Resumo: As normas aplicáveis aos convênios e contratos de repasse preveem expressamente a obrigatoriedade de realização de chamamento público quando o pretenso ente recebedor dos recursos for entidade privada sem fins lucrativos, contudo, quando se trata de entes públicos, não há referência expressa à obrigatoriedade de realização prévia do chamamento público, o que poderia conduzir à conclusão de discricionariedade do administrador público na realização ou não de procedimento seletivo prévio. Contudo, há de se ver que a intenção da norma, ao impor a obrigatoriedade de realização de chamamento público no caso de entidades privadas foi a de preservar os princípios da impessoalidade, moralidade e eficiência que regem a atuação da Administração Pública, princípios estes a cuja observância o administrador público também se encontra obrigado quando se trata da celebração de parcerias com entes públicos, haja vista o objetivo final ser igualmente o atingimento do interesse público, através da escolha do ente que torne mais eficaz a execução do objeto. Assim, por imperativo dos princípios da moralidade e impessoalidade, e ainda dos princípios específicos das licitações públicas (art. 3º da Lei nº 8.666/93), que se aplicam aos convênios e contratos de repasse de forma subsidiária (art. 116 da mesma lei), conclui-se pela obrigatoriedade de realização de chamamento público como condição prévia à celebração desses instrumentos com entes públicos, sob pena de afronta aos princípios que regem a atuação da Administração Pública, o que poderia ensejar, inclusive, a configuração da prática de ato de improbidade administrativa, a depender das circunstâncias.
Palavras-chave: Convênios. Contratos de Repasse. Chamamento Público. Entes públicos. Obrigatoriedade. Princípios da Administração Pública. Ato de improbidade administrativa.
1 INTRODUÇÃO
O presente estudo visa a perquirir, sob o ponto de vista do ordenamento jurídico vigente, se a realização de chamamento público precedentemente à celebração de convênios e contratos de repasse com entidades públicas constitui-se obrigação ou discricionariedade do gestor.
Como adiante será demonstrado, as normativas que hoje se aplicam à celebração desses instrumentos preveem expressamente a obrigatoriedade para a realização de chamamento público quando o ente recebedor dos recursos seja entidade privada sem fins lucrativos, contudo, quando se trata da celebração com entes públicos, as normas não fazem referência expressa à obrigatoriedade do gestor de realizar o chamamento, o que pode conduzir à conclusão de mera discricionariedade do ente repassador dos recursos na realização ou não desse tipo de procedimento seletivo.
Cumpre, portanto, ao presente estudo, analisar se, nos casos em que o ente recebedor de recursos em convênios ou contratos de repasse for ente público, o administrador (na pessoa do ente repassador dos recursos) estaria obrigado ou não à realização de procedimento seletivo prévio, na forma de chamamento público.
2 DESENVOLVIMENTO
A Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, que regulamenta o art. 37, inciso XXI[1], da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências, prevê, em seu art. 116:
“Art. 116. Aplicam-se as disposições desta Lei, no que couber, aos convênios, acordos, ajustes e outros instrumentos congêneres celebrados por órgãos e entidades da Administração.
(...)” (grifos nossos)
Não há, atualmente, lei regulando especificamente a matéria de convênios, contratos de repasse e instrumento congêneres, estando a matéria regulamentada através do Decreto nº 6.170, de 25 de julho de 2007 (que dispõe sobre as normas relativas às transferências de recursos da União mediante convênios e contratos de repasse) e suas posteriores alterações, e pela Portaria Interministerial MP/MF/CGU nº 507, de 24 de novembro de 2011, e suas alterações posteriores (onde estão dispostas as principais normas para a proposição, celebração, execução e prestação de contas desses instrumentos de repasse de recursos), sendo aplicável subsidiariamente, como disposto no artigo acima transcrito, a Lei nº 8.666, de 1993.
Sendo assim, por ser essencial à percepção da matéria sobre a qual ora se versa, há de se ter delineados alguns conceitos com base no Decreto nº 6.170, de 2007 e na Portaria Interministerial MP/MF/CGU nº 507, de 2011, a exemplo de: convênio, concedente, convenente, contrato de repasse, contratante, contratada, mandatária da União e proponente.
O Decreto nº 6.170, de 2007, assim define:
“Art. 1o Este Decreto regulamenta os convênios, contratos de repasse e termos de cooperação celebrados pelos órgãos e entidades da administração pública federal com órgãos ou entidades públicas ou privadas sem fins lucrativos, para a execução de programas, projetos e atividades de interesse recíproco que envolvam a transferência de recursos oriundos do Orçamento Fiscal e da Seguridade Social da União.
§ 1º Para os efeitos deste Decreto, considera-se:
I - convênio - acordo, ajuste ou qualquer outro instrumento que discipline a transferência de recursos financeiros de dotações consignadas nos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União e tenha como partícipe, de um lado, órgão ou entidade da administração pública federal, direta ou indireta, e, de outro lado, órgão ou entidade da administração pública estadual, distrital ou municipal, direta ou indireta, ou ainda, entidades privadas sem fins lucrativos, visando a execução de programa de governo, envolvendo a realização de projeto, atividade, serviço, aquisição de bens ou evento de interesse recíproco, em regime de mútua cooperação;
II - contrato de repasse - instrumento administrativo por meio do qual a transferência dos recursos financeiros se processa por intermédio de instituição ou agente financeiro público federal, atuando como mandatário da União;
(...)
