INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 estabelece em seu artigo 37 os princípios que devem nortear a Administração Pública, entre eles estão a impessoalidade e a moralidade. Como forma de garantia desses princípios, tem-se que os atos administrativos devem ser motivados.
Embora seja cristalina a exigência de motivação para a Administração direta, doutrina e jurisprudência divergiam no que concerne às empresas estatais, apesar de a Constituição ser expressa quanto à aplicação dos princípios contidos no artigo 37 às entidades da Administração indireta. Nesse contexto, alguns defendiam que a demissão dos empregados públicos poderia ser imotivada.
Esse cenário, contudo, foi alterado em 2010 com a decisão do Supremo Tribunal Federal no RE 589998/PI, que estabeleceu os fundamentos da motivação para os atos da Administração indireta. São eles que seguem a seguir delineados.
O DEVER DE MOTIVAÇÃO NA DEMISSÃO DO EMPREGADO PÚBLICO
Empregado público é uma espécie de agente público que não pode ser confundido com servidor público. Embora ambos sejam concursados, assegurando a isonomia e a impessoalidade na contratação, o empregado público é regido pela CLT – Consolidação das Leis do Trabalho (celetista público), ocupa emprego público e não adquire estabilidade; já o servidor é estatutário (regido por um Estatuto – Lei), ocupa cargo público e adquire estabilidade após 03 (três) anos de efetivo exercício.
A Constituição Federal determina, em seu artigo 37, que tanto a Administração direta quanto a indireta devem observar os princípios ali expostos. Desse modo, assim como os órgãos da Administração direta, as empresas públicas e sociedades de economia mista, entidades integrantes da Administração indireta, estão submetidas ao regime jurídico-administrativo, fundado na supremacia do interesse público sobre o privado.
Releva notar que a submissão das entidades da Administração indireta ao regime celetista possibilita a dispensa imotivada. Entretanto, embora não seja pacífico na doutrina e jurisprudência pátria a necessidade de motivação do ato demissional do empregado público, é de se ressaltar que, consoante Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio da motivação tem como fundamento implícito, o art. 1º, II, da Constituição, que “indica a cidadania como um dos fundamentos da República”.[1]
Submetidas que estão, ao menos em parte, ao regime jurídico-administrativo, às empresas públicas e sociedades de economia mista se aplicam, também, a teoria dos motivos determinantes, segundo a qual a motivação faz parte do ato administrativo e, uma vez declarado o motivo, deve ser respeitado, o que possibilita o controle do ato.
Nesse sentido, leciona Cláudio Dias Lima Filho (2010, p. 70) ao citar Claus Wilhelm Canaris:
“A motivação da dispensa do empregado estatal — de qualquer das entidades pertencentes à Administração Pública — é, portanto, a partir de uma visão sistemática do arcabouço normativo constitucional, uma conclusão que se impõe, a partir da adoção dessa “mesma premissa” da aplicação indistinta e ampla do art. 37 da Constituição às pessoas jurídicas mencionadas no art. 173. A diferença em relação à hipótese do concurso público é que a motivação da dispensa não está expressamente mencionada no art. 37, embora ela decorra insofismavelmente dos princípios da Administração Pública mencionados nesse dispositivo. E se esses princípios são extensíveis a todos os entes da Administração Pública, nada mais adequado do que interpretar a Constituição, nesse aspecto, imbuído da noção de que os empregados das empresas públicas e sociedades de economia mista são regidos pelos mesmos preceitos aplicáveis aos empregadores privados comuns, mas com derrogações constitucionais inafastáveis, como a admissão de pessoal por concurso público e a dispensa com motivação expressa, em atendimento aos princípios constitucionais direcionados à Administração Pública”.
Assim, do mesmo modo que os princípios constitucionais devem ser observados na contratação dos empregados públicos, é mister observá-los, também, no que tange à demissão.Logo, não se pode demitir um empregado público sem motivação, já que a demissão é um ato administrativo vinculado e, como tal, tem todos os seus requisitos autorizadores previstos em lei.
