Resumo: O presente artigo tem por objeto a análise da prova de regularidade dos licitantes perante o Fisco como requisito para habilitação em procedimentos licitatórios, com o escopo de se esclarecer quais os limites que condicionam a atuação do administrador público na matéria.
Introdução:
Considerada a regra do artigo 29, inciso III, da Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei Federal nº 8.666/93), tem sido comum em editais de certames licitatórios a exigência de que os licitantes comprovem regularidade perante o Fisco em suas esferas Federal, Estadual e Municipal, relativamente a todos os tributos de cada uma destas, como requisito para obtenção da habilitação fiscal.
Ocorre, entretanto, que, sendo os requisitos de qualificação mecanismos que redundam em restritividade de participação, a matéria deve ser analisada como maior cuidado, a fim de se traçar um limite à atuação do administrador público, para que a restrição decorrente da prova de regularidade fiscal não seja indevida e, portanto, não ofenda o disposto no artigo 37, XXI, da Constituição Federal, e no artigo 3º, § 1º, I, da Lei Federal nº 8.666/93, de maneira que é imprescindível se estabelecer balizas que demonstrem o que pode ou não ser cobrado no caso concreto, ou seja, os tributos com relação aos quais é cabível exigência de prova de regularidade.
I – Limites gerais às exigências de habilitação
Como é cediço, a habilitação ou qualificação é a etapa do procedimento licitatório na qual a Administração avalia se os interessados possuem a aptidão necessária para contratar com o poder público e executar o objeto licitado (BANDEIRA DE MELLO, C. A. Curso de Direito Administrativo. São Paulo, 2007: Malheiros. 24ª Edição, pg. 570).
A respeito do tema, ao impor à Administração Pública o dever de licitar, a Constituição Federal determina que para a qualificação técnica e econômica dos licitantes somente poderão ser exigidos os elementos indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações a serem assumidas em decorrência da celebração do futuro contrato. Neste sentido, dispõe o art. 37, caput, inciso XXI, da Magna Carta:
“Ressalvados os casos específicos na legislação, obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações” (grifei).
O objetivo do dispositivo é garantir o máximo de competitividade do certame licitatório por meio da participação do maior número possível de interessados em fornecer bens ou serviços ao poder público, dentro de uma margem mínima de segurança quanto à habilitação dos licitantes e ao futuro cumprimento das obrigações a serem por estes assumidas, para que assim a Administração possa contratar a proposta que lhe seja mais vantajosa.
Sobre o tema, Marçal Justen Filho anota que à Administração cabe restringir-se “ao estritamente indispensável a assegurar um mínimo de segurança quanto à idoneidade dos licitantes” (In: Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. São Paulo, 2009: Dialética, 13ª ed., pg. 414).
Por seu turno, Maria Sylvia Zanella Di Pietro observa que:
“Exigências, que não são indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações, contribuem para tornar o procedimetno da licitação ainda mais formalista e burocrático, desvirtuando os objetivos da licitação e infringindo o inciso XXI do artigo 37 da Constituição” (In: Direito Administrativo. São Paulo: 2012: Atlas. 25ª ed., pg. 418).
Destarte, toda vez que requisitos de habilitação são exigidos dos interessados em patamares superiores àqueles que correspondem ao mínimo indispensável para a garantia do cumprimento das obrigações, ocorre violação do disposto no art. 37, XXI, da CF, bem como quebra do princípio da isonomia e limitação indevida da participação de licitantes.
A respeito da questão, Adílson de Abreu Dallari observa que “a doutrina é muito enfática no tocante à inconstitucionalidade de exigências impertinentes, sejam elas feitas pela lei ou pelo edital” (In: Aspectos Jurídicos da Licitação. São Paulo, 2007: Saraiva, 7ª ed., pg. 134).
No mesmo diapasão manifestou-se o Ministro do Tribunal de Contas da União Augusto Sherman Cavalcanti: “Entendo que o espírito do comando constitucional seja precisamente este: evitar que a fixação de restrições desmedidas seja utilizada como subterfúgio destinado a dificultar o amplo acesso à licitação, bem como a propiciar a violação do princípio da isonomia entre os participantes” (TCU – DC nº 0351-11/02-P).
Outrossim, requisitos abusivos e irrazoáveis ofendem também ao disposto no art. 3, § 1º, I, da Lei Federal nº 8.666/93, que determina:
“§ 1o É vedado aos agentes públicos:
I - admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo, inclusive nos casos de sociedades cooperativas, e estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou domicílio dos licitantes ou de qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato, ressalvado o disposto nos §§ 5o a 12 deste artigo e no art. 3o da Lei no 8.248, de 23 de outubro de 1991”.
Em atendimento ao comando constitucional mencionado, a Lei de Licitações e Contratos (Lei Federal nº 8.666/93) dispõe entre seus artigos 27 e 33 quais os elementos passíveis de exigência na fase de habilitação, trazendo o limite máximo do que poderá ser cobrado dos licitantes para não se obstar a competitividade dos certames. Destarte, cabe ao administrador público, no caso concreto, avaliar quais as exigências terão de ser cumpridas pelos interessados para serem habilitados em uma determinada licitação.