IV - concedente - órgão da administração pública federal direta ou indireta, responsável pela transferência dos recursos financeiros ou pela descentralização dos créditos orçamentários destinados à execução do objeto do convênio;
V - contratante - órgão ou entidade da administração pública direta e indireta da União que pactua a execução de programa, projeto, atividade ou evento, por intermédio de instituição financeira federal (mandatária) mediante a celebração de contrato de repasse;
VI - convenente - órgão ou entidade da administração pública direta e indireta, de qualquer esfera de governo, bem como entidade privada sem fins lucrativos, com o qual a administração federal pactua a execução de programa, projeto/atividade ou evento mediante a celebração de convênio;
VII - contratado - órgão ou entidade da administração pública direta e indireta, de qualquer esfera de governo, bem como entidade privada sem fins lucrativos, com a qual a administração federal pactua a execução de contrato de repasse;
(...)” (grifos nossos)
A Portaria Interministerial MP/MF/CGU nº 507, de 2011, por sua vez, assim dispõe:
“Art. 1º Esta Portaria regula os convênios, os contratos de repasse e os termos de cooperação celebrados pelos órgãos e entidades da Administração Pública Federal com órgãos ou entidades públicas ou privadas sem fins lucrativos para a execução de programas, projetos e atividades de interesse recíproco, que envolvam a transferência de recursos financeiros oriundos do Orçamento Fiscal e da Seguridade Social da União.
§ 1º Aplicam-se aos contratos de repasse as normas referentes a convênios previstas nesta Portaria.
§ 2º Para os efeitos desta Portaria, considera-se:
I - concedente: órgão ou entidade da administração pública federal, direta ou indireta, responsável pela transferência dos recursos financeiros e pela descentralização dos créditos orçamentários destinados à execução do objeto do convênio;
II - convenente: órgão ou entidade da administração pública direta ou indireta, de qualquer esfera de governo, consórcio público ou entidade privada sem fins lucrativos, com a qual a administração pública federal pactua a execução de programas, projetos e atividades de interesse recíproco; também entendido como contratado no âmbito do Contrato de Repasse;
III - contratante: órgão ou entidade da administração pública direta ou indireta da União que pactua a execução de programa, projeto, atividade ou evento, por intermédio de instituição financeira federal (mandatária) mediante a celebração de contrato de repasse;
IV - contrato de repasse: instrumento administrativo por meio do qual a transferência dos recursos financeiros processa-se por intermédio de instituição ou agente financeiro público federal, atuando como mandatária da União;
(...)
VI - convênio: acordo ou ajuste que discipline a transferência de recursos financeiros de dotações consignadas nos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União e tenha como partícipe, de um lado, órgão ou entidade da administração pública federal, direta ou indireta, e, de outro lado, órgão ou entidade da administração pública estadual, do Distrito Federal ou municipal, direta ou indireta, consórcios públicos, ou ainda, entidades privadas sem fins lucrativos, visando à execução de programa de governo, envolvendo a realização de projeto, atividade, serviço, aquisição de bens ou evento de interesse recíproco, em regime de mútua cooperação;
(...)
XI - mandatária da União: instituições e agências financeiras controladas pela União que celebram e operacionalizam, em nome da União, os instrumentos jurídicos de transferência de recursos aos convenentes;
(...)
XXII - proponente: órgão ou entidade pública ou privada sem fins lucrativos credenciada que manifeste, por meio de proposta de trabalho, interesse em firmar instrumento regulado por esta Portaria;
(...)” (grifos nossos)
Pois bem. Tomados os principais conceitos atinentes à matéria de que se trata, urge consignar que, com o advento do Decreto nº 6.170, de 2007, fez-se expressa a obrigatoriedade de os concedentes e contratantes, ao objetivarem celebrar um convênio ou contrato de repasse com uma entidade privada sem fins lucrativos, realizarem, previamente à celebração do instrumento, um procedimento denominado “chamamento público”, que consiste na seleção de projetos ou entidades interessadas à realização do objeto do convênio ou contrato de repasse, com base em critérios objetivos, almejando tornar mais eficaz o objeto do ajuste, além de materializar os princípios da impessoalidade, moralidade e eficiência que norteiam a atuação da Administração Pública.
O Decreto nº 6.170, de 2007, em sua redação atual, prevê a realização do chamamento (e as exceções à sua realização) nos seguintes termos:
“Art. 4o A celebração de convênio ou contrato de repasse com entidades privadas sem fins lucrativos será precedida de chamamento público a ser realizado pelo órgão ou entidade concedente, visando à seleção de projetos ou entidades que tornem mais eficaz o objeto do ajuste.
