Antes de tudo o mais, esclareça-se, em obséquio ao dever de honestidade intelectual, que a principal referência bibliográfica deste despretensioso artigo é o prof. Luciano Feldens, à luz de sua obra “A constituição penal: a dupla face da proporcionalidade no controle das normas penais”. [1] Deveras, acredito que dentro da literatura nacional quem melhor soube abordar a temática em liça foi o autor citado, que foi meu professor na Especialização em Ciências Criminais logo após minha obtenção do título de bacharelado em Direito, no Centro Universitário de João Pessoa – UNIPE. Fica, dessarte, esta singela homenagem ao autor sobredito.
1. Introdução
Antes de tudo o mais, esclareça-se, em obséquio ao dever de honestidade intelectual, que a principal referência bibliográfica deste despretensioso artigo é o prof. Luciano Feldens, à luz de sua obra “A constituição penal: a dupla face da proporcionalidade no controle das normas penais”. Deveras, acredito que dentro da literatura nacional quem melhor soube abordar a temática em liça foi o autor citado, que foi meu professor na Especialização em Ciências Criminais logo após minha obtenção do título de bacharelado em Direito, no Centro Universitário de João Pessoa – UNIPE. Fica, dessarte, esta singela homenagem ao autor sobredito.
A concepção de um Estado “leviatânico”, idealmente situado em posição oposta ao sujeito-indivíduo, propiciador de uma postura estatal negativa ou absenteísta, não é prestante para fins de um Direito-Penal-Protetor-dos-Direitos-fundamentais. E isso não sem razão: se os direitos fundamentais demandam a proteção eficiente da organização estatal, resulta claro que sua tutela não pode passar ao largo da atuação político-legislativo-penal.
Nessa ordem de idéias, urge introduzir a presente discussão com uma singela indagação: seria constitucional que o legislador, numa atitude de surpreendente benevolência e imbuído de uma mentalidade despenalizadora, alterasse, por exemplo, o preceito secundário do tipo penal do art. 121 (“Matar alguém: Pena – reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos”) para uma pena de multa ou seis meses de detenção? Se de um lado é vedado ao Estado exasperar na previsão normativa abstrata de uma dada pena, por imposição do princípio da proporcionalidade sob o viés da proibição do excesso (limite máximo), por outro, cabe a indagação sobre se é exigível do Estado um limite mínimo, sob a perspectiva da proibição da proteção deficiente ou infraproteção.
Para a compreensão do tema, é necessário sublinhar que, na área do Direito Penal hodierno, a noção de bem jurídico segue desempenhando um papel irrefutavelmente preponderante, operando como um fator decisivo na diagramação – definição das fontes e dos limites – do jus puniendi.
Como conseqüência desse processo evolutivo sedimentado na base do pensamento jurídico-penal, o bem jurídico passa – sem deixar de sê-lo, todavia – de elemento estruturado pela dogmática jurídico-penal a elemento estruturante e informador da política criminal do Estado, cuja legitimidade passa a estar condicionada a um modelo de crime como ofensa a bens jurídicos. (FELDENS, 2005, p. 44).
Tal modelo de crime traduz uma concepção de ilício penal assentada fundamentalmente na ofensa a interesses objetivos, no desvalor que expressa a lesão ou o pôr-em-perigo bens juridicamente protegidos e, portanto, em clara oposição à simples violação subjetiva do dever (D’ÁVILA, 2004). É nesse contexto teórico-conceitual que os mandados (mandamentos, obrigações) constitucionais de penalização assumem um papel ímpar na discussão acerca do princípio da proibição da proteção deficiente dos bens jurídico-penais.
2. Os Mandados Constitucionais de Penalização
Os mandados constitucionais de penalização perfazem um tema a ser compreendido a partir de um relacionamento material que compartem, entre si, a Constituição e o Direito Penal, relação esta que se vê associada à vinculação existente entre a ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídicos (FELDENS, 2005). Entre ambas as categorias, verifica-se uma relação de implicação, a qual, se não chega ao plano da perfeita identidade, caracteriza-se, no magistério de Figueiredo Dias, como uma relação de analogia material, fundada numa essencial correspondência de sentido (mútua referência) e, sob um aspecto de tutela, de fins (FIGUEIREDO DIAS, 2001). Destarte, afirme-se, sem receios, que uma tal correspondência resulta da circunstância de que a Constituição constitui o quadro referencial obrigatório, e não meramente sugestivo (ante sua superioridade normativa), da atividade punitiva.
