1. Introdução
O Estado Brasileiro é notadamente prestacional, pois a ele compete promover e implementar uma multiplicidade de ações, serviços e programas das mais diversas modalidades, com o intuito de atender as reivindicações e de promover a materialização de uma ordem social mais justa. Tal conjunto de ações ou medidas praticadas pelo Estado com a finalidade de dar efetividade, em regra, aos direitos fundamentais, recebe o nome de políticas públicas.
Todavia, essa atuação estatal, algumas vezes insuficiente, tem sido questionada, cabendo ao Judiciário dar respostas à população que anseia a concretização dos seus direitos mínimos fundamentais.
É recente, no Brasil, a discussão a respeito do controle judicial de políticas públicas, não havendo consenso entre os juristas, administradores e estudiosos da matéria.
O presente estudo consiste em uma análise da inversão de papéis nessa tendência de se atribuir ao Judiciário a tarefa de elaborar e implementar políticas públicas, função típica e, já se adianta, melhor desenvolvida pelo Executivo.
Inicia-se o artigo com a tentativa de conceituar políticas públicas e definir os vários papéis exercidos pelo Estado, que se divide em três Poderes: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário.
Na sequênciaterá vez o princípio da separação dos poderes, um dos responsáveis pela manutenção do regime democrático.
Essas breves linhas não apresentam qualquer pretensão de completude, pois o tema é vasto e apto a suscitar muitos questionamentos, sob os mais variados aspectos. Seu propósitono entantoé contribuir para a discussão, cada vez mais apaixonante entre os que se dedicam ao assunto.
2. Conceito de Políticas públicas. Papel do Estado.
Não é tarefa simples a de precisar um conceito de políticas públicas, por isso, será utilizado nesse estudo o conceito da professora Maria Paula Dallari Bucci, considerado um dos mais completos pelos estudiosos do assunto, vejamos.
“Política pública é o programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados – processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial – visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. Como tipo ideal, a política pública deve visar à realização de objetivos definidos, expressando a seleção de prioridades, a reserva de meios necessários à sua consecução e o intervalo de tempo em que se espera o atingimento de resultados.[1]”
Interessante ressaltar que, em regra, as políticas públicas se destinam à efetivação dos direitos fundamentais, uma vez que pouco vale o mero reconhecimento formal desses direitos, se não houver instrumentos para efetivá-los.
Disso se extrai a importância que as políticas públicas possuem no atual contexto constitucionalista, que expandiu o reconhecimento de direitos e que pretende normatizar adequadamente as relações sociais por meio de um Estado promocional na materialização de uma ordem social mais justa.
A idéia de política pública também propicia o efetivo exercício da cidadania, pois exige a participação popular na tomada de decisão política, que recebeu ampla referência na Carta Constitucional de 1988, possibilitando assim uma interação entre a sociedade civil e o Poder Público, tanto no sentido de cooperação, como no planejamento, monitoramento e na avaliação das políticas executadas pelo Estado. “Nesses casos, como em tantos outros, a adesão da sociedade, quando não a atuação ativa desta, é fundamental para a eficiência da atuação administrativa”[2].
Impõe-se logo, ressaltar, que a formulação, o planejamento e a execução de políticas sociais, jurídicas e politicamente bem articuladas para o fim da satisfação dos direitos econômicos, sociais e culturais cabem, em regra, ao Poder Executivo, dentro de marcos definidos pelo Poder Legislativo.
Com efeito, desde já se defende a atuação do Poder Executivo para implementação de políticas públicas, pois se entende ser este Poder o que opera com as ferramentas e informações mais adequadas, numerosas e mais complexas, para dar início, ajustar, modificar ou interromper programas de governo.
Enfim, a política pública é expressão de um programa de ação governamental, com grande relevo para a discricionariedade administrativa, mas que deve observar as diretrizes constitucionais pré-estabelecidas.
Cumpre, no entanto, ressaltar que várias questões ligadas à atuação estatal e a implementação das políticas públicas estão desaguando no Poder Judiciário, como já dito, que tem se visto sobrecarregado de demandas judiciais questionando a concretização dos “direitos” projetados pelo conteúdo programático da Constituição.
Nesse contexto, é evidente que o Judiciário assume a função especial de guardião da Constituição, todavia, não podemos deixar de registrar que o excesso de expectativas políticas sobrecarregando o Direito e refletindo nas decisões judiciais, na verdade, reflete um momento de crise social e aparente conflito entre os Poderes.