§ 1o Deverá ser dada publicidade ao chamamento público, inclusive ao seu resultado, especialmente por intermédio da divulgação na primeira página do sítio oficial do órgão ou entidade concedente, bem como no Portal dos Convênios.
§ 2o O Ministro de Estado ou o dirigente máximo da entidade da administração pública federal poderá, mediante decisão fundamentada, excepcionar a exigência prevista no caput nas seguintes situações:
I - nos casos de emergência ou calamidade pública, quando caracterizada situação que demande a realização ou manutenção de convênio ou contrato de repasse pelo prazo máximo de cento e oitenta dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação da vigência do instrumento;
II - para a realização de programas de proteção a pessoas ameaçadas ou em situação que possa comprometer sua segurança; ou
III - nos casos em que o projeto, atividade ou serviço objeto do convênio ou contrato de repasse já seja realizado adequadamente mediante parceria com a mesma entidade há pelo menos cinco anos e cujas respectivas prestações de contas tenham sido devidamente aprovadas.
Art. 5º O chamamento público deverá estabelecer critérios objetivos visando à aferição da qualificação técnica e capacidade operacional do convenente para a gestão do convênio.” (grifos nossos)
Já a Portaria Interministerial nº 507, de 2011, prevê um Capítulo específico para a matéria (Capítulo II do Título I), nesses termos:
“CAPÍTULO II
DO CHAMAMENTO PÚBLICO OU CONCURSO DE PROJETOS
Art. 7º Para a celebração dos instrumentos regulados por esta Portaria com entes públicos, o órgão ou entidade da Administração Pública Federal poderá, com vista a selecionar projetos e órgãos ou entidades públicas que tornem mais eficaz a execução do objeto, realizar chamamento público no SICONV, que deverá conter, no mínimo:
I - a descrição dos programas a serem executados de forma descentralizada; e
II - os critérios objetivos para a seleção do convenente ou contratado, com base nas diretrizes e nos objetivos dos respectivos programas.
Parágrafo único. Deverá ser dada publicidade ao chamamento público, pelo prazo mínimo de 15 (quinze) dias, especialmente por intermédio da divulgação na primeira página do sítio oficial do órgão ou entidade concedente, bem como no Portal dos Convênios.
Art. 8º A formação de parceria para execução descentralizada de atividades, por meio de convênio ou termo de parceria, com entidades privadas sem fins lucrativos deverá ser precedida de chamamento público ou concurso de projetos a ser realizado pelo órgão ou entidade concedente, visando à seleção de projetos ou entidades que tornem eficaz o objeto do ajuste.
§ 1º O edital do chamamento público ou concurso de projetos conterá, no mínimo, as seguintes informações:
I - especificação do objeto da parceria;
II - datas, prazos, condições, local e forma de apresentação das propostas;
III - datas e critérios objetivos de seleção e julgamento das propostas;
IV - exigência de declaração da entidade proponente de que apresentará, para celebração do instrumento, comprovante do exercício, nos últimos 3 (três) anos de atividades referentes à matéria objeto do convênio ou termo de parceria que pretenda celebrar com órgão ou entidade, nos termos do § 7º deste artigo;
V - valor previsto para a realização do objeto da parceria; e
VI - previsão de contrapartida, quando cabível.
§ 2º A análise das propostas submetidas ao chamamento público ou concurso de projetos deverá observar os seguintes aspectos, dentre outros que poderão ser fixados pelo órgão ou entidade concedente:
I - a capacidade técnica e operacional do proponente para a execução do objeto da parceria; e
II - a adequação da proposta apresentada ao objeto da parceria, inclusive quanto aos custos, cronograma e resultados previstos.
§ 3º O resultado do chamamento público ou concurso de projetos deverá ser devidamente fundamentado pelo órgão ou entidade concedente.
§ 4º Deverá ser dada publicidade ao chamamento público ou concurso de projetos, inclusive ao seu resultado, especialmente por intermédio da divulgação na primeira página do sítio oficial do órgão ou entidade concedente, bem como no Portal dos Convênios.
§ 5º As informações previstas no § 4º deverão permanecer acessíveis no Portal de Convênios por um período não inferior a 5 (cinco) anos, contados da data da divulgação do resultado do chamamento público ou concurso de projetos.
§ 6º A celebração do convênio ou termo de parceria com entidades privadas sem fins lucrativos será condicionada à apresentação pela entidade do comprovante do exercício, nos últimos três anos, de atividades referentes à matéria objeto da parceria.
§ 7º A comprovação a que se refere o § 6º poderá ser efetuada mediante a apresentação de instrumentos similares firmados com órgãos e entidades da Administração Pública, relatórios de atividades desenvolvidas, declarações de conselhos de políticas públicas, secretarias municipais ou estaduais responsáveis pelo acompanhamento da área objeto da parceria, dentre outras.
§ 8º A comprovação a que se refere o § 6º deverá ser relativa aos três anos anteriores à data prevista para a celebração do convênio, termo de parceria ou contrato de repasse, devendo ser esta data previamente divulgada por meio do edital de chamamento público ou de concurso de projetos.
Art. 9º O titular do órgão ou da entidade concedente poderá, mediante decisão fundamