RESUMO:Serve o presente estudo para avaliar a possibilidade de utilização de medidas comerciais unilaterais no Direito Internacional sob o argumento de preservação ambiental, a partir da análise do Caso Camarões, levado ao conhecimento da Organização Mundial do Comércio (OMC) por Índia, Paquistão, Malásia e Tailândia entre outubro de 1996 e janeiro de 1997, bem como os requisitos para que tais instrumentos possam ser utilizados de forma legítima no ordenamento internacional.
SUMÁRIO:1. Introdução. 2. Descrição do “Caso Camarões”. O Argumento Ambiental.2.1. A Seção 609 como Mecanismo de Defesa das Espécies de Tartarugas Marinhas Ameaçadas de Extinção; 2.2. O Processo de Certificação das Nações. 3. A Tensão entre a Aplicação da Seção 609 e a Finalidade de Preservação Ambiental Pretendida.3.1. A Seção 609: Utilização da Medida Menos Restritiva ao Comércio?; 3.2. Os Efeitos Perversos da Seção 609; 3.3. As Falhas na Aplicação da Medida Restritiva à Importação de Camarões. 4. Requisitos para a Adoção de Medidas Unilaterais. 5. Conclusão.
PALAVRAS-CHAVE:Meio ambiente; medidas unilaterais; comércio internacional; embargo; Organização Mundial do Comércio.
1. INTRODUÇÃO.
O Direito Internacional vivencia uma fase na qual os relacionamentos entre os Estados têm aumentado de complexidade. Assim, muitas vezes, interesses comerciais, ambientais, políticos, sociais e culturais se interconectam, fazendo-se necessária uma análise que os harmonize. No caso que se pretende analisar – chamado, aqui, de “Caso Camarões” – , observou-se uma colisão entre aspectos econômicos e ambientais, emergindo a discussão acerca da legitimidade de adoção de medidas comerciais unilaterais para o fim de preservação ambiental por parte de um Estado em desfavor de outro.
2. Descrição do “Caso Camarões”. O Argumento Ambiental.
Entre outubro de 1996 e janeiro de 1997, Índia, Paquistão, Malásia e Tailândia peticionaram ao Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio (OMC), com o objetivo de que este estabelecesse um painel para examinar a queixa relativa à proibição imposta pelos Estados Unidos às importações de certos tipos de camarões e demais produtos a estes relacionados, com base na Seção 609 de Direito Público 101-162, presente no ordenamento jurídico norte-americano. Estabeleceram-se, com isso, dois painéis, sendo que o Órgão de Solução de Controvérsias decidiu-se, em 25 de fevereiro de 1997, pela fusão desses painéis em um só, de acordo com o art. 9º do Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos sobre Solução de Controvérsias. Em 10 de abril de 1997, um terceiro painel fora estabelecido a pedido da Índia, salientando-se que este também se fundiu àquele edificado em fevereiro do mesmo ano[1]. Vejamos o histórico que levou ao conflito.
Tendo em vista o Ato das Espécies Ameaçadas (Endangered Species Act), de 1973, os Estados Unidos emitiram, em 1987, uma série de normas regulatórias, exigindo que as redes de pesca dos navios norte-americanos fossem equipadas com os chamados TEDs (TurtleExcluderDevices)[2], em áreas marcadas e nas quais houvesse uma significante mortalidade de tartarugas marinhas decorrentes da pesca de camarão[3].
Com efeito, o crescimento e sofisticação das técnicas de pesca utilizadas pelas grandes indústrias que exploram a atividade, como, por exemplo, o uso de redes de arrasto, acarretou a necessidade de regulamentação dessas técnicas, considerando-se aspectos não só relacionados à liberdade de navegação internacional, mas também o desrespeito às normas de preservação da vida de certas espécies que não têm valor comercial e que, ao mesmo tempo, estão associadasa outras espécies economicamente relevantes (como ocorre com os golfinhos, associados à pesca de atum, e as tartarugas marinhas, relacionadas à captura de camarões)[4]. Não é incomum, portanto, que, na pesca de espécies economicamente relevantes, como os camarões, ocorra a captura acessória de outras espécies, como as tartarugas marinhas, que, para agravar a situação do ponto de vista ambiental, encontram-se em número reduzido no mundo animal.