Nesse diapasão, argumente-se, com Aroyo Zapatero (apud FELDENS, 2005), que em uma sociedade que se pretende organizar à base das decisões políticas contidas na Constituição, o sentido do sistema penal não pode derivar-se tão-só da função que realmente cumpre, mas também da função que “deve cumprir” de acordo com as decisões políticas fundamentais. Outrossim, a relevância penal da Constituição deriva de que esta comporta uma nova idéia de Homem e de Sociedade e um conjunto de princípios normativos de cunho geral que dotam de sentidos as ações dos poderes públicos e, conseqüentemente, a ação de proibir condutas, definir delitos e estabelecer penas.
Se por um lado as bases legitimadoras da penalização hão de estabelecer-se a partir dessa vinculação entre o bem jurídico protegido e sua referência (expressa ou implícita) à ordem constitucional de direitos e deveres fundamentais, por outro, situações existem que a proeminência do bem jurídico-constitucional exigirá, pelo menos quando diante de ataques mais repulsivos, a proteção por meio de normas penais. São as duas faces de uma mesma relação. (FELDENS, 2005, p. 70).
O debate fornece uma repercussão prática em nada despiciente: em aceitando a existência de imposições constitucionais de criminalização, ofertar-se-ia ao Poder Judiciário – ou ao Tribunal Constitucional, a depender do regime – a análise de legitimidade constitucional sobre uma lei que se qualifique não apenas como excedente, mas , também, como deficiente na tutela de bens jurídicos (FELDENS, 2005).
3. O Dever de Prestação Normativa em Matéria Penal: o locus constitucional do problema e seu ponto gravitacional
Diga-se, de plano, que uma eventual renúncia, total ou parcial, pelo constituinte, ao recurso a normas de prestação normativa na senda penal não quer significar que da Constituição não desponte, ainda que de modo implícito, uma obrigação positiva dirigida ao legislador no sentido de conferir proteção (num dado momento e nalguma medida), proteção jurídico-penal a determinados bens jurídicos impregnados de fundamentalidade (FELDENS, 2005). Isto porque “a ausência de normas aplicáveis pode lesionar direitos e interesses individuais” (FELDENS, 2005, p. 73). Para Luciano Feldens,
Passamos a perceber, pois, uma situação de intrínseca conexão entre o dever de prestação normativa em matéria penal e o tema da prospecção objetiva dos direitos fundamentais, haja vista a exigência que se impõe ao Estado de protegê-los (o que eventualmente apenas poderá vir a ocorrer de forma satisfatória quando aludida proteção normativa se verifique por meio de leis penais). (p. 73).
Nesse passo, a problematização em torno dos mandados constitucionais de criminalização deve partir de bases normativo-constitucionalistas, e não propriamente dogmático-penalistas, e isso porque as imposições a uma atuação preponderantemente livre do legislador penal só poderiam provir de uma ordem normativa que se lhe faça superior, externa ao próprio Direito Penal (FELDENS, 2005). Dito de outro modo e sob a lição de Domenico Pulitanò (apud FELDENS, 2005): a obrigação de penalização encontra seu objeto premeditado por uma ordem de valores ditada pela Constituição que se faz, por essa razão mesma, pré-constituída ao legislador. No mesmo passo os ensinamentos de Hans Joachim Rudolph (apud FELDENS, 2005), para quem a Constituição apanha as decisões valorativas fundamentais para a elaboração de um conceito de bem jurídico prévio à legislação penal e, concomitantemente, obrigatório para ela.
