1. Sabe-se que a Constituição Federal estabeleceu como regra a realização de prévia licitação pelo Poder Público para contratação de obras, serviços, compras e alienações, admitindo, porém, exceções a serem disciplinadas por Lei.
2. Visando disciplinar tais exceções, a Lei de Licitações trouxe em seu artigo 24, hipóteses em que é possível a contratação direta por dispensa, dentre elas aquela prevista no inciso IV, que assim estabelece:
“Art. 24. É dispensável a licitação
(...)
IV - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos”
3. Pela leitura do inciso acima mencionado, verifica-se que a letra da lei exige o atendimento de alguns requisitos para que seja possível a contratação por dispensa nos casos de emergência.
4. O primeiro deles refere-se à necessidade de ser caracterizada a urgência de atendimento de uma situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares.
5. O Administrador deverá demonstrar nos autos da dispensa dados objetivos e concretos quanto a imprescindibilidade da contratação. Também o prejuízo deverá ser irreparável, devendo haver a comprovação de que a contratação imediata evitará prejuízos que não possam ser recompostos posteriormente.[1]
6. Nesse sentido, o entendimento do Tribunal de Contas da União acerca da necessidade de se demonstrar a urgência da contratação:
7. [RELATÓRIO]
Trata-se do Relatório de Auditoria de Conformidade [...] com a finalidade de apurar possíveis irregularidades na aplicação de recursos públicos na área da saúde, tendo em vista a situação caótica que se instalara na Secretaria de Saúde do Estado de Tocantins, ocasionando até o desabastecimento de medicamentos na rede hospitalar estadual.
[...]
10. [...] 'Realização de dispensa mediante alegação imprópria de emergência ou calamidade pública'. [...]
[...]
11. Quanto ao Achado de Auditoria em tela, a equipe destacou as causas, as evidências, os responsáveis e apresentou as seguintes conclusões:
a) o inciso IV do art. 24 da Lei no 8.666/93 aplica-se apenas 'nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens públicos ou particulares'. Não se aplica esse dispositivo por falhas ou omissões no planejamento das datas dos eventos, sejam eles administrativos, sociais ou políticos;
b) conforme os grifos acima, depreende-se que é condição sine-qua-non dessa modalidade de dispensa a ocorrência simultânea de dois fenômenos: 1) situação emergencial ou a supereminência de calamidade pública e 2) a necessidade de urgência no atendimento dessa situação, sendo que sem essa urgência poderá 'ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens públicos ou particulares';
c) a emergência em Direito está relacionada ao instituto da necessidade (Estado de Necessidade);
d) entretanto, apesar de necessárias, não são suficientes, para a dispensa de licitação prevista no inciso IV do art. 24, apenas a ocorrência simultânea da emergência/calamidade pública, com a existência do risco de prejuízo ou do comprometimento da segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens públicos ou particulares. Além desses requisitos, necessita a demonstração concreta de que a contratação direta, e imediata, foi a via adequada e eficaz para eliminar o risco advindo da emergência ou da calamidade.
12. A equipe de auditoria destacou, ainda, acerca do assunto, a interpretação da referida norma dada pelo TCU, consubstanciada na Decisão no 347/94 - TCU - Plenário, quando a Corte de Contas estabeleceu pressupostos da aplicação do caso de dispensa preconizado no art. 24, inciso IV, da Lei n 1o 8.666/93, a saber:
'a.1) que a situação adversa, dada como de emergência ou de calamidade pública, não se tenha originado, total ou parcialmente, da falta de planejamento, da desídia administrativa ou da má gestão dos recursos disponíveis, ou seja, que ela não possa, em alguma medida, ser atribuída à culpa ou dolo do agente público que tinha o dever de agir para prevenir a ocorrência de tal situação;
a.2) que exista urgência concreta e efetiva do atendimento à situação decorrente do estado emergencial ou calamitoso, visando afastar risco de danos a bens ou à saúde ou à vida de pessoas;
a.3) que o risco, além de concreto e efetivamente provável, se mostre iminente e especialmente gravoso;
a.4) que a imediata efetivação, por meio de contratação com terceiro, de determinadas obras, serviços ou compras, segundo as especificações e quantitativos tecnicamente apurados, seja o meio adequado, efetivo e eficiente de afastar o risco iminente detectado'.
13. No presente caso, conforme verificado na fiscalização, nenhum desses requisitos se apresentou para justificar o procedimento irregular apontado. sem grifos no original
8. Partindo do pressuposto de que a urgência deve estar amplamente caracterizada no processo administrativo, tema que tem surgido e sido debatido pelos doutrinadores e julgadores do TCU refere-se à possibilidade de se contratar diretamente quando a emergência decorrer de uma omissão do Administrador.