2.1. A Seção 609 como Mecanismo de Defesa das Espécies de Tartarugas Marinhas Ameaçadas de Extinção.
A Seção 609 de Direito Público 101-162 foi decretada pelos Estados Unidos em 21 de novembro de 1989. A Seção 609(a) prevê a necessidade de iniciação de negociações, o mais rápido possível, para o desenvolvimento de acordos bilaterais ou multilaterais entre Estados Unidos e demais países, com a finalidade de proteção e conservação de tartarugas marinhas. Ademais, o mesmo dispositivo aduz que negociações devem ser feitas com todos os governos estrangeiros engajados ou que abriguem em seu território empresas inseridas no ramo da pesca comercial de camarões que possa afetar adversamente certas espécies de tartarugas marinhas, com a finalidade de realizar tratados bilaterais ou multilaterais para fins de proteção e preservação de tais animais[5].
O Órgão de Apelação da OMC ainda mencionou em seu relatório que a Seção 609(b)(1) impôs uma proibição da importação de camarões pescado com teconologia que afete adversamente as espécies de tartarugas marinhas protegidas pelas medidas norte-americanas. Ressalte-se que, nos termos da Seção 609(b)(2), essa proibição não se aplicaria às Nações certificadas.
2.2. O Processo de Certificação das Nações
O relatório do Órgão de Apelação informa que dois tipos de certificação anual podem ser solicitados. Inicialmente, concedia-se a certificação a países cujo ambiente de pesca não constitua ameaça de captura incidental de tartarugas marinhas quando da pesca de camarões[6]. Ademais, o Departamento de Estado norte-americano deveria certificar qualquer país pesqueiro (a) que não possuísse qualquer das espécies de tartarugas marinhas ameaçadas de extinção em águas submetidas à sua jurisdição, (b) que pescasse camarões exclusivamente por mecanismos que não ameaçassem a sobrevivências das tartarugas marinhas ou (c) cuja pesca de camarões acontecesse exclusivamente em águas submetidas à sua jurisdição e nas quais não houvesse tartarugas marinhas[7].
A certificação também seria concedida às Nações interessadas que fornecessem evidência documental da adoção de programa regulatório capaz de controlar a captura incidental de tartarugas marinhas no curso da pesca de camarões, desde que comparável em efetividade ao programa imposto aos players norte-americanos (que tinham de adotar a tecnologia dos TEDs). Cumpre destacar que outras medidas voltadas à proteção e conservação das tartarugas marinhas também deveriam ser levadas em consideração para a comparação a ser procedida[8].
Ainda de acordo com as exigências norte-americanas, todo o camarão importando para os Estados Unidos deveria estar acompanhado de uma declaração que atestasse ter sido este pescado em águas de uma Nação certificada com base na Seção 609 ou em condições que não afetassem adversamente as espécies relevantes de tartarugas marinhas[9]. Em novembro de 1996, entretanto, a Corte Americana de Comércio Internacional decidiu que a possibilidade de importação de camarões de países não-certificados, mesmo que acompanhados desta declaração, violava a Seção 609. Por outro lado, entendeu que o camarão pescado por mecanismos manuais que não prejudicassem as espécies ameaçadas de tartarugas marinhas poderia ser importado de nações não-certificadas[10].
Segundo se observa do relatório da OMC, a proibição acabou por limitar-se geograficametnte a determinados países (México, Belize, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Costa Rica, Panamá, Colômbia, Venezuela, Trinidad e Tobago, Guiana, Suriname, Guiana Francesa e Brasil). Em dezembro de 1995, contudo, a Corte Americana de Comércio Internacional concluiu que a regra também afrontava a Seção 609, ordenando ao Departamento de Estado do país a estender mundialmente a proibição[11].