A ratio inspiradora que fundamenta a existência dessas normas relaciona-se ao que Dolicini e Marunicci corretamente concebem como a importância atribuída ao bem (merecimento ou dignidade penal) e a necessidade do recurso à pena, considerada como único instrumento capaz de assegurar ao bem uma tutela eficaz. Situações existem em que esse merecimento e essa necessidade (do recurso à pena) decorrem, explícita ou implicitamente da Constituição, hipótese a traduzir, portanto, uma obrigação dirigida ao legislador no sentido de que construa os respectivos tipos penais, ou, se já o fez, que deles não se desfaça sem mais. (FELDENS, 2005, p. 74).
E continua o autor:
Sob certo aspecto, e a advertência é de Pulitanò, a idéia das obrigações constitucionais de penalização encerra uma relação de complementaridade entre as funções delimitadora – tradicionalmente colocadas em primeiro plano – e fundante do Direito Penal, as quais não podem, sob tais circunstâncias, ver-se dissociadas. É sob esta iniludível dialética, ou seja, entre limitação e fundamento dos institutos ou poderes jurídico-penais, que gravita a temática dos mandados constitucionais de penalização. De um lado, um limite garantista intransponível; de outro, um conteúdo mínimo irrenunciável de coerção. (p. 74).
4. Mandado constitucional e mandado legal em matéria penal: distinções
Tais categorias apartam-se não somente quanto ao veículo normativo que as conduz (no caso do mandado constitucional, a Constituição; no do mandado legal, a lei ordinária), mas também quanto aos correspondentes destinatário e conteúdo (FELDENS, 2005).
Quanto ao destinatário do mandado, “na hipótese do mandado constitucional a norma impositiva veicula uma obrigação de legislar em proteção de um bem jurídico-penal; dirige-se, pois, ao próprio legislador penal” (FELDENS, 2005, p. 75). Já o mandado legal, em terreno penal, “tem como destinatários diretos os próprios particulares (cidadãos), que agora se vêem obrigados em face de um dever não apenas genérico, mas também específico de sujeição à lei” (FELDENS, 2005, p. 75).
Quanto ao conteúdo,
o mandado constitucional não define a conduta incriminada, menos ainda estabelece-lhe sanção, mas tão-somente, e de forma nem sempre específica, a conduta por incriminar. Daí por que centra-se, a princípio, em uma obrigação de caráter positivo dirigida ao legislador, para que edifique a norma incriminadora, ou, quando esta já existe, em uma obrigação negativa, no sentido de que se lhe é vedado retirar, pela via legislativa, a proteção já existe. (FELDENS, 2005, p. 75)
O mandado legal (penal), a seu turno,
traz consigo a definição da conduta incriminada e sua respectiva sanção, projetando uma obrigação negativa dirigida aos particulares como potenciais lesionados da ordem jurídico-penal. Excepcionalmente, quanto à vista de crimes omissivos, a norma penal dirige ao particular uma obrigação positiva (por exemplo, nos crimes de omissão de socorro, hipóteses em que o comando é de atuação). (p. 75).
5. A Força Normativa das Regras Constitucionais Definidoras de Mandados de Penalização
Dos mandados constitucionais de penalização derivam limitações à liberdade de configuração do legislador, a qual persiste sendo irrenunciável numa perspectiva minimalista.
Esclareça-se que as normas constitucionais que impõem a criminalização de dadas condutas não são dotadas de uma espécie de “eficácia criminalizadora per si” (FELDENS, 2005). Contudo, tal constatação não conduz à conclusão contrária, no sentido de que sejam elas desprovidas de qualquer eficácia.
Note-se bem: o fato de exigir-se a interpositio legislatoris apenas afasta a possibilidade de punição com base direta e exclusiva no texto constitucional. Nesse viés, cabe afastar, de plano, toda e qualquer concepção tendente a interpretar os dispositivos constitucionais que consubstanciam mandados penalizadores com caráter puramente “semântico”, pois que, afinal de contas, estamos operando com normas, e normas de envergadura constitucional. Calha, aqui, trazer a lume a advertência de Clémerson Merlin Clève (apud FELDENS, 2005, p. 78), para quem
a compreensão da Constituição como norma, aliás norma dotada de superior hierarquia, a aceitação de que tudo que nela reside constitui norma jurídica, não havendo lugar para lembretes, avisos, conselhos ou regras morais e, por fim, a percepção de que o cidadão tem acesso à Constituição, razão pela qual o Legislativo não é o seu único intérprete, são indispensáveis para a satisfação da superior autoridade constitucional.