9. Na doutrina há divergência de entendimentos, enquanto a Corte de Contas modificou seus julgados sobre tema.
10. Lucas Rocha Furtando, em sua obra Curso de Licitações e Contratos Administrativos, 2ª Edição revista e ampliada, Editora Fórum, defende a linha de que “admitir que a inércia do administrador possa criar situação emergencial que venha legitimar a contratação direta significa, na prática, abrir as portas para todo o tipo de desmando em matéria de licitação. Esse tipo de raciocínio transformaria todas as regras e princípios constitucionais e legais acerca do tema em letra morta. Admitir que o contrato decorrente da contratação direta justificada por situações emergenciais criadas pela desídia do administrador seja válido, e buscar apenas a punição desse administrador negligente, é entendimento que legitima o conluio entre o administrador e empresa ou profissional contratado”
11. Contudo, esse não é o ensinamento de Jorge Ulisses Jacoby Fernandes[2], que entende que “efetivamente se ficar caracterizada a emergência, e todos os outros requisitos estabelecidos nesse dispositivo, pouco importa que a mesma decorra da inércia do agente da Administração ou não! Caracterizada a tipificação legal, não pode a sociedade ser duplamente penalizada pela incompetência dos servidores públicos ou agentes políticos: dispensa-se a licitação em qualquer caso.”
12. Na mesma linha de raciocínio Marçal Justen Filho[3]:
“ Isso não significa afirmar a possibilidade de sacrifício do interesse público em conseqüência da desídia do administrador. Havendo risco de lesão ao interesse público, a contratação deve ser realizada, punindo-se o agente que não adotou as cautelas necessárias. A questão apresenta relevância especialmente no tocante à comumente “emergência fabricada”, em que a Administração deixa de tomar tempestivamente as providências necessárias à realização da licitação previsível. Assim, atinge-se o termo final de um contrato sem que a licitação necessária à nova contratação tivesse sido realizada. Isso coloca a Administração diante do dilema de fazer licitação (e cessar o atendimento a necessidades impostergáveis) ou realizar a contratação direta (sob invocação da emergência). O que é necessário é verificar se a urgência existe efetivamente e, ademais, se a contratação é a melhor possível nas circunstâncias. Deverá fazer-se a contratação pelo menor prazo e com o menor prazo possível, visando a afastar o risco de dano irreparável. Simultaneamente, deverá desencandear-se a licitação indispensável. Ou seja, a desídia administrativa não poderá redundar na concretização de danos irreparáveis ao interesse público, mas se resolverá por outra via. Comprovando-se que, mediante licitação formal e comum, a Administração teria obtido melhor resultado, o prejuízo sofrido deverá ser indenizado pelo agente que omitiu o desencandeamento da licitação.”
13. Visto a divergência doutrinária, é interessante averiguar a evolução do entendimento da Corte de Contas. A Decisão 347/94[4], em resposta à consulta formulada pelo Ministro dos Transportes, apresentou como requisito a ser observado na contratação por dispensa, que a emergência não tenha sido criada por falta de planejamento, desídia administrativa ou de má gestão dos recursos disponíveis, ou seja, que ela não tenha sido, de forma alguma, atribuída à culpa ou dolo do agente público que tinha o dever de prevenir a ocorrência de tal situação.
14. Contudo, referido entendimento foi alterado pelo Acórdão 1.876/2007, que reconheceu que “A dispensa prevista no art. 24, IV, da Lei 8.666/93 não distingue a emergência real, resultante do imprevisível, daquela resultante da incúria ou inércia administrativa, sendo cabível, em ambas as hipóteses, a contratação direta, desde que devidamente caracterizada a urgência de atendimento a situação que possa ocasionar ou comprometer a segurança das pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares.”
15. Sedimentando tal posicionamento, a Advocacia Geral da União expediu a Orientação Normativa 11, nos seguintes termos:
“A CONTRATAÇÃO DIRETA COM FUNDAMENTO NO INC. IV DO ART. 24 DA LEI Nº 8.666, DE 1993, EXIGE QUE, CONCOMITANTEMENTE, SEJA APURADO SE A SITUAÇÃO EMERGENCIAL FOI GERADA POR FALTA DE PLANEJAMENTO, DESÍDIA OU MÁ GESTÃO, HIPÓTESE QUE, QUEM LHE DEU CAUSA SERÁ RESPONSABILIZADO NA FORMA DA LEI.”