Marcelo Dias Varella[12] identificou diversos problemas no processo de certificação ora descrito. Inicialmente, aduz o autor, a certificação era feita por país, e não por barco ou empresa de pesca, de modo que, ainda que alguns pescadores ou empresas da área utilizassem os instrumentos exigidos pelas autoridades norte-americanas, nas águas submetidas à jurisdição de um país não-certificado a proibição se mantinha. Dessa forma, defende o autor que melhor seria a certificação por barco ou empresa. Ainda segundo o doutrinador, os Estados Unidos buscaram decretar uma legislação segundo a qual particulares de outros países deveriam adotar suas próprias normas, mas sem considerar certas condições locais e específicas existentes nos territórios de outros membros, como, por exemplo, as possibilidades financeiras dos pescadores dos países em desenvolvimento para aquisição dos equipamentos exigidos pela legislação ianque. A medida, então, apresentava-se como ilegal e discriminatória, exatamente por sua extraterritorialidade.
O Painel da OMC, analisando o caso posto à sua análise, concluiu que a proibição de importação imposta pelo governo norte-americano violava diversos dispositivos do GATT 1994 (como, por exemplo, seus artigos XI:I e XX), recomendando ao Órgão de Solução de Controvérsias da organização que requisitasse aos Estados Unidos a conformação dessas medidas com as obrigações previstas no Acordo da OMC[13].
3. A Tensão entre a Aplicação da Seção 609 e a Finalidade de Preservação Ambiental Pretendida.
3.1. A Seção 609: Utilização da Medida Menos Restritiva ao Comércio?
Maria Angélica Larach afirma que, devido a pressões advindas de grupos defensores do meio-ambiente, os Estados Unidos tiveram de promulgar uma lei que proíbe a importação de camarões pescados com sistema de pesca que ameaçam espécies alheias, como as tartarugas marinhas[14]. Ao mesmo tempo, desenvolveu-se nesse país um sistema para possibilitar a pesca de camarões sem que haja a captura incidental de tartarugas marinhas, criando-se, mais tarde, a obrigatoriedade da utilização do TED por parte das empresas pesqueiras.Os Estados Unidos, como não podia deixar de ser, são um dos maiores importadores de produtos pesqueiros do mundo. Todavia, o país passou a se valer de medidas restritiivas às importações, de modo a forçar os exportadores a adotar processos produtivos consonantes com sua legislação.
Larach admite que muitos países compartilham da preocupação em relação à sobrevivência das tartarugas marinhas, mas discordam acerca da adoção de medidas ambientais extraterritoriais, salientando-se, ainda, que a medida unilateral refere-se ao processo de produção do camarão, e não ao produto em si mesmo[15].
Para a autora, a proteção ambiental configura-se como objetivo político legítimo. Porém, defende que tal situação gera instabilidade e inquietação, pois autoriza que normas ambientais sejam utilizadas como barreiras comerciais e passem a condições prévias de acesso aos mercados dos países industrializados[16].
Do ponto de vista da legislação ianque, a redução da população de tartarugas marinhas é a principal causa da ameaça à existência de tais espécies. No entanto, é de se lembrar que as causas que levaram à diminuição da população de tartarugas marinhas não se relacionam apenas à pesca do camarão. Larach reforça a necessidade de se reconhecer que fatores como a exploração de carne, ovos e do azeite de tartaruga, a venda de produtos derivados de sua concha, a destruição de ovos aninhados nas praias, o derramamento de petróleo e causas naturais (como, por exemplo, o El Niño) também influenciam decisivamente para a redução da população de tartarugas marinhas[17]. Deste modo, a proteção a tais espécies não passaria apenas pela imposição de restrições comerciais à importação de camarão, mas por uma série de medidas que combatam os demais fatores prejudiciais à evolução da população de tartarugas marinhas.
