RESUMO: O paradoxo existente entre a doutrina e a jurisprudência nos leva a aprimorar o estudo das disposições jurídicas sobre a presunção de violência no crime de estupro de vulnerável, delito criado por meio da Lei 12.015, de 07 de agosto de 2009. A necessidade de construir amplo estudo, levando em consideração outros arranjos sobre o tema, é o objetivo deste trabalho, concluindo pela renovação do modelo jurisprudencial presente ao sistema legal hodierno. Corrobora para o trabalho a exigência da “análise do caso concreto”, conceito contemporâneo utilizado para otimizar a aplicação das sanções penais.
1 INTRODUÇÃO
O homem, cuja natureza projeta seu relacionamento para com os demais, é um ser social. E, ao possuir tal característica, criou regras contextualmente situadas, de convivência e obrigações recíprocas, capazes de harmonizar a vida em coletividade.
Nesse contexto, após constantes evoluções históricas e sociológicas sensíveis às novas sociedades, surge o Direito, instrumento de regulamentação consolidado por meio de um ordenamento jurídico complexo e dinâmico. Esse ordenamento, por sua vez, é composto por leis, instituições e princípios próprios, tornando-se responsável pela disciplina e manutenção harmônica das relações humanas.
O Direito Penal, em suas especificidades, se orienta por situações advindas diretamente do conflito existente entre os particulares ou entre estes e o Estado. Tutela e protege a coletividade de comportamentos gravemente lesivos aos bens jurídicos indispensáveis ao bem-estar social (conceito material).
Nesse sentido, o Direito Penal é entendido como “o setor ou parcela do ordenamento jurídico público interno que estabelece as ações ou omissões delitivas, cominando-lhes determinadas consequências jurídicas – penas ou medidas de segurança” (PRADO, 2004, p. 55).
Em um estilo próprio, as Ciências Penais (reunião do direito material e processual penal), relacionam-se diretamente com o estudo dos delitos e das consequências destes, bem como a apuração da responsabilidade jurídico-penal do agente (aquele que comete o crime) por meio do devido processo legal. E, como em todo ordenamento, as leis penais também sofrem transformações para a devida adequação às novas relações sociais, tutelando-as em sua essência.
Adiante, o presente trabalho esboçará o estudo sobre a Lei 12.015, de 07 de agosto de 2009, a fim de que se compreenda a nova conduta típica descrita no art. 217-A, qual seja, o estupro de vulnerável.
2 CONCEITO DE DELITO
Muito se discute sobre o conceito de delito e as consequências jurídicas de cada construção. Certo é que podemos entendê-lo em três concepções: formal, material e analítica. Esses conceitos são abordados de forma impar por vários doutrinadores; destaca-se, nas linhas abaixo, os estudos de Luiz Regis Prado. No conceito formal, temos que o delito é todo fato humano proibido em lei. Tal definição é importante para definirmos o campo de abrangência e a legitimidade conferida ao Estado, por meio da função legislativa, para definir a conduta típica. Vislumbra-se tal exigência no art. 1º do Código Penal Brasileiro[1], pois somente lei anterior àquela conduta pode defini-la como crime, segundo o Princípio da Anterioridade.
No conceito material, tem-se preceito sensivelmente vinculado à reprovação social sobre determinados comportamentos. Assim, delito é toda conduta altamente lesiva ou que expõe a perigo um bem jurídico vinculado diretamente ligado à indispensabilidade da vida em comunidade: dignidade, harmonia, liberdade e paz social, por exemplo.
Por fim, o conceito analítico, e, talvez, o mais abrangente, conclui que delito é toda ação ou omissão típica, ilícita e culpável, ou seja, aquela descrita em lei como delito, contrária ao direito e que, em resposta à tais desdobramentos, origina a reprovação pessoal e social da conduta ilícita.
Resumidamente, tem-se que típica é a conduta descrita em lei como delito; ilícita é aquela contrária ao próprio ordenamento, por realizar o proibido; e, por fim, culpável é a ação ou omissão que atrai para si um senso de censura (social e legal) entre a conduta do agente e as consequências desta.