Para Feldens (2005, p. 78),
De fato, entender diferentemente seria “reduzir a zero” a normatividade exsurgente dessas disposições constitucionais. Seria desprezá-las por inteiro, pois que seu único objeto e exatamente esse, e que delas não se pode retirar, qual seja: uma imposição – relativa, em seus próprios termos – dirigida ao legislador penal para que construa os tipos penais em consonância ao mandado constitucional e, ao mesmo tempo, uma vedação a que proceda a uma radical despenalização de condutas que culmine por retirar integralmente a proteção ao bem jurídico objeto do mandado de criminalização.
Nesse contexto, os mandados de penalização figuram, no ordenamento jurídico-constitucional, como autênticas normas paramétricas na aferição da inconstitucionalidade da lei editada em desconformidade ao seu conteúdo, sujeitando-a, por essa razão mesma, à sanção de nulidade.
Reside, aqui, uma das grandes conseqüências decorrentes da aceitação dos mandados de penalização, qual seja, a de transferir ao Poder Judiciário a possibilidade de sindicar o juízo de (des)necessidade constitucional de tutela penal, cuja realização está reservada, ao menos em princípio, ao legislador (FELDENS, 2005). Para Feldens,
Conquanto de menor de capacidade de concreção, outro efeito que se pode sacar do mandado de penalização verifica-se quando ele preexiste à lei penal por ele requerida. de uma eventual omissão legislativa resultaria, em primeira análise, que o legislador incide em nítida situação de ilicitude constitucional, porquanto sua passividade supõe, nesses casos, uma infração ao ordenamento jurídico, situação essa que se distingue da mera inércia legislativa. Na primeira hipótese (omissão), o legislador está vinculado a um dever jurídico que decorre da própria normatividade exsurgente da Constituição, sendo sua atuação informada, em casos tais, por um princípio de irrenunciabilidade. Sabido que o Tribunal Constitucional não tem o poder de suprir a omissão legislativa, nem mesmo o de “coagir” o Parlamento à construção da lei, em situações que tais é-nos facultado projetar que a futura lei penal, justamente por vi ao mundo normativo em face de um comando constitucional expresso nesse sentido, tem significativamente robustecida sua presunção de constitucionalidade, pelo menos no que respeita à idoneidade do bem jurídico objeto de sua proteção. Tal atributo dificilmente se lhe poderá retirar, salvante, é claro, a hipótese de desvios legislativos que desbordem de outros mandados constitucionais. Caso a omissão legislativa se prolongue no tempo, o único efeito que dela resulta parece ser aquele que se faz inerente à responsabilidade política do Parlamento pelas conseqüências de sua inação, uma vez que, como refere Marín-Retortilho, a inatividade dos poderes constitui uma autêntica contradictio in terminis em um Estado Social de Direito que, por definição, é um Estado prestacional, não sendo desarrazoado sustentar-se que a ausência da norma aplicável pode gerar lesão a direitos individuais. (2005, p. 79).
6. Mandados Constitucionais de Penalização Expressos na CF de 1988
Sem pretensão de registrar exaustivamente todos os mandados de criminalização postos na Constituição de 1988, convém trazer à baila alguns, para efeito de ilustração de tudo quanto se tem dito:
Art. 5º:
XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;
XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;
XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;
XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;
Art. 7º, X - proteção do salário na forma da lei, constituindo crime sua retenção dolosa;
Art. 225, § 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
Art. 227, § 4º - A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.
