Ao apelar para o quase consenso da opinião pública, no seu voto contra os embargos infringentes, o Ministro Marco Aurélio gerou muita polêmica no meio jurídico. Fora do mundo jurídico o apoio popular e midiático ao seu argumento foi generalizado. O problema é que a Lei Orgânica da Magistratura e a Constituição brasileira não autorizam que o juiz decida de acordo com a opinião pública. Com frequência o que ele decide está em consonância com a vontade da maioria. Mas pode ser o contrário. Quando o STF admitiu o aborto anencefálico ou a utilização de células tronco ele contrariou boa parte da população. E por que essas duas normas jurídicas (Lei Orgânica e Constituição) assim procedem?
Porque a legitimação do juiz, como diz Ferrajoli (Derechos y garantias – La ley del más débil), “não deriva da vontade da maioria, cujas leis são dela expressão. Seu fundamento é unicamente a intangibilidade dos direitos fundamentais. Nisso reside a legitimidade democrática do juiz, derivada da sua função de garantia dos direitos fundamentais, sobre a qual se ancora a chamada ‘democracia substancial’”. Nenhum debate jurídico no Estado democrático de direito, sob pena de grave ofensa aos próprios fundamentos da democracia evoluída, pode descambar para a desabrida argumentação política e populista (essa impossibilidade também está no nosso livro Populismo penal midiático: Saraiva, 2013).
Somente no sistema político tendencialmente demagógico, dizia Aristóteles, “a soberana é a massa, não a lei”. Todo o poder emana do povo, é verdade, mas a Constituição brasileira não aceita sua opinião como argumento jurídico porque o povo nem sempre é homo sapiens (o julgamento de Jesus Cristo basta como prova disso). Quando o juiz invoca a opinião popular como fundamento do seu voto ele necessariamente, nesse caso, considera o povo como totalidade, como se fosse uma realidade homogênea. Quando um juiz submete seu julgamento à opinião pública resta sempre saber a qual parte dela está se referindo, porque a opinião pública nunca é unânime (sempre fracionária, fragmentada). No caso mensalão formou-se quase um consenso contra os mensaleiros (que, na minha opinião, devem mesmo ser condenados, em razão do parasitismo que praticaram), mas no caso concreto da admissibilidade dos embargos infringentes cabe notar que o tema é extremamente polêmico, tanto que a votação chegou a 5 a 5.
De acordo com a visão jurídica predominante, os regimes totalitários e populistas é que consideram a vontade da maioria mais influente como a opinião do “todo”. Os “chefes” despóticos é que falavam e ainda falam em nome do povo inteiro (como se o povo inteiro concordasse com ele): assim procederam, por exemplo, Hitler, Mussolini, Franco, os militares na ditadura brasileira etc. Quando um juiz invoca a vontade popular (a famosa “opinião pública”) como fundamento de um voto ele consegue “a homologação dos condescendentes” (sobretudo as primeiras páginas dos jornais alinhados), mas isso avilta a inteligência dos dissidentes, que não pensam como ele e que passam a ser vistos como inimigos e traidores do “consenso forjado” pela momentânea maioria (Ferrajoli, Poderes selvagens).
Essa é a razão pela qual a Constituição brasileira não permite que nenhum juiz, na discussão de um processo sob sua jurisdição, fuja das estreitas margens do ordenamento jurídico, aprovado pelos representantes do povo. Nisso está sua legitimação democrática. Do contrário, comporta-se o juiz como um político e discursa como tal, correndo o risco de se enlamear na falta de credibilidade e de honorabilidade inerente a esta desqualificada classe, o que pouca gente no Brasil contesta (81% dos entrevistados pelo Ibope acham a classe política brasileira corrupta ou muito corrupta).
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