Ademais, registra Ingeborg Maus[3], criticando essa transferência de funções entre os Poderes, que “a eliminação de discussões e procedimentos no processo de construção política do consenso (...) é alcançada por meio da centralização da ‘consciência’ social na Justiça. (...) Quando a justiça ascende ela própria à condição de mais alta instância moral da sociedade, passa a escapar de qualquer mecanismos de controle social.[4]”
Dessa forma, além da sociedade perder a possibilidade de interagir com o Poder Público na construção da política, também perde a capacidade de controlar, monitorar e avaliar as políticas executadas pelo Judiciário.
Por fim, vale registrar ainda que a exigência da concretização dos direitos por meio de políticas públicas faz parte atualmente do que se denomina de terceira onda renovatória, traduzida numa nova abordagem que procura destacar os direitos da coletividade, utilizando-se de meios/ações que exigem uma atuação positiva do Estado, por meio do Judiciário, que, além de garantir, proclama os direitos de todos. Essa terceira onda tem por finalidade modernizar os instrumentos processuais, dando maior efetividade ao processo, especialmente quando se está diante de ações coletivas.
Num breve parêntese, as ondas renovatórias foram desenvolvidas por Mauro Cappelletti e estão elencadas em sua obra “Acesso à Justiça”[5]. Referido autor vislumbrou três momentos distintos: a primeira onda renovatória, em que se procura garantir os direitos individuais – aqui se estuda especialmente a assistência judiciária aos mais carentes; a segunda onda, em que se reconhece os direitos metaindividuais (difusos, coletivos e individuais homogêneos) e se discute a representação desses direitos; e, por fim, a terceira onda, em que se discute os meios e as ações que podem ser utilizadas de forma articulada para a concretização dos direitos metaindividuais, numa tentativa de enfrentar todas as barreiras que impedem o efetivo acesso à justiça e à cidadania plena.
3. O princípio da Separação dos Poderes e o regime democrático.
A discussão sobre os limites da intervenção judicial e a discricionariedade administrativa alcança o debate acerca do conteúdo contemporâneo da democracia.
Celso Fernandes Campilongo[6] desenvolve o assunto partindo da construção de dois sistemas, o político e o jurídico, entendendo que é necessário que se mantenha a diferenciação entre esses dois sistemas, para que se compreenda o papel da política e da justiça, e se preserve o regime democrático.
Campilongo afirma que a política tem por função tomar decisões coletivamente vinculantes. Afirma ainda que o sistema político para se tornar compatível com o ambiente precisa manter certo grau de complexidade, pois só assim se caracterizará como um regime democrático, onde se observam as garantias da minoria, a autolimitação do poder, alternância entre governo e oposição, a periodicidade das eleições, a reversibilidade das decisões. Em suma, a possibilidade constante de escolhas, além da reversibilidade de decisões e a renovação de temas servem como pressupostos para a democracia.
Por outro lado, o sistema jurídico se caracteriza como um sistema de normas, princípios, valores e decisões judiciais que se conectam entre si. A regra desse sistema é manter expectativas normativas especificas, enquanto que a regra do sistema político é produzir agregações majoritárias.
Apesar de sistemas fechados, há uma dupla interdependência entre os dois sistemas, pois enquanto o político apresenta ao jurídico as premissas para as decisões judiciais, o sistema jurídico, em contrapartida, oferece ao político as premissas para o emprego da força. Por outro lado, o sistema jurídico recebe as leis como a direção, o apoio e a proteção que facilitam a decisão judicial, tornando o sistema operacional, mas também se vê por elas limitado. Já o sistema político se utiliza do jurídico para dar legitimidade à sua atuação além de delegar algumas funções, como a de impor sanções.
Dessa forma, a interdependência legitima a atuação dos dois sistemas, mas cada um deles deve operar de forma a não transcender o plano de operações internas, onde o direito produz direito e a política produz política.
Quando, entretanto, o juiz atua de forma política, os sistemas passam a se identificar e a tomar decisões coletivamente vinculantes, participar do processo de alocação de recursos e utilizar procedimentos decisórios similares, perdendo sentido qualquer diferenciação entre os dois sistemas.
Ademais, o Legislativo/Executivo estão submetidos a critérios de justificação/legitimidade de atuação completamente distintos daqueles a que o juiz se submete. Enquanto os primeiros tratam de decisões globais e por isso prestam contas de suas opções ao eleitorado e a opinião pública, o juiz analisa o caso concreto, encontrando a consistência de sua decisão nas provas apresentadas, nos argumentos processados e no ordenamento jurídico. A atuação do juiz é casuística, limitada a lide proposta pelas partes e não com referência a totalidade de relações entre o público, o político e o administrativo.