3 DO ESTUPRO DE VULNERÁVEL
A Lei 12.015/09 trouxe, ao ordenamento jurídico, a reformulação do Título VI da parte especial do Código Penal Brasileiro, alterando as disposições sobre os Crimes contra a Dignidade Sexual. Assim, a antiga denominação “Crimes contra os Costumes” deu lugar ao sentimento da própria liberdade sexual da pessoa, não relacionando mais tais crimes aos costumes manifestados em sociedade.
As alterações mais sensíveis, no sentir deste trabalho, estão descritas no Capítulo II – Dos Crimes Sexuais contra Vulnerável. Essas manifestações são importantes para percebermos a intenção do legislador, naquele momento, de proteger os que estavam em desvantagem psíquica e biológica aos sujeitos ativos de tais crimes.
Rogério Greco, ao analisar as renovações normativas advindas dessa lei, exterioriza que, “(...) com louvor, visando acabar de vez por todas, com essa discussão, surge em nosso ordenamento jurídico penal, fruto da lei 12.015, o delito que se convencionou chamar de estupro de vulnerável” (GRECO, 2013, p. 703). Assim, o Código Penal recebeu novo artigo, qual seja, o 217-A, criando a figura típica do Estupro de Vulnerável, com a seguinte redação:
Art. 217-A . Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14. Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
§ 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
§ 3º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave:
Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.
§ 4º Se da conduta resulta morte:
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
Não restam dúvidas sobre a importância e demasiada necessidade da alteração normativa para a proteção de parte da sociedade que, enquadrada nas especificações da norma, encontrava-se fragilizada.
A lei, nesse sentido, consubstanciou-se no meio mais adequado para salvaguardar os interesses dos menores de 14 anos e daqueles que, em virtude de ausência de discernimento sobre suas faculdades, encontram-se incapacitados de expressar vontade quanto ao ato libidinoso.
Ocorre que tal evento não finalizou as divergências existentes entre a doutrina e a jurisprudência sobre a presunção de violência no crime de Estupro de Vulnerável. Quanto ao disposto no §1º, as divergências parecem sanadas, vez que existem fatores concretos justamente expressos nesse parágrafo. Há um grupo definido, com critérios mais objetivos para a sua composição, nos quais se avalia a incapacidade psicopatológica do sujeito passivo em relação ao agente do crime. A grande contenda existe sobre a presunção de violência contra os menores de 14 anos, tendo em vista utilização de critério puramente biológico para a conclusão da vulnerabilidade. Certamente, vale desvendar algumas informações sobre o tema, alicerçando um estudo mais escavado acerca das condições das supostas vítimas desse delito.
3.1 Do critério biológico para a aferição de vulnerabilidade
Conforme já mencionado, o legislador optou pelo critério biológico, no caput do art. 217-A, ao definir como vulnerável o menor de 14 anos. Em que pese um conceito específico, a escolha do legislador não sungou o debate sobre o real entendimento da vulnerabilidade da vítima.
Rogério Greco, expressando seu entendimento mais uma vez, salienta que “(...) existe um critério objetivo para a análise da figura típica, vale dizer a idade da vítima. Se o agente tinha o conhecimento de que a vítima era menor de 14 anos, mesmo que já prostituída, o fato poderá se amoldar ao tipo penal em estudo” (GRECO, 2013, p. 704).
O mesmo doutrinador conclui: “agora, não poderão os Tribunais entender de outra forma quando a vítima do ato sexual for alguém menor de 14 anos” (GRECO, 2013, p. 703).
Data maxima venia, os preciosos argumentos do autor, no sentido deste estudo, não merecem acolhida. Tratar de maneira absoluta um tema de tamanha abrangência não é o caminho mais correto, muito menos revela a importância da análise social na conclusão pela para a responsabilidade jurídico-penal do agente.