Os Estados Unidos, na década de 70, já haviam incluído as tartarugas marinhas na lista da Lei das Espécies Ameaçadas, mas tal medida não deteve os índices de mortalidade do animal. Com efeito, para uma proteção efetiva, deve-se considerar não apenas os índices de mortes indiretas causadas pela pesca do crustáceo, mas também das mortes diretas causadas pelos fatores citados por Larach.
Como se sabe, a captura de tartarugas marinhas foi proibida nos Estados Unidos em 1973. Em seguida, o Serviço Nacional de Pesca Marítima desenhou o TED: de fato, o manejo e a instalação adequadas do dispositivo reduzem consideravelmente a captura incidental e a morte por asfixia das tartarugas marinhas na pesca do camarão, com efetividade estimada em 97%[18]. Em 1983, os Estados Unidos propuseram o uso voluntário do TED para os pescadores nacionais de camarões. Contudo, o baixo número de pescadores que utilizaram-se do mecanismo causou a falha do programa. Já em 1987, o uso do instrumento tornou-se obrigatório para todos os barcos que pescavam com a ajuda de rede de arraste, o que passou a vigorar em 1990. Promulgou-se, em 1989, o artigo 609 da Lei Pública 101-162, proibindo a importação de camarões pescados sob o sistema de redes de arraste advindos de países de águas temperadas ou tropicais, nas quais habitam as tartarugas marinhas.
Para que um país receba a certificação por parte do Departamento de Comércio norte-americano, o governo do país exportador deve comprovar o uso do TED ou similar, ou, ainda, mostrar prova documental de que a pesca de camarões não causa danos às tartarugas, seja porque elas não ocorrem nas áreas de capturas de camarões, seja porque o sistema de pesca empregado não é prejudicial à sobrevivência de tais animais. Sem isso, os Estados Unidos estão, segundo sua legislação interna, autorizados a proibir a importação de camarões.
Ocorre, porém, que algumas decisões no sentido de impedir a importação de camarões por parte do governo norte-americano acabam por consistir, apenas, em protecionismo. Cita-se, no ponto, o caso de Trinidad e Tobago, em que, apesar de a zona de pesca de camarão se dar em local onde é improvável a existência de tartarugas marinhas, mesmo assim os Estados Unidos exigem a utilização do TED. Ainda no que toca à situação do país referenciado, observou-se que, no habitat natural das tartarugas marinhas naquela ilha, não havia a pesca do crustáceo.
Ora, não havia evidências que possibilitassem a conclusão segundo a qual, em Trinidad e Tobago, a ameaça às tartarugas marinhas devia-se à indústria da pesca de camarões[19]. É, portanto, nesse sentido que a proteção ao meio-ambiente acaba refletindo a nova cara do protecionismo[20].
3.2. Os Efeitos Perversos da Seção 609.
Se, por um lado, a legislação norte-americana tinha por pano de fundo a proteção e conservação das tartarugas marinhas, por outro verificou-se que outros ecossistemas frágeis foram afetados pela medida. Como o embargo imposto incentiva a captura do crustáceo por outros mecanismos, como, por exemplo, a sua criação em cativeiros (já que a restrição não recaía sobre este), os manguezais passaram a ser afetados adversamente com o aumento da prática da aquicultura[21].
Rao adverte para a falta de medidas apropriadas para a irrigação dessas fazendas de aquicultura, reduzindo a idade média de produção desses locais para 2 a 4 anos, o que acaba gerando a busca por novas terras para a atividade. Para o autor, o incentivo à aquicultura, gerado pela Seção 609 ao excluir a atividade de seu alcance, acarreta problemas ambientais, econômicos e sociais[22]. Rao menciona que os camarões necessitam de água salgada para sobreviver, sendo esta puxada do oceano[23]. Esta ação afeta negativamente os produtores de arroz, pois dificulta o seu cultivo em condições altamente salinas, assim como as vilas vizinhas, já que o alto teor de sal utilizado na aquicultura acaba alcançando a água utilizada para o consumo humano.
