à execução da garantia ou desconstitua o prazo estabelecido;
2.6 Caso o contratado se recuse a ressarcir a Administração e esgotadas todas as medidas administrativas internas que objetivem o ressarcimento (art. 3º, § 1º, da IN/TCU n.º 56/2007), há de se instaurar a devida TCE.
Fundamentos:
- Julgados do TCU: Decisão 640/2001 - Plenário; Acórdão nº 606/2008 - Plenário; Acórdão nº 583/2003 - Plenário; Acórdão n° 353/2008 - Plenário; Acórdão nº 3.663/2007- 1ª Câmara; e, Acórdão 1.090/2006 - Plenário.
- Parecer Nº AGU/CGU/NAJ/MG-1.432/2008-MACV.
- Art. 65, § 5º, da Lei nº 8.666/93.”
GUILHERME SALGADO LAGE
Coordenador-Geral da Consultoria Jurídica da União em Minas Gerais
Por fim, ressalte-se, porém, ser indispensável a observância do contraditório e da ampla defesa, em processo administrativo, de modo que a autoridade competente do órgão possa concluir pela ocorrência ou não do sobrepreço ou superfaturamento e quais as providências que serão adotadas. Salientando a importância do contraditório e ampla defesa para a regularidade de procedimentos dessa natureza é o seguinte precedente do TCU:
17. Considerando que o TCU não pode ter afastada sua missão constitucional de controle por conta, unicamente, da sistemática não usual utilizada pela Petrobras, que inviabiliza a transparência da licitação, instala-se a colisão de princípios constitucionais que passo a abordar nos itens seguintes. Esse conflito põe, de um lado, o interesse da Petrobras em não ter seus supostos dados sigilosos e confidenciais disponibilizados a terceiros, e, de outro, em antagonismo, a necessidade dos consórcios contratados pela embargante de exercerem o contraditório e a ampla defesa, ante a existência de contratos nos quais foi apontado sobrepreço por parte da Corte de Contas, o que demanda acesso aos cálculos preparados pela unidade técnica deste Tribunal.
18. Tem-se, portanto, a opção de afastamento do princípio da publicidade (art. 5º, inciso LX, da Constituição Federal – CF: ‘a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem;’ [grifo nosso] e caput do art. 37 da CF: ‘A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...)’ [grifo nosso]), defendida pela Petrobras, e, em contraposição, a de observância dos princípios do contraditório e da ampla defesa (cf. art. 5º, inciso LV, da CF: ‘aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;’ [grifo nosso]), para que os consórcios contratados pela referida companhia possam exercer sua defesa nestes autos.
19. Conforme lição de doutrinadores do Direito Constitucional (a exemplo de Paulo Bonavides e Luís Roberto Barroso), a colisão de princípios constitucionais resolve-se na esfera da ponderação de valores. Embora, nestes embargos de declaração, não se tenha uma colisão propriamente dita – visto que o princípio da publicidade deveria ser afastado, e não aplicado, na ótica da Petrobras – a referida teoria da ponderação de princípios constitucionais auxilia o deslinde da questão posta ao TCU neste recurso.
20. No caso sob exame, devem prevalecer os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, pois, caso isso não ocorresse, o devido processo legal (art. 5º, LIV, CF) também restaria comprometido, considerando que o TCU não poderia prosseguir com a presente fiscalização, por meio de determinações de glosas e repactuações contratuais, por exemplo, caso confirmado o sobrepreço, sem que houvesse a prévia manifestação dos consórcios contratados acerca dessa irregularidade.” (destaquei)
(Plenário, Processo TC 015.944/2011-5, Relator Ministro AUGUSTO SHERMAN CAVALCANTI).
Portanto, é plenamente possível ao Poder Público, por intermédio do seu setor técnico, aferir se de fato há a irregularidade e, identificada esta, submeter a situação à autoridade superior para que esta, diante das peculiaridades do caso concreto, conclua pela eventual irregularidade e necessidade de redução do valor.
Nessa hipótese, dever-se-á assegurar a tentativa de renegociação dos valores com a contratada, visando reduzir de forma amigável a parcela indevida decorrente do superfaturamento. Caso não seja possível, após assegurar o devido contraditório e a ampla defesa à contratada e sendo, ao final, mantida a decisão da autoridade superior, poder-se-á efetuar a adequação dos valores por meio de repactuação, a fim de adequar as rubricas indevidamente previstas na planilha de custos, conforme o entendimento do TCU acima exposto.
FONTE DE PESQUISA
FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2012.
FURTADO, Lucas Rocha. Curso de licitações e contratos administrativos. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2012.
FILHO, Marçal Justen. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. São Paulo: Dialética, 2009.
SOUTO, Marcos Juruena Vilela. Licitações e contratos administrativos. Rio de Janeiro: Esplanada, 2000.
SANTOS, Márcia Walquiria Batista dos. Temas Polêmicos sobre licitações e contratos. São Paulo: Malheiros, 1995.
MILESKI, Helio Saul. O controle da gestão externa. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2011.
CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de direito administrativo. Salvador: Editora Juspodivm, 2009.
BRASIL. Pesquisa de jurisprudência por assuntos. Disponível em https://contas.tcu.gov.br/pls/apex/f?p=175:6.
BRASIL. Pesquisa de jurisprudência unificada. Disponível em http://www.jf.jus.br/juris/unificada/.
BRASIL. Pesquisa de orientação normativa. Disponível em http://www.agu.gov.br/sistemas/site/PaginasInternas/NormasInternas/ListarAtos.aspx?TIPO_FILTRO=Orientacao
[1] Tribunal Regional Federal da 5a Região, Processo 2008.81.00.013746-2, Relator Des. Lázaro Rodrigues, julgado em 23/11/10, disponível na pesquisa jurisprudencial do sítio do Conselho da Justiça Federal.
Advogada da União, lotada na Procuradoria da União em MT, (ex-procuradora do município de Natal).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PAIVA, Marianne Cury. Possibilidade de redução de valores identificados como irregulares na planilha de custo no curso da execução do contrato administrativo pelo poder público Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 maio 2013, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/35006/possibilidade-de-reducao-de-valores-identificados-como-irregulares-na-planilha-de-custo-no-curso-da-execucao-do-contrato-administrativo-pelo-poder-publico. Acesso em: 22 nov 2024.
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