Tudo o que foi dito até agora só reforça a idéia de que é preciso observar o princípio da separação de poderes, pois só assim se preservará a democracia e o sistema representativo, onde cada Poder possui funções distintas, mas que se relacionam e se controlam mutuamente, e a população a prerrogativa de promover o controle político, pela via eleitoral ou pelo exercício legitimo da pressão em face dos representantes eleitos pelo sistema democrático e republicano.
Por fim, registre-se ainda a possibilidade do controle social da atuação do Estado, dependendo o êxito das políticas públicas não somente de ações da Administração, mas também de um consenso mínimo da sociedade em torno das decisões políticas, criando-se dessa forma as bases para o nascimento de uma legitimidade fruto da adesão da sociedade a um conjunto de medidas concretas que a própria sociedade ajudou a formular e executar.
4. Conclusão
É consenso que cabe a Administração (ou aos Poderes Executivo, com o apoio e ratificação do Legislativo) escolher as prioridades que serão implementadas por meio de políticas públicas, sendo atribuição do Poder Judiciário a revisão (e não a substituição) dos atos praticados pelos demais Poderes.
Entretanto, quando as decisões políticas afetam a concretização dos direitos fundamentais, é cada vez mais frequente o Judiciário intervir na atuação estatal com o intuito de viabilizar políticas que venham cumprir a Lei Fundamental do Estado.
É verdade que é tênue a linha que distingue a formulação e execução de políticas públicas, até porque, quando se recorre ao Judiciário, alega-se que os insucessos da execução são consequências de um plano mal formulado.
Entretanto, para o cumprimento desse novo mister é indispensável que o Judiciário vislumbre no princípio da separação dos poderes, em especial, um limite de atuação, pois está dentre suas atribuições controlar os demais Poderes, e não substituí-los em suas funções.
É o administrador quem deve eleger o conteúdo, a extensão e o momento da implantação de um programa público, possuindo ainda competência privativa para encaminhar propostas orçamentárias e materializar as políticas escolhidas para serem executadas. Já o Judiciário não pode se afastar do Direito – que possui um plano racional-jurídico baseado em princípios e normas -, de modo que ao resolver o caso concreto utilizando-se de argumentos de procedimento político-econômico, está na verdade contribuindo para a não preservação dos sistemas jurídico e político e do regime democrático.
5. Bibliografia consultada.
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CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, Sistema jurídico e Decisão Judicial.São Paulo: Max Limonad, 2002.
CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à justiça. Tradução: Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988. Reimpressão 2002.
FREIRE JUNIOR, Américo Bedê. O controle judicial de políticas públicas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na sociedade órfã. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.58, p. 186-187.
PEREZ, Marcos Augusto. A participação da sociedade na formulação, decisão e execução das políticas públicas. In: BUCCI, Maria Paula Dallari (Org.).Políticas Públicas Reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006.
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[1] BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em direito. In: Políticas Públicas Reflexões sobre o conceito jurídico. BUCCI, Maria Paula Dallari (Org.).. São Paulo: Saraiva, 2006. p.39.
[2] PEREZ, Marcos Augusto.A participação da sociedade na formulação, decisão e execução das políticas públicas. In: Políticas Públicas Reflexões sobre o conceito jurídico. BUCCI, Maria Paula Dallari (Org.). São Paulo: Saraiva, 2006, p. 167.
[3]BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Ingeborg Maus e o Judiciário como superego da sociedade. R. CEJ, Brasília, n.30, p. 10-12, jul/set.2005. Nesse texto, o autor traça breve reconstrução de algumas das críticas que a jurista alemã Ingeborg Maus faz a respeito da Corte Constitucional da Alemanha (e do Judiciário como um todo), mostrando os perigos da adoção irrestrita da jurisprudência dos valores.
[4]BAHIA, op.cit., p. 12
[5] CAPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre, Fabris, 1988.
[6]CAMPILONGO, op.cit., p. 15-183.
Formada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte; Especialista em Direito Público pela Universidade de Brasília - UNB e em Direito Processual Civil pelo Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP. Procuradora Federal desde 2004.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Helena Dias Leão. O controle judicial na execução de políticas públicas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 jun 2013, 07:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/35532/o-controle-judicial-na-execucao-de-politicas-publicas. Acesso em: 22 nov 2024.
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