A atividade ainda se vale da utilização de pesticidas, alguns dos quais banidos de países como os Estados Unidos, que, além de afetar a água e o solo locais, também prejudica o sistema imunológico dos crustáceos. De todo modo, nada impede que, também sob esse argumento, os Estados Unidos impeçam a importação de tais produtos, restringindo ainda mais o acesso ao seu mercado.
Ressalta Rao[24] que o lucro alcançado pelas fazendas que exploram a atividade não reflete, assim, os gastos totais. Os governos dos países atingidos foram forçados a subsidiar a aquicultura, ajudando a pagar as despesas relativas à disponibilização de água limpa para a população afetada pela atividade. A partir dessa situação, ambientalistas indianos concluem que o ciclo detonado pela Seção 609 gera impactos negativos na economia nacional dos países afetados pela medida, aumentando o estado de dependência e dominação dos países subalternos.
3.3. As Falhas na Aplicação da Medida Restritiva à Importação de Camarões
Interessante notar as falhas na aplicação de medida restritiva. Gregory Shaffer[25] cita sete problemas de execução. Em primeiro lugar, os Estados Unidos pretendiam que todos os membros exportadores adotassem essencialmente a mesma sistemática de proteção escolhida por sua legislação doméstica, o que exercia efeito coercitivo nas decisões políticas tomadas por países estrangeiros. Além disso, a política norte-americana não assegurava que as diretrizes de proteção ambiental estivessem de acordo com as condições específicas de um determinado local ou região. Em terceiro lugar, mesmo nos casos em que os camarões eram pescados com observância ao método prescrito pelos Estados Unidos, ainda assim o país proibia a sua importação se o crustáceo houvesse sido capturado em águas de países que não requerem o uso do TED.
Soma-se a isso o fato de os Estados Unidos não terem se preocupado em adotar soluções multilaterais para a resolução da contenda, bem como acabaram por discriminar membros da OMC ao conferirem prazos distintos para adequação aos ditames da Seção 609. Observou-se, ainda, falta de vontade política dos americanos em transferir a tecnologia do TED para alguns dos princípais países exportadores, como Índia, Malásia, Paquistão e Tailândia.
Contra esse argumento geralmente se nota o fato de que os Estados Unidos pressionaram no sentido de formar a Convenção Interamericana para a Proteção das Tartarugas Marinhas. Contudo, o próprio Órgão de Apelação da OMC, quando da análise do caso, tomou em consideração a falta de ratificação do referido instrumento por parte do governo norte-americano para denotar as intenções secundárias da medida. Não bastasse isso, como bem lembra Magni[26], os norte-americanos não se esforçaram e nem fizeram questão de incluir no tratado outras medidas que igualmente afetam a sobrevivência das tartarugas marinhas, como, por exemplo, o uso dos ovos e carnes de tartarugas para o consumo humado, o que faz duvidar da motivação estritamente ambiental da Seção 609. A medida também possui um efeito que caracteriza as medidas protecionistas, qual seja, a de fomentar a indústria nacional, tornando-a mais competitiva ao produzir efeitos adversos para os países importadores.
Shaffer ainda atenta para o fato de que a aplicação da medida ianque era arbitrária, relativamente ao processo de certificação, que não era transparente ou previsível, além de não possibilitar qualquer oportunidade formal para que o país certificando fosse ouvido ou pudesse rejeitar as afirmações que porventura eram feitas contra si[27].
É de se deixar claro que o Caso Camarões representou um passo importante em direção à negativa de que a OMC não regula métodos de processo e produção. No entanto, é extremamente relevante se repensar o papel dos Estados para a defesa das matérias ambientais. Em outras palavras, a partir da derrocada do Estado Social, em que se observou que efetivamente seria necessária a existência de outros legitimados para a defesa dos direitos fundamentais de terceira geração, é relevante indagar a regulação das matérias ambientais deve se ater apenas à esfera dos Estados. A discussão, no entanto, deve ser relegada a outro plano. O fato é que medidas unilaterais tem sido utilizadas sob o argumento de defesa do meio-ambiente. O valor que tais medidas supostamente buscam proteger é legítimo e, por isso, deve-se salientar os requisitos a serem cumpridos para a imposição legal de tais medidas. É o que se pretende a seguir.