Assim, em sentido diverso, Guilherme Nucci preleciona que
o nascimento do tipo penal inédito não tornará sepulta a discussão sobre o caráter relativa ou absoluto da anterior presunção de vulnerabilidade (...). A lei não poderá, jamais, modificar a realidade do mundo e muito menos afastar a aplicação do princípio da intervenção mínima e seu correlato princípio da ofensividade (NUCCI, 2009, p. 37).
Esse raciocínio é o mais acertado. Ora, a letra da lei fugiu do propósito e o legislador pareceu desconhecer a realidade da sociedade contemporânea, o mesmo observado por parte da doutrina e jurisprudência. Em um mundo globalizado, formado por constantes e rápidas informações sobre a vida humana, a ingenuidade e a falta de conhecimento tornam-se cada vez mais distantes do cotidiano, afastando o caráter absoluto de qualquer particularidade pessoal.
Imaginemos um relacionamento público, com o consentimento dos pais, entre um rapaz de 18 anos e uma adolescente de 13 anos. Ainda que esta expressasse abertamente o desejo de realizar qualquer ato libidinoso com o parceiro, o mesmo responderia pelo delito descrito no caput do art. 217-A.
Ora, a presunção de violência deve se relativizar em virtude da realidade e experiências da suposta vítima, o que servirá de base para a leitura da vulnerabilidade desta. E não deve o julgador, em sua função primordial, decidir meramente em observação à extrema legalidade, como se desconsiderasse as outras condições e especificidades da análise do caso concreto.
Vale trazer o julgado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, manifestando, no mesmo sentido exposto, sobre a presunção de violência em tal delito:
APELAÇÃO CRIMINAL - ESTUPRO DE VULNERÁVEL - VULNERABILIDADE NÃO COMPROVADA - ABSOLVIÇÃO - POSSIBILIDADE. 1- A condição de vulnerabilidade da vítima, trazida pela Lei nº 12.015/09, é relativa, já que o direito penal não admite presunções absolutas, ainda mais nos dias atuais, onde as cenas sexo são temas dominantes na mídia televisiva. 2- Admitir-se hipocritamente que uma jovem com idade inferior a 14 anos seja ingênua e inexperiente, sem capacidade de se autodeterminar em relação à sua sexualidade, é fazer vista grosa à moderna realidade que aí está, onde as meninas, como no caso dos autos, tomam as iniciativas das relações sexuais, dizendo ao namorado que queria perder a virgindade com ele. 3- Restando comprovado que a conjunção carnal ocorreu de comum acordo, sem que tenha havido qualquer tipo de violência ou grave ameaça, não há que se falar em crime de estupro de vulnerável, pois a inexistência da innocentia consilii afasta vulnerabilidade da vítima. 4- Recurso defensivo provido. Recurso ministerial prejudicado. Grifo nosso (Apelação Criminal 1.0693.10.007817-1/001, Relator(a): Des.(a) Antônio Armando dos Anjos , 3ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 01/11/2011, publicação da súmula em 03/02/2012)
Conforme já salientou Guilherme Nucci, há de se aplicar, indubitavelmente, o princípio da ofensividade na análise do caso, ou seja, verificar se a conduta do agente realmente afronta e macula a dignidade sexual da vítima. Essa investigação se dá, certamente, no curso do procedimento penal, por meio do devido processo legal, com total correspondência aos princípios da ampla defesa, contraditório e isonomia.
Os operadores do Direito, no contexto atual, não se podem valer somente da lei para tutelar as relações existentes em sociedade. O próprio ordenamento jurídico não se forma unicamente pela norma, mas pela aglutinação de outros elementos capazes de completa-las. Nesse condão, diante da análise do caso concreto, o julgador deve apreciar, no decorrer do procedimento criminal, outros fatores para concluir pelo amoldamento da conduta típica ao ato do agente.
Sobre o exposto acima, considerando a importância da leitura integral do caso em que se analisa, a Ministra Carmem Lúcia Antunes Rocha, do Supremo Tribunal Federal, expressou:
A tipicidade penal não pode ser percebida como o trivial exercício de adequação do fato concreto à norma abstrata. Além da correspondência formal, para a configuração da tipicidade, é necessária uma análise materialmente valorativa das circunstâncias do caso concreto, no sentido de se verificar a ocorrência de alguma lesão grave, contundente e penalmente relevante do bem jurídico tutelado. (HC 114300, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Segunda Turma, julgado em 14/05/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-100 DIVULG 27-05-2013 PUBLIC 28-05-2013).