É que, se assim não fosse, a Administração Pública estaria concedendo aos administradores a discricionariedade de demitir o empregado em razão de critérios absolutamente pessoais, fundados em gostos pessoais, ideologias partidárias ou qualquer outro motivo de foro intimo, o que se mostra absolutamente descabido e ilegal por violar, entre outros, os princípios da moralidade, impessoalidade e razoabilidade.
Assim como no âmbito da administração direta, para apurar as faltas de seus empregados e puni-los, a Administração Pública deve fazer uso do processo administrativo, conforme expressa previsão no Art. 5°, LV e LXXVIII da Constituição Federal.
Desse modo, para haver a dispensa é preciso uma decisão motivada e, para isso,é necessário que tenha havido um processo regular, com direito à defesa, para apuração da falta cometida ou da inadequação do servidor às atividades que lhe concernem.A ele é, ainda, assegurado formular alegações e apresentar documentos.
Não realizado processo administrativo disciplinar para apuração da falta com a observância do direito de defesa e de todas as formalidades necessárias e não sendo o ato de demissão devidamente motivado, ele é nulo e ao empregado público é assegurada a reintegração ao emprego.
A reintegração presta-se a convalidar o direito do trabalhador a voltar ao trabalho, como meio de reparar o dano sofrido, mormente quando este emprego continua sendo imprescindível como meio de manutenção de seu sustento e de sua família.
Quando a reintegração ao trabalho não é realizada e nenhuma providência é tomada pela entidade da administração, esta deverá responder pelo ressarcimento e garantir todas as vantagens e direitos que o empregado público deveria ter percebido durante o período de inexecução contratual, como se a relação de emprego não tivesse sido paralisada.
Veja a jurisprudência consolidada sobre o tema:
“Irreparável a decisão que analisou o mérito da matéria”, disse o relator do recurso, Ministro Carlos Alberto Reis de Paula. Por se tratar de administração pública, o município submete-se aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Assim, ressaltou, “embora o empregado não seja estável, a demissão apenas é possível por ato motivado, demonstrado que o empregado não é apto para o cargo em que foi aprovado, após prévia avaliação do desempenho funcional do mesmo.”
De acordo com o relator, o ato de dispensa deve apontar as razões da exoneração ou, então, os motivos objetivos de ordem administrativa, como restrição orçamentária ou, extinção do cargo, que a justifiquem. O Ministro negou conhecimento ao recurso porque este foi fundamentado na violação ao art.41 da Constituição Federal que prevê estabilidade ao servidor depois de três anos de estágio probatório. O TRT, entretanto, não se fundamentou na estabilidade nele prevista, mas na necessidade de motivação do ato de dispensa do servidor concursado, disse o relator.(RR1221/2000).Reportagem publicada no sítio eletrônico <http//: www.interessejuridico.com.br>no dia 16/11/2005.
EMPREGADO DE SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA NÃO PODE SOFRER DISPENSA IMOTIVADA.
De acordo com o juiz redator, o empregado de sociedade de economia mista, mesmo sendo aprovado em concurso público, não tem direito à estabilidade prevista no art.41 da Constituição. Mas frisou que a Reclamada não pode dispensar, “a seu bel prazer”, um empregado que ingressa regularmente na empresa.”caso contrário, poderia o administrador público inverter a ordem de classificação do certame, contratando e dispensando empregados, sucessivamente, até se chegar àquele em que tivesse interesse pessoal na admissão, o que, certamente, violaria os princípios da motivação, impessoalidade e moralidade administrativas” – ressaltou.
A turma considerou que, assim como qualquer empresa pública, a sociedade de economia mista deve se pautar pelos princípios que norteiam a Administração Pública, como os da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência administrativa, mencionados no caput do art.37 da Constituição Federal. Assim, o reclamante só poderia ser dispensado por ato devidamente motivado, o que não ficou provado nos autos. Com a declaração de nulidade da dispensa, foi determinada a reintegração do reclamante no emprego, que receberá a remuneração a que teria direito por todo período de afastamento. (RO nº 02716-2005-131-03-00-4). Reportagem publicada no sítio eletrônico <http//: www.interessejuridico.com.br> nodia 12/12/2006.