Entretanto, essa competência discricionária do Administrador deve ser exercitada com observância dos limites constitucionais e legais que regem a matéria, sob pena de nulidade. Nesse sentido, Lúcia Valle Figueiredo observou que “se a Administração exorbitar dos requisitos exigíveis para habilitação, excedendo sua faixa discricionária, está ilegalmente restringindo a possibilidade de oferta. De conseguinte, haverá nulidade” (In: Curso de Direito Administrativo. São Paulo, 2008: Malheiros. 9ª ed., pg. 507).
II – Limites às exigências de prova de regularidade perante o Fisco
De acordo com a Lei Federal nº 8.666/93, podem ser aferidas a habilitação jurídica, a qualificação técnica, a qualificação econômico-financeira, a regularidade fiscal e trabalhista dos licitantes, bem como o cumprimento por estes do disposto no inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal (art. 27).
A respeito da regularidade fiscal, dispõe a Lei de Licitações e Contratos Administrativos que:
“Art. 29. A documentação relativa à regularidade fiscal e trabalhista, conforme o caso, consistirá em:
I - prova de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) ou no Cadastro Geral de Contribuintes (CGC);
II - prova de inscrição no cadastro de contribuintes estadual ou municipal, se houver, relativo ao domicílio ou sede do licitante, pertinente ao seu ramo de atividade e compatível com o objeto contratual;
III - prova de regularidade para com a Fazenda Federal, Estadual e Municipal do domicílio ou sede do licitante, ou outra equivalente, na forma da lei;
IV - prova de regularidade relativa à Seguridade Social e ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), demonstrando situação regular no cumprimento dos encargos sociais instituídos por lei.
V – prova de inexistência de débitos inadimplidos perante a Justiça do Trabalho, mediante a apresentação de certidão negativa, nos termos do Título VII-A da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943.”
Restringiremo-nos a tratar do inciso III, que menciona a prova de regularidade com as Fazendas Públicas Federal, Estadual e Municipal.
De início, conforme constante explicitamente do dispositivo, cabe destacar que a exigência é de regularidade e não de quitação com o Fisco, ou seja, “pode abranger a existência do débito consentido e sob o controle do credor. Donde, será ilegal o edital que exija prova de quitação” (BANDEIRA DE MELLO, C. A. Curso de Direito Administrativo. São Paulo, 2007: Malheiros. 24ª Edição, pg. 572). Portanto, o licitante poderia apresentar, por exemplo, certidão positiva com efeitos de negativa, sem que isso impedisse a sua habilitação.
Outrossim, há de ser estabelecida pertinência entre o objeto a ser licitado e os tributos com relação aos quais deverá ser comprovada a regularidade fiscal, de maneira que exigências referentes a tributos que não se relacionam diretamente com o objeto do certame caracterizam restrição indevida da competitividade e desvio de finalidade, ofendendo o princípio da isonomia, bem como o disposto no art. 37, XXI, da CF e no art. 3º, § 1º, I, da Lei Federal nº 8.666/93.
Sobre a questão, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que as exigências de prova de regularidade fiscal devem se restringir ao mínimo indispensável a garantir que o licitante possui idoneidade para cumprir o objeto do certame:
“A exigência de regularidade fiscal para habilitação nas licitações (arts. 27, IV, e 29, III, da Lei nº 8.666/93) está respaldada pelo art. 195, § 3º, da C. F., todavia não se deve perder de vista o princípio constitucional inserido no art. 37, XXI, da C. F., que veda exigências que sejam dispensáveis, já que o objetivo é a garantia do interesse público. A habilitação é o meio do qual a Administração Pública dispõe para aferir a idoneidade do licitante e sua capacidade de cumprir o objeto da licitação” (REsp nº 974.854/MA, 2ª Turma, Rel. Min. Castro Meira, julgado em 06.05.2008).
Destarte, não cabe à Administração Pública utilizar-se de procedimentos licitatórios como meio indireto para a cobrança de tributos que não possuam qualquer relação com o objeto dos certames, mormente porque esse expediente frustra a competitividade e ofende a regra constitucional que impõe que as exigências de qualificação devem se restringir ao indispensável para a garantia do cumprimento das obrigações a serem assumidas pelo vencedor da licitação perante o poder público.
Nesse diapasão, Celso Antônio Bandeira de Mello observa que:
“A existência de débitos fiscais só poderá ser inabilitante se o montante deles puder comprometer a ‘garantia do cumprimento das obrigações’ que possam resultar do eventual contrato. Isso porque o art. 37, XXI, da Constituição só admite exigências que previnam esse risco” (BANDEIRA DE MELLO, C. A. Curso de Direito Administrativo. São Paulo, 2007: Malheiros. 24ª Edição, pg. 573).