Ou seja, não basta o amoldamento da conduta praticada pelo agente ao modelo legal descrito em lei. Esse é o primeiro passo, mas não o único, a fim de que se apure a responsabilização do agente e as consequências da conduta à vítima.
Conclui-se, portanto, que a presunção de violência é relativa, no caso específico da conduta descrita no caput do art. 217A, qual seja, a prática de ato libidinoso com o menor de 14 anos. Somente com devido processo legal, a violência será devidamente visualizada e, no mesmo sentido, atestada a ofensividade da conduta do agente em relação à dignidade da suposta vítima.
Essa construção é indispensável, na atual introspecção das Ciências Criminais, para empreender as devidas transformações no sistema jurídico das democracias modernas. Não é possível e praticável, no contexto do Estado Democrático de Direito, a permanência de absurdos jurídicos e conclusões pelas metades, forçadas a desrespeitar as exigências e realidades da própria sociedade.
CONCLUSÃO
O Direito, certamente pertence e se vincula diretamente às exigências sociais. E, ao se agregar aos anseios do povo, demonstra a preocupação dos operadores em registrar a vida cotidiana da sociedade, resguardando os interesses mais sensíveis do corpus social.
Assim, orientado pelo clamor popular na efetiva proteção dos interesses de particulares grupos da própria sociedade, o legislador editou e publicou a Lei 12.015, de 07 de agosto de 2009. Com o advento de tal lei, fora criada a conduta típica descrita no art. 217-A do Código Penal, qual seja, o Estupro de Vulnerável.
Em que pesem as inovações normativas já expostas, a discussão sobre a presunção de violência, no específico caso dos menores de 14 anos, ainda não se mostrou resolvida. A posição majoritária de vários Tribunais, acompanhada por parte da doutrina, considera como absoluta a presunção de violência, tendo em vista disposição objetiva expressa em lei.
Através das construções trazidas pelo presente estudo, a conclusão mais acertada orienta a relativizar tal presunção, tendo em vista as evidentes transformações da própria sociedade. Ora, é inconcebível acreditar que todos os menores de 14 anos, por expressa previsão legal, são vulneráveis. É importante, na análise do caso concreto, respeitando os liames do devido processo legal, aferir tal grau de vulnerabilidade. Somente assim o julgador pode concluir pela responsabilização jurídico-penal do agente, não por mera previsão legal.
Com as conclusões pretendidas, o Direito se renova e se transforma em verdadeira promoção social. A análise do caso concreto, valendo não somente das disposições legislativas, mas também das outras fontes (costume, doutrina e jurisprudência), é o caminho certo para a evolução e renovação do próprio Direito, coadunando as exigências sociais e democráticas do nosso tempo.
BIBLIOGRAFIA
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 114300. Relatoria da Ministra Carmen Lucia Antunes Rocha. Brasília, 14 de maio de 2013.
GRECO, Rogério. Código Penal Comentado – 7ª Ed. Niterói: Impetus, 2013.
MINAS GERAIS, Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Criminal nº. 1.0693.10.007817-1/001. Relator: Desembargador Antônio Armando dos Anjos. Belo Horizonte, 03 de fevereiro de 2009.
NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual – comentários à Lei 12.015 de 7 de Agosto de 2009. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal brasileiro. 4. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: RT, 2004.
[1] Art. 1º - Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.
Advogado Militante. Mestrando em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/MG.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOARES, Igor Alves Noberto. O critério objetivo da idade e a presunção de violência no crime de estupro de vulnerável Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 ago 2013, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36217/o-criterio-objetivo-da-idade-e-a-presuncao-de-violencia-no-crime-de-estupro-de-vulneravel. Acesso em: 22 nov 2024.
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