O Supremo Tribunal Federal tem se debruçado sobre o assunto e de modo brilhante o Ministro Ricardo Lewandowski proferiu o recente voto[2], o qual versa sobre o tema em discussão.Confira, a seguir, os principais trechos do voto:
O Tribunal iniciou julgamento de recurso extraordinário interposto pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos - ECT contra acórdão do Tribunal Superior do Trabalho - TST em que se discute se a recorrente tem, ou não, o dever de motivar formalmente o ato de dispensa de seus empregados. Na espécie, o TST reputara inválida a despedida de empregado da recorrente, ao fundamento de que “a validade do ato de despedida do empregado da ECT está condicionada à motivação, visto que a empresa goza das garantias atribuídas à Fazenda Pública.” A recorrente, em síntese, aponta contrariedade aos artigos 41 e 173, § 1º, da CF, haja vista que a deliberação a respeito das demissões sem justa causa é direito potestativo da empresa, interferindo o acórdão recorrido na liberdade existente no direito trabalhista, por incidir no direito das partes pactuarem livremente entre si. Sustenta, ainda, que o fato de a recorrente possuir privilégios conferidos à Fazenda Pública — impenhorabilidade dos seus bens, pagamento por precatório e algumas prerrogativas processuais —, não tem o condão de dar aos empregados da ECT o benefício da despedida motivada e a estabilidade para garantir reintegração no emprego.
O Min. Ricardo Lewandowski, relator, negou provimento ao recurso. [...] Asseverou, em passo seguinte, que o dever de motivar o ato de despedida de empregados estatais, admitidos por concurso, aplicar-se-ia não apenas à ECT, mas a todas as empresas públicas e sociedades de economia mista que prestam serviços públicos, em razão de não estarem alcançadas pelas disposições do art. 173, § 1º, da CF, na linha de precedentes do Tribunal. Observou que, embora a rigor, as denominadas empresas estatais ostentarem a natureza jurídica de direito privado, elas se submeteriam a regime híbrido, ou seja, sujeitar-se-iam a um conjunto de limitações que teriam por escopo a realização do interesse público. Assim, no caso dessas entidades, dar-se-ia uma derrogação parcial das normas de direito privado em favor de certas regras de direito público.
[...] Ao afastar a alegação de que os dirigentes de empresas públicas e sociedades de economia mista poderiam dispensar seu pessoal no uso do seu direito potestativo de resilição unilateral do pacto laboral, independentemente de motivação, relembrou que o regime jurídico das empresas estatais não coincidiria, de forma integral, com o das empresas privadas, em face das aludidas restrições, quando fossem exclusiva ou preponderantemente prestadoras de serviços públicos. Ressaltou que o fato de a CLT não prever realização de concurso para a contratação de pessoal destinado a integrar o quadro de empregados das referidas empresas, significaria existir uma mitigação do ordenamento jurídico trabalhista, o qual se substituiria, no ponto, por normas de direito público, tendo em conta tais entidades integrarem a Administração Pública indireta, sujeitando-se, por isso, aos princípios contemplados no art. 37 da CF. Rejeitou, por conseguinte, a assertiva de ser integralmente aplicável aos empregados da recorrente o regime celetista no que diz respeito à demissão.
Afirmou que o objetivo maior da admissão de empregados das estatais por meio de certame público seria garantir a primazia dos princípios da isonomia e da impessoalidade, o que impediria escolhas de índole pessoal ou de caráter puramente subjetivo no processo de contratação. Ponderou que a motivação do ato de dispensa, na mesma linha de argumentação, teria por objetivo resguardar o empregado de uma eventual quebra do postulado da impessoalidade por parte do agente estatal investido do poder de demitir, razão pela qual se imporia, no caso, que a despedida fosse não só motivada, mas também precedida de um procedimento formal, assegurado ao empregado o direito ao contraditório e à ampla defesa. [...]