16. Através do fundamento da referida ON, pode-se perceber que foi reconhecida a possibilidade de se promover a contratação direta de bens e serviços emergenciais, mesmo que decorrente de má gestão ou desídia, devendo, contudo, ser apurada a responsabilidade de quem deu causa.
17. Por outro lado, a contratação direta somente pode abarcar os bens necessários ao atendimento da situação emergência. A Administração somente está autorizada a contratar, por dispensa, os bens ou serviços estritamente necessários ao afastamento da situação emergencial.
18. A legislação traz ainda uma limitação temporal nas contrações diretas em decorrência de emergência, que não poderá ultrapassar 180 dias.
19. Assunto polêmico nesse aspecto diz respeito à possibilidade de renovação do contrato, celebrado em decorrência de uma situação emergencial, face ao limite temporal imposto pela Lei.
20. O doutrinador Marçal Justen Filho, na doutrina já citada, pag. 241, entende que embora a legislação vede a prorrogação da contratação direta em decorrência de situação emergencial, tal limitação deve ser interpretada com cautela. Para referido autor, “afigura-se claro que tal dimensionamento pode e deve ser ultrapassado, se essa alternativa for indispensável a evitar o perecimento do interesse a ser protegido.” Referido jurista prossegue aduzindo que “A prorrogação é indesejável, mas não pode ser proibida. Nesse ponto, a lei deve ser interpretada em termos. A prorrogação poderá ocorrer, dependendo das circunstâncias supervenientes. “
21. O Tribunal de Contas da União, de uma maneira geral[5], veda a prorrogação de um contrato celebrado em decorrência de uma emergência, ao argumento de que uma vez ocorra a nova situação emergencial, novo contrato deverá ser celebrado, não sendo possível sua prorrogação.
22. Todavia, referida Corte de Contas, ao examinar o processo TC – 500.296/96-0 admitiu, de forma excepcional, a prorrogação do contrato emergencial, utilizando-se dos ensinamentos doutrinários mencionados acima para fundamentar sua decisão. Assim, é de se concluir que, nos contratos emergenciais, pode haver prorrogação em período superior a 180 dias, desde que ocorra situação excepcional e estranha a vontade das partes.
23. Por tudo que foi exposto no presente artigo, pode-se perceber que a Lei permite a contratação direta de bens e serviços quando restar caracterizada situação emergencial. O fato da emergência decorrer da desídia, má gestão ou de ausência de planejamento do administrador não impede a contratação direta, devendo, contudo, ser promovida a apuração da responsabilidade de quem deu causa.
24. Além disso, a contratação deve, ainda, estar limitada à aquisição de bens e serviços estritamente necessários ao afastamento da situação emergencial, e o contrato somente pode ultrapassar o prazo de 180 dias em situações supervenientes.
[1] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos. 10ª edição. 2004
[2] FERNANDES. Contratação direta sem licitação, p. 178, 179
[3] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos. 10ª edição. 2004
[4] Decisão
O Tribunal Pleno, diante das razões expostas pelo Relator, DECIDE:
1. conhecer da consulta formulada pelo Exmo. Sr. Prefeito da Cidade do Recife, ante a relevância do tema, e por se tratar de questionamento que apresenta, em tese, utilidade para os diversos entes federados;
2. Responder ao interessado que é possível, quando da dispensa de licitação nos casos de emergência ou calamidade, consoante o disposto no inciso IV do art. 24 da Lei nº 8.666/93, o retardamento do início e da devolução da contagem do prazo de 180 (cento e oitenta) dias, desde que as ações tomadas pela Administração tenham sido prejudicadas pela superveniência de fato excepcional ou imprevisível, estranho à vontade das partes, que altere fundamentalmente as condições de execução do contrato, a teor do disposto no art. 57, § 1º, da mencionada Lei, devendo ser adequadamente fundamentado, levando em conta, inclusive, as determinações contidas na Decisão nº 347/94 – TCU – Plenário (“in” D.O.U. de 21/06/94);
3. Enviar cópia desta Decisão, bem como do Relatório e Voto que a fundamentam, e, ainda, da Decisão nº 347/94 – TCU – Plenário ao interessado;
4. Após a adoção das medidas supra, determinar o arquivamento do presente processo.
[5] Decisão 822/97 – Plenário – Ata 48/97
Procuradora Federal da PGF/AGU
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SALVADOR, Juliana Lima. Da contratação por dispensa de licitação nos casos de emergência. Requisitos. Ausência de planejamento e/ou desídia do Administrador. Consequências. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 out 2013, 07:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37023/da-contratacao-por-dispensa-de-licitacao-nos-casos-de-emergencia-requisitos-ausencia-de-planejamento-e-ou-desidia-do-administrador-consequencias. Acesso em: 22 nov 2024.
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