7. Incorporação Constitucional de Mandados de Penalização: duas concepções distintas de aglutinação sociopolítica e suas implicações sobre os respectivos modelos de Constituição (os exemplos norte-americano e continental europeu)
Em termos objetivos, esclareça-se que há duas diferentes concepções acerca da teoria da legalidade, ao que George P. Fletcher (apud FELDENS, 2005) chama de princípios negativos e positivos da legalidade. Os princípios negativos da legalidade consideram que “a principal tarefa de um sistema legal deve ser proteger a cidadania contra as agressões do Estado, o qual invariavelmente pretende impor sua vontade sobre os cidadãos”: eis a perspectiva norte-americana. Já sob o aspecto da legalidade positiva, “o Estado está obrigado a aplicar o Direito Penal e inclusive considerar que se o Estado não cumpre com este dever infringe a Constituição: essa a perspectiva predominante no continente europeu.[2]
Como bem observa Feldens (2005, p. 91),
essa preocupação originária (quase que) exclusiva com a contenção do poder estatal em invadir a esfera de liberdade individual, identificada com uma visão unilateralista e subjetivista dos direitos fundamentais, própria de um Estado liberal de Direito, alimenta essa abstenção política do constituinte norte-americano ao longo dos tempos (perspectiva eminentemente negativa, absenteísta, de proteção dos direitos fundamentais).
Para Bilbao Ubilos (apud FELDENS, 2005), no fundamento dessa idéia radica aquilo que se apresentaria como a própria razão do surgimento do Estado liberal: salvaguardar a liberdade individual frente ao que se percebia como sua principal ameaça: as possíveis interferências do poder político (público). São os poderes públicos – e, mormente, a Administração Pública – os “inimigos potenciais” das recém conquistadas liberdades. Isso viria a expressar-se na idéia de que o Direito vincula positivamente ao poder público e negativamente aos cidadãos. Com tal construção teórica, dar-se-ia um passo adiante na consagração peremptória de um dos princípios básicos do liberalismo: a clara separação entre Estado e sociedade civil, virtualmente abandonada ao livre jogo das forças sociais.
Ao revés, a doutrina dos direitos fundamentais na Europa desenvolveria – mormente na Alemanha –, e a partir da assunção do modelo de Estado Social de Direito, a teoria dos direitos a prestações estatais positivas, dentre as quais situam-se os direitos de proteção, na acepção de que tal modelo de Estado está obrigado à adoção de dadas medidas, inclusive no plano normativo – e, a depender das circunstâncias, inclusive por meio de normas penais – , à tutela de direitos fundamentais, como é o caso do direito à vida e à dignidade humana (perspectiva positiva de defesa dos direitos fundamentais
Esse a esse último modelo de Estado (social) que este artigo se associa.
8. Mandados Constitucionais de Penalização Implícitos
Uma análise contextualizada da Constituição sugere, iniludivelmente, a existência de normas implícitas de penalização. Como noticia Feldens (2005) a teoria dos mandados implícitos de penalização encontra um aporte teórico concreto a partir da decisão assumida pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, em 25 de fevereiro de 1975, quando declarou insconstitucional a Lei de Reforma do Código Penal, especificamente em razão do aborto, no que estabelecia, a nova legislação, a possibilidade de interromper-se a gravidez dentro dos três primeiros meses de gestação.