Aduziu que o paralelismo entre os procedimentos para a admissão e o desligamento dos empregados públicos estaria, da mesma forma, indissociavelmente ligado à observância do princípio da razoabilidade, porquanto não se vedaria aos agentes do Estado apenas a prática de arbitrariedades, mas se imporia também o dever de agir com ponderação, decidir com justiça e, sobretudo, atuar com racionalidade. Assim, a obrigação de motivar os atos decorreria não só das razões acima explicitadas como também, e especialmente, do fato de os agentes estatais lidarem com a res publica, tendo em vista o capital das empresas estatais — integral, majoritária ou mesmo parcialmente — pertencer ao Estado, isto é, a todos os cidadãos. [...] Salientou que, no caso da motivação dos atos demissórios das estatais, não se estaria a falar de uma justificativa qualquer, simplesmente pro forma, mas de uma que deixasse clara tanto sua legalidade extrínseca quanto sua validade material intrínseca, sempre à luz do ordenamento legal em vigor. Destarte, disse não se haver de confundir a garantia da estabilidade com o dever de motivar os atos de dispensa, nem de imaginar que, com isso, os empregados teriam uma “dupla garantia” contra a dispensa imotivada, eis que, concretizada a demissão, eles terão direito, apenas, às verbas rescisórias previstas na legislação trabalhista.
Em seguida, ao frisar a equiparação da demissão a um ato administrativo, repeliu a alegação de que a dispensa praticada pela ECT prescindiria de motivação, por configurar ato inteiramente discricionário e não vinculado, havendo por parte da empresa plena liberdade de escolha quanto ao seu conteúdo, destinatário, modo de realização e, ainda, à sua conveniência e oportunidade. [...] Por fim, reiterou que o entendimento ora exposto decorreria da aplicação, à espécie, dos princípios inscritos no art. 37 da CF, notadamente os relativos à impessoalidade e isonomia, cujo escopo seria o de evitar o favorecimento e a perseguição de empregados públicos, seja em sua contratação, seja em seu desligamento. Após o voto do Min. Eros Grau que acompanhava o relator, pediu vista dos autos o Min. Joaquim Barbosa.
RE 589998/PI, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 24.2.2010. (RE-589998)
Assim, conforme decidido pelo Supremo Tribunal Federal a demissão dos empregados públicos de empresas estatais deve ser motivada, vez que essas entidades, a despeito de ostentarem a natureza jurídica de direito privado, se submetem a regime híbrido, sujeitando-se a determinadas limitações para garantia do interesse público.
CONCLUSÃO
Do exposto, tem-se que assim como a Administração direta, a indireta também tem o dever de motivar seus atos. Assim, a demissão de um empregado público de empresa pública ou sociedade de economia mista somente pode dar-se mediante decisão motivada do administrador, observado o devido processo administrativo.
Não se trata de garantia de estabilidade ao empregado, mas tão-somente de salvaguarda dos princípios da moralidade e impessoalidade também nas empresas estatais.Nesse cenário, a Administração pública deve desinvestir os empregados públicos com a mesma impessoalidade que adotou em sua contratação.
Desse modo, vedadas as práticas arbitrárias, persecutórias e discriminatórias, sob pena de nulidade do ato de demissão, reintegração do agente público ao emprego público e percepção da remuneração correspondente ao período de afastamento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em <http//: www.planalto.gov.br>. Acesso em 22 jun 2013.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 26ª ed. São Paulo: Atlas, 2013.
LIMA FILHO, Cláudio Dias. A motivação da dispensa dos empregados dos correios como sintoma da inconsistência da jurisprudência consolidada do TST. Revista do Ministério Público do Trabalho. Brasília, Ano XX, n. 40, setembro 2010.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 19ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005.
INHAN, Juliana Ferreira. A necessidade de motivação na demissão de trabalhadores em sociedades de economia mista e empresas públicas. <http//:âmbito-juridico.com.br>. Acesso em 23 jun 2013.
SILVA, José Afonso. Comentário contextual à Constituição. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
[1]MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 19ª Edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2005.
[2] Informativo 576 do STF.
Procuradora Federal. Pós-graduada em Direito Público.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NAVES, Silvia Costa. O dever de motivação na demissão do empregado público Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 jun 2013, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/35733/o-dever-de-motivacao-na-demissao-do-empregado-publico. Acesso em: 22 nov 2024.
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