4. Requisitos para a Adoção de Medidas Unilaterais.
No item anterior, concluiu-se, com relação ao Caso Camarões, pela existência de fortes indícios de utilização do argumento ambiental para fins protecionistas. No entanto, é possível imaginar que tais medidas podem ser legitimamente impostas, desde que observados critérios e parâmetros que se adequem aos ditames jurídicos do ordenamento jurídico internacional. O Caso Camarões consiste em paradigma, de sorte que, a partir dele, é possível se pensar em inúmeras regras capazes de legitimar a imposição de medidas unilaterais ao comércio como mecanismo de proteção de direitos humanos, como sói ocorrer com o direito ao meio ambiente.
Para Philippe Sands[28], o debate sobre a adoção de atos unilaterais envolve uma discussão mais ampla e que requer a análise da tensão entre diversos valores, sejam eles sociais, ambientais, econômicos e políticos, além de implicar estudos acerca das relações hierárquicas existentes entre os diferentes valores, tal como refletidos nas normas jurídicas internacionais. O autor, a partir da análise da decisão adotada pelo Órgão de Apelação da OMC, estabelece três condições para que um Estado possa se valer de medidas unilaterais na esfera ambiental. Vamos a eles[29].
Em primeiro lugar, o Estado que pretenda assim agir deve possuir interesse legítimo no recurso que se busca resguardar com a medida. Além disso, o recurso em questão deve estar protegido por medidas ambientais que o resguardem de maior perigo de extinção. Por último, todos os meios diplomáticos para fins de negociação com o Estado a ser afetado por eventuais medidas unilaterais devem ter se esgotado, observando-se os padrões a serem utilizados para a conservação da espécie.
MeinhardHilf[30], de seu turno, adota requisitos mais completos que os delineados por Sands. Segundo o autor, oito são os requisitos que podem ser estabelecidos com base na decisão do Órgão de Apelação da OMC. Para ele, as medidas comerciais devem servir para a proteção de interesses públicos legítimos, requisito esse que é preenchido quando tais interesses são assim reconhecidos nos acordos internacionais relativos ao meio-ambiente[31]. Além disso, as medidas protetivas devem ser válidas de modo consequente com o ordenamento jurídico interno do Estado importador, devendo servir a esta proteção de forma efetiva[32].
Essas medidas também devem ser necessárias, isto é, não pode haver medidas menos restritivas que a proibição da importação. Completa o autor que, no caso em questão, proibição da importação americana demonstrou ser excessiva, pois exigia que os Estados exportadores adotassem certas normas de proteção às tartarugas marinhas, sem concedê-los a opção de adotar outros sistemas de proteção igualmente efetivos[33]. A ideia de necesssidade requer, então, a utilização da medida compatível com os dispositivos do GATT 1994 ou menos restritiva ao comércio[34].
Enfatizou-se, também, o princípio da cooperação internacional: antes da adoção de medidas unilaterais, deve-se ao menos tentar, de boa-fé, concluir um acordo internacional a respeito do assunto. Hilf acentua que um acordo deste tipo foi alcançado com alguns países latino-americanos; o mesmo, porém, não foi feito com relação a países da Ásia Oriental, não havendo que se falar, no caso, sequer em início de tentativas de acordo[35]. De fato, o Princípio 12 da Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, por exemplo, demonstra essa necessidade, preceituando que as políticas econômicas com fins de proteção ambiental não devem servir para discriminar ou restringir o comércio internacional, e as medidas para controle de problemas ambientais transfronteiriços ou globais devem, sempre que possível, basear-se no consenso entre os países.
Tal previsão encontra-se também prevista no art. 5º da Convenção sobre Diversidade Biológica, segundo o qual cada parte contratante deve, sempre que possível e conforme o caso, cooperar com as demais partes contratantes diretamente ou mediante as organizações internacionais competentes, no que respeita a áreas além da jurisdição nacional e em outros assuntos de mútuo interesse, para a conservação e utilização sustentável da diversidade biológica. Hilf salienta que o dever de cooperação internacional mostra-se como norma costumeira do Direito Internacional[36].