Na oportunidade, construindo uma ponte entre a proporcionalidade e o tema dos direitos fundamentais, decidiu aquela Corte sobre a eventual obrigatoriedade de conferir-se proteção juridico-penal à vida intra-uterina. Como explica Feldens (2005, p. 96),
Para o Bundesverfassungsgericht não se tratava de definir se o nasciturus é, ou não, titular do direito à vida – no que acenou negativamente –, mas de reconhecer que o direito à vida – aí incluída a vida intra-uterina –, como valor fundamental, se encontra determinantemente protegido pela Lei Fundamental. De tal sorte, e segundo a dicção do Tribunal Constitucional, não apenas direitos, mas também valores constitucionais fundamentais podem converter-se em bens jurídicos a exigirem proteção por meio de normas penais
Sob um viés dogmático, diga-se que o legislador, havendo de transitar entre um limite máximo e um limite mínimo na conferência de proteção normativa a um direito (ou valor) fundamental, encontra-se vinculado não apenas a disposições constitucionais expressas nesse sentido, senão que também haveria de submeter-se a limitações implícitas, que, no limite, requereriam o recurso a normas penais (FELDENS, 2005). Assim, para o autor assaz citado (p. 97-98),
Tais limitações implícitas decorreriam de uma análise sistemático-axiológica da Constituição, isso a partir das próprias funções do Estado social (e Democrático de Direito) em face de direitos dotados de inequívoca primazia constitucional (no caso das Cortes alemã e espanhola, visou-se à proteção da vida in fieri). A ratio qe fundamenta aludidas decisões reside, em grande parte, em dois aportes dogmáticos relacionados à teoria dos direitos fundamentais, quais sejam:
a) na dupla dimensão dos direitos fundamentais, os quais estariam a exigir não apenas uma atuação negativa do Estado (no sentido de não invadi-los de forma desproporcionada), mas, também, uma ação positiva, no sentido de sua proteção efetiva, como imperativo de tutela (dever de proteção), concepção essa que encontra gestação no desenvolvimento principiológico de um modelo de Estado social e Democrático de Direito;
b) bem assim, na proibição de proteção deficiente (Untermassverbot), nomenclatura cunhada por Canaris, e posteriormente incorporada pelo Tribunal Constitucional alemão, a qual, engendrando matizes identificados ao mandado de proporcionalidade, se antagoniza, com algumas adaptações, à tradicional proibição de excesso. Na síntese do Bundesverssungsgericht, em uma segunda decisão sobre o tema do aborto, “caso não pretenda violar a proibição da proteção deficiente, a configuração da tutela por parte do ordenamento jurídico deve corresponder a exigências mínimas” (BverfGE 88, 28 de maio de 1993).
9. Proporcionalidade e proibição de proteção deficiente: sua estruturação como um limite inferior do espaço de configuração do legislador
Doutrina e jurisprudência tradicionais costumam conjugar o postulado da proporcionalidade à noção de proibição do excesso. Sem embargo, a proibição do excesso (Übermassverbot) revela-se somente como uma de suas facetas.
O desenvolvimento teórico dos direitos fundamentais como imperativos de tutela (deveres de proteção) tem sugerido que a estrutura da proporcionalidade conta com variações que fazem dela decorrer, ao lado da proibição do excesso, a proibição de infraproteção ou de proteção deficiente (Untermassverbot) a um direito inequivocamente reconhecido como fundamental. (FELDENS, 2005, p. 108).
Segundo noticia Luciano Feldens (2005, p. 108)
A proibição de proteção deficiente teve sua dignidade constitucional reconhecida pelo Tribunal Constitucional alemão em seu segunda decisão sobre o aborto. [...]. Salientando que a determinação acerca do(s) tipo(s) de proteção (sanção) a ser conferida é, em princípio, tarefa do legislador, asseverou também o Tribunal Constitucional que o legislador está obrigado observar a proibição de proteção deficiente no cumprimento do dever prestacional por força de mandado constitucional (aqui na forma de deveres de tutela de direitos fundamentais). De acordo com essa proibição da proteção deficiente, as medidas tutelares tomadas pelo legislador no cumprimento de seu dever prestacional no campo dos direitos fundamentais deveriam ser suficientes para oportunizar essa referida proteção adequada e eficaz, bem como estar assentadas em averiguações cuidadosas dos fatos relevantes e avaliações argumentativamente justificáveis (plausíveis). Segundo colhemos da decisão, caso não se pretensa violar a proibição da proteção deficiente, a configuração da tutela por parte do ordenamento jurídico deve corresponder a exigências mínimas.
E continua o autor:
A proibição de proteção deficiente encerra, nesse contexto, uma aptidão operacional que permite ao intérprete determinar se um ato estatal – eventualmente retratado em uma omissão, total ou parcial – vulnera um direito fundamental (pensemos, v.g., na hipótese da despenalização do homicídio). Relaciona-se diretamente, pois, à função de imperativo de tutela que colore os direitos fundamentais, notadamente no que demandam, para seu integral desenvolvimento, uma atuação ativa do Estado em sua proteção. Sob essa perspectiva, opera como ferramenta teórica extraída do mandado de proporcionalidade e que nessa condição predispõe-se a um controle (de constitucionalidade) sobre determinados atos legislativos, justamente no ponto em que medidas dessa ordem promovam uma indevida retirada da proteção (normativa) que se faz inequivocamente necessária ao adequado desenvolvimento e desfrute do direito fundamental. (p. 109).