Dessa forma, o que se pode exigir é que o particular esteja regular com os tributos pertinentes à sua atividade empresarial e o objeto licitado; fora disso, as disposições editalícias serão nulas. Nesse sentido, esclarece Marçal Justen Filho:
“Mais precisamente, a existência de débitos para com o Fisco apresenta pertinência apenas no tocante ao exercício de atividade relacionada com o objeto do contrato a ser firmado. Não se trata de comprovar que o sujeito não tem dívidas em face da ‘Fazenda’ (em qualquer nível) ou quanto a qualquer débito possível e inimaginável. O que se demanda é que o particular, no ramo de atividade pertinente ao objeto licitado, encontre-se em situação fiscal regular” (In: Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. São Paulo, 2009: Dialética, pg. 403).
O autor ainda observa que:
“Não há cabimento em exigir que o sujeito – em licitações de obras, serviços ou compras – comprove regularidade fiscal atinente a impostos municipais sobre propriedade imobiliária ou impostos estaduais sobre propriedade de veículos” (In: Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. São Paulo, 2009: Dialética, pg. 403).
No mesmo sentido, tem decidido o Egrégio Tribunal de Contas do Estado de São Paulo:
“[...] entendo que assiste razão à representante, porquanto a prova de regularidade para com a Fazenda Municipal em tributos imobiliários não se coaduna com o entendimento jurisprudencial que vem se consolidando nesta Corte, no sentido de que esse requisito da licitação deve observar a natureza da contratação que se pretende efetivar. No caso específico, a prestação de serviços de transporte escolar não envolve atividade passível da incidência de tributos imobiliários, devendo o edital ser retificado nesse aspecto”. (TCESP, TC 17698/026/08; Sessão: 27/05/09; Tribunal Pleno; D.O.E: 28/05/2009).
“Regularidade fiscal - malgrado o texto convocatório basicamente reproduza o teor da Lei – como assegurou SDG - cumpre ao licitador objetivamente restringir imposições ‘aos tributos decorrentes do ramo de atividade da licitante, compatível com o objeto contratual.’, consoante sugeriu o MP” (TCE/SP, TC-000189.989.13-0, Tribunal Pleno, Sessão: 20/03/2013).
Acolhendo a mesma tese, decidiu a 4ª Câmara de Direito Público do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:
“Apelações Cíveis. Licitação. Pretensão da autora à anulação de ato que a inabilitou ao certame. Alegação de descumprimento dos termos do Edital. Ausência de prova de regularidade fiscal em relação ao ITBI. Exigência que não condiz com o objeto da licitação. Inteligência do artigo 37, inc. XXI, da CE/88” (Apelação nº 9209121-13.2003.8.26.0000. Relator: Des. Rui Stoco. Data do julgamento: 09/11/2009).
Portanto, encontramos manifestações doutrinárias e precedentes jurisprudenciais contrariários à exigência de prova de regularidade fiscal referente a tributos que não guardam pertinência com o objeto licitado, em consonância com o posicionamento ora defendido.
III – Considerações finais
Diante do exposto, concluímos que:
a) não devem ser estabelecidos requisitos de habilitação além dos indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações a serem assumidas por ocasião da celebração do contrato administrativo, sob pena de restrição indevida da participação de interessados no certame licitatório, o que caracteriza desvio de finalidade, violação ao princípio da isonomia, e ofensa ao disposto no artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal, e no artigo 3º, inciso I, da Lei Federal nº 8.666/93, gerando nulidade;
b) em consequência, somente pode ser exigida prova de regularidade fiscal, com fundamento no artigo 29, III, da Lei Federal nº 8.666/93, relativa a tributos que se relacionem diretamente com o objeto da licitação e o ramo de atuação dos licitantes.
REFÊNCIAS
BANDEIRA DE MELLO, C. A. Curso de Direito Administrativo. São Paulo, 2007: Malheiros. 24ª edição.
CARVALHO FILHO, J. S. Manual de Direito Administrativo. São Paulo, 2012: Atlas. 25ª edição.
DALLARI, A. A. Aspectos Jurídicos da Licitação. São Paulo, 2007: Saraiva. 7ª edição.
DI PIETRO, M. Z. Direito Administrativo. São Paulo, 2012: Atlas. 25ª edição.
FIGUEIREDO, L. V. Curso de Direito Administrativo. São Paulo, 2008: Malheiros. 9ª edição.
JUSTEN FILHO, M. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. São Paulo, 2009: Dialética. 13ª edição.
PEREIRA JUNIOR, J. T. Comentários à Lei das Licitações e Contratações da Administração Pública. Rio de Janeiro, 2009: Renovar. 8ª edição.
Acadêmico de Direito da Fundinop - UENP/ Jacarezinho - PR e Estagiário do Ministério Público do Estado de São Paulo
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOARES, Michel Bertoni. Dos limites aos tributos exigíveis para comprovação da regularidade fiscal dos licitantes Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 jul 2013, 07:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/35888/dos-limites-aos-tributos-exigiveis-para-comprovacao-da-regularidade-fiscal-dos-licitantes. Acesso em: 22 nov 2024.
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