Pode-se ainda mecionar princípio da discriminação, por meio do qual não se pode estabelecer entre os países exportadores diferenças que não sejam razoáveis[37]. Outros princípios consagrados foram o do Estado de Direito e o do devido processo, ou seja, para que as medidas sejam compatíveis com o devido processo, é necessário que o procedimento para outorgar a autorização de importação seja transparente e fundado em provas[38]. Por último, não se admite medida discriminatória arbitrária e nem uma restrição disfarçada ao comércio[39].
Hilf ressalta que, desta exposição de condições legais, é possível concluir que as medidas unilaterais também estão autorizadas, desde que sejam neutras ao comércio, só então podendo desfrutar de uma maior eficácia para a proteção do meio ambiente. Além disso, se as medidas protetoras ao meio ambiente respeitam o conteúdo dos acordos internacionais, em geral elas serão aceitas pela OMC[40].
A proibição de importação por parte do ordenamento jurídico norte-americano não conseguiu comprovar ser a medida razoável e necessária para a proteção das tartarugas marinhas, acabando por se classificar como uma medida restritiva ao comércio. Os problemas do processo de certificação de Nações, delineado anteriormente, bem demonstra a falta de transparência e de motivação compatível com a finalidade exclusiva de proteção ambiental. Por isso, a aplicação da medida proibitiva por parte dos Estados Unidos padece de inúmeros problemas que colocaram em xeque a legitimidade da medida.
5. CONCLUSÃO
A partir da análise do “Caso Camarões”, levado à análise da Organização Mundial do Comércio (OMC), observou-se que os Estados Unidos, alegadamente por motivos ambientais, impuseram aos países importadores de camarões, com base na Seção 609, um embargo econômico em caso da não utilização do TED por embarcações pesqueiras, para se evitar a morte incidental de tartarugas marinhas por ocasião da pesca do crustáceo.
A OMC, utilizando-se de um método interpretativo inovador até então, decidiu que a medida norte-americana, apesar de servir ao objetivo de proteção ambiental, considerado legítimo com base no art. XX(g) do GATT 1994, possuía um problema: sua forma de aplicação constituía discriminação arbitrária e injustificável entre países nos quais as mesmas condições prevaleciam. Desde então, nota-se um esforço, por parte da doutrina, no sentido de se estabelecer os requisitos legais para a adoção legítima de medidas unilaterais de proteção ao meio-ambiente.
Analisando-se a medida norte-americana em cotejo com os critérios doutrinários que indicam a legitimidade do embargo comercial, observa-se que tanto o princípio da isonomia quanto o da proporcionalidade foram violados e, apesar de, em alguma medida, servir à proteção ambiental, a providência ianque, na verdade, acabou servindo mais a fins protecionistas.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1]ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO (OMC). Estados Unidos – Proibição de Importação de Certos Camarões e Produtos de Camarões – Informe do Órgão de Apelação. WT/DS58/AB/R. OMC: Genebra, 1998, p. 1-2.
[2]Segundo Gregory Shaffer (2004, p. 21), o TED (TurtleExcluderDevice ou, em tradução livre, mecanismo de exclusão de tartarugas) consiste em um instrumento que permite que as tartarugas escapem das redes de arraste utilizadas na pesca de camarões, evitando sua morte por afogamento.
[3]OMC,p. 2.
[4] SOARES, Guido Fernando da Silva. A Proteção Internacional do Meio Ambiente. Barueri: Manole, 2003, p. 129-130.
[5]ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO (OMC). Estados Unidos – Proibição de Importação de Certos Camarões e Produtos de Camarões – Informe do Órgão de Apelação. WT/DS58/AB/R. OMC: Genebra, 1998, p. 2.
[6] OMC, op. cit., p. 2-3.
[7]Idem, ibidem.