Para Ingo Wolfgang Sarlet (2004, p. 100),
O que importa destacar no contexto é que o princípio da proporcionalidade, para além de sua habitual compreensão como proibição do excesso, abrange outras possibilidades, cuja ponderada aplicação, inclusive na esfera jurídico-penal, revela um amplo leque de alternativas. Que tanto a proibição de excesso quanto a proibição de insuficiência (já por decorrência da vinculação dos órgãos estatais aos deveres de proteção) vinculam todos os órgãos estatais, de tal sorte que a problemática guarda conexão direta com a intensidade da vinculação dos órgãos estatais aos direitos fundamentais e com a liberdade de conformação do legislador.
Em suma, com a proibição da proteção deficiente pretende-se identificar um padrão mínimo das medidas estatais com vistas a deveres existentes de tutela. Padrão este que também poderia ser exigido do legislador penal, instante esse que caracterizaria o limite inferior de seu espaço de configuração.
Existe, portanto, a necessidade de estabelecer-se um grau suficientemente adequado de proteção ao direito fundamental, de modo a permitir a seu titular o seu desenvolvimento em maior escala. Donde resulta que, no plano jurisdicional, a adoção da proibição de infraproteção autorizaria o afastamento, por invalidez, de normas que introduzam um situação de desproporcionalidade extrema entre os bens jurídicos suscetíveis de proteção, promovendo, relativamente àqueles sabidamente mais valiosos, uma hipótese de evidente infraproteção, a ponto de semear um ambiente de notória desproporcionalidade, irrazoabilidade ou mesmo irracionalidade (FELDENS, 2005).
Destarte, tem-se que o espaço de atuação do legislador está estreitado por dois limites: pela proibição da proteção excessiva em prol do indivíduo restringido na sua liberdade, bem como pela proibição da proteção deficiente em prol do indivíduo a ser tutelado, sendo que se deve extrair da proibição da proteção excessiva a medida máxima, e da proibição da proteção deficiente a medida mínima da atuação legislativa, centrando-se a zona de discricionariedade do Poder Legislativo entre a medida mínima e a medida máxima. (FELDENS, 2005, p. 110).
Como informa Ditelein (apud FELDENS, 2005), segundo a posição dominante da doutrina, o exame do mínimo necessário residiria na segunda fase do exame de proporcionalidade da medida, especificamente na análise de sua necessidade. Desta feita, assim como na proibição da proteção excessiva seria necessário somente aquele meio que, dentre os meios apropriados disponíveis, menos afetasse o indivíduo onerado, no campo da proibição da infraproteção a constatação da necessidade de uma intervenção esclareceria que para o cumprimento do respectivo encargo constitucional inexistiriam possibilidades mais suaves.
Aliás, no atinente à relação temática entre proibição de proteção excessiva e proibição de proteção deficiente, sugerida por similaridades conceituais, Dietlein (apud FELDENS, 2005) põe o foco de discussão para o ambiente das respectivas “necessidades” (exigências). Assim, caberia perguntar se aquela “necessidade” (exigência) no sentido da proibição da proteção excessiva efetivamente é idêntica àquela medida de “necessidade” que a proibição de infraproteção formula para o cumprimento de deveres prestacionais de legislação. Nesse ritmo, Dietlein entende pela negativa, pelas seguintes razões reproduzidas por Feldens (2005, p. 115):
A necessidade no sentido da proibição excessiva é uma grandeza referida a uma lei concreta. A variáveis da regra-de-três formulada pela proibição da proteção excessiva consistem na finalidade da regulamentação definida pelo legislador ordinário por força da sua “competência de definição do fim”, bem como nos meios para a consecução do fim, escolhidos pelo legislador. Com isso, a constatação da necessidade do meio escolhido pelo legislador ordinário para a consecução do fim igualmente por ele definido restringe-se – como o princípio da proporcionalidade na sua totalidade –, por assim dizer, ao “âmbito interno” da lei. Em oposição a isso, a necessidade da proibição da proteção deficiente representa uma grandeza que transcende a lei concreta, é em princípio não influenciada pela sua concepção finalista e está referida diretamente – isto é, sem mediações – ao Direito Constitucional.
Assim,
Para a relação da proibição da proteção excessiva e da proibição da proteção deficiente vale, em princípio, o seguinte: a proibição da proteção excessiva afirma tão-somente “se” o legislador persegue o objetivo por ele definido com meios proporcionais (não-excessivos), mas não “se” e “em que medida” essa perseguição do objetivo, bem como o empenho do meio escolhido, é um mandamento ou mesmo uma exigência da Constituição. (p.116).
10. Conclusões
O presente artigo revelou uma problematização muito definida. Objetivou-se tratar sobre uma face do postulado da proporcionalidade que não goza de tanta publicidade e aprofundamento nos meios acadêmicos, qual seja, a idéia de proibição da proteção deficiente.
Talvez este “pré-conceito” – no sentido de posicionamento opinativo que antecede à própria compreensão suficiente do objeto cognoscível – se explique pela herança teórica do dualismo Estado-Sociedade ou Estado-indivíduo, cujas origens remontam à ultrapassada – mas relativa e historicamente recente – idéia do Estado liberal. Outrossim, pode-se dizer que tal postura dogmática ainda está arraigada na geração dos direitos fundamentais de primeira dimensão, que estava a exigir, naquele pico histórico, uma postura abstencionista do Estado, isto é, dava-se primazia ao direito de liberdade.
Essa idéia, contudo, deve ser revisitada. O Estado não pode mais ser compreendido como um leviatã, um opressor ou poder maléfico contra o qual os homens devem se opor através de direitos-garantias para se resguardar. Ao revés, ele – o Estado – deve ser teoricamente posto e pressuposto ao lado do cidadão e, a fortiori, dos direitos fundamentais. Não fosse assim, não se poderia emprestar fôlego à exigência de que o Estado proteja tais direitos humanos constitucionalizados.
Com base nessa perspectiva, este artigo se propõe a mostrar que a Constituição Federal exige que o Estado resguarde, suficientemente, alguns bens jurídicos reputados fundamentais por ela mesma. E isso através de um meio muito específico: o legislador penal, através de penalização de condutas tidas por ofensivas aos direitos fundamentais, mas não de forma tão branda quanto deficiente, mas, muito pelo contrário, de modo tão eficiente quanto necessário, observando, desta feita, o princípio da proibição da proteção deficiente, mas sem incorrer em excessos, como deve ocorrer num Estado que se pretenda de Direito.
11. Referencial Teórico
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FELDENS, Luciano. A constituição penal: a dupla face da proporcionalidade no controle das normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
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FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Temas Básicos da Doutrina Penal. Coimbra: Coimbra, 2001.
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SARLET, Ingo Wolfgang. “Constituição e Proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre a proibição de excesso e a proibição de insuficiência”, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 47, a. 12, n. 47, mar.-abr. de 2004.
[1] Livro publicado pela Livraria do Advogado, em Porto Alegre (vide em referências bibliográficas).
[2] Daí porque, diferentemente do que ocorre em países da Europa, um “dever de castigar” seria inimaginável na constituição dos Estados Unidos, eis que tanto o estado Federal como os distintos Estados que o integram estão obrigados a proteger os direitos do acusado, e não os da sociedade e os das vítimas (FLETCHER apud FELDENS, 2005).
Procurador Federal da AGU - Advocacia Geral da União. Mestrando em Direito. Especialista em Direito Constitucional. Especialista em Direito Administrativo. Especialista em Direito Processual Civil. Especialista em Ciências Criminais.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DIAS, Jorge Andersson Vasconcelos. Mandados Constitucionais de Penalização e o Princípio da Proibição da Proteção Deficiente dos Bens Jurídico-Penais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 set 2013, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36482/mandados-constitucionais-de-penalizacao-e-o-principio-da-proibicao-da-protecao-deficiente-dos-bens-juridico-penais. Acesso em: 22 nov 2024.
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