[8] OMC, op. cit., p. 3.
[9] OMC, op. cit., p. 3-4.
[10] OMC, op. cit., p. 4.
[11]Idem, ibidem.
[12] VARELLA, Marcelo Dias. O Acúmulo de Lógicas Distintas no Direito Internacional: Conflitos entre Comércio Internacional e Meio Ambiente. Disponível em: www.presidencia.gov.br/ccvivl_03/revista/REV_71/Artigos/artigo_Marcelodias_htm, p. 6. Acesso em 13 de julho de 2005.
[13]OMC, op. cit., p. 5.
[14] LARACH, María Angélica. LasBarrerasMedioambientales a lasExportacionasLatinoamericanas de Camarones. Santiago do Chile: ONU, CEPAL, 1999, p. 5.
[15] LARACH, op. cit., p. 6.
[16]Idem, ibidem.
[17] LARACH, op. cit., p. 8.
[18] LARACH, op. cit., p. 11.
[19]SRINIVAS, K. Ravi. Turtles, Trade and Environmental Trade Measures: Reframing the Debate. EconomicandPoliticalWeekly, Fevereiro/2003, p. 5.
[20] ROJAS, María de JesúsMestiza. BarrerasComerciales y Medio Ambiente enelNuevoMilenio: ¿La Nueva Cara delProteccionismo? Disponível em http://www.sur.iucn.org/ces/documentos/documentos/771.pdf. Acessoem 05 de julho de 2005, p. 4.
[21] RAO, DandamudiSreenivasa. TED Analysis Cases: Case Studies of Seafood Production. Seafood TED Analysis.ResearchPaper, outubro de 1995. Disponível em: http://www.american.edu/TED/projects/tedcross/xseafd1.htm, p. 2. Acesso em 14 de julho de 2005.
[22]Idem, ibidem.
[23] RAO, op. cit., p. 5.
[24] RAO, op. cit., p. 3.
[25] SHAFFER, Gregory. The US Shrimp-Turtle Appellate Body Report: Setting Guidelines Toward Moderating the Trade-Environment Conflict. Bridges, Vol. 02, n. 07, Outubro/1998, p. 11.
[26] MAGNI, Lina Paola. Are Unilateral Trade MeasuresJustifiable for Environmental Protection? Brasília, 2005. Dissertação de Mestrado. IREL, Universidade de Brasília (UnB), p. 77.
[27] SHAFFER, op. cit., p. 11.
[28]SANDS, Philippe.“Unilateralism”, Values and International Law. European Journal of International Law, 2000, Vol. 11, n. 2, p. 291.
[29]SANDS, op. cit., p. 300.
[30] HILF, Meinhard. Libertaddel Comércio Mundial contra ProteccióndelMedio Ambiente. In: Revista Electrônica de EstudiosInternacionales, 2000, p. 13.
[31] HILF, op. cit., p. 13-14.
[32] HILF, op. cit., p. 14.
[33]Idem, ibidem.
[34] CORRÊA, Luciana Amaral. A Cláusula do Tratamento Nacional do GATT 1994 e o Meio Ambiente: Principais Decisões do Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio. In: FREITAS, Vladimir de Passos (org.). Direito Ambiental em Evolução n. 3. Curitiba: Editora Juruá, 2003, p. 210-211.
[35]HILF, op. cit., p. 14.
[36]Idem, ibidem.
[37]Idem, ibidem.
[38] HILF, op. cit., p. 14-15.
[39] HILF, op. cit., p. 15.
[40]Idem, ibidem.
Procuradora Federal em Brasília (DF).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NASCIMENTO, Marina Georgia de Oliveira e. A utilização de medidas comerciais unilaterais no direito internacional para fins de preservação ambiental: uma análise do caso camarões Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 jun 2013, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/35738/a-utilizacao-de-medidas-comerciais-unilaterais-no-direito-internacional-para-fins-de-preservacao-ambiental-uma-analise-do-caso-camaroes. Acesso em: 22 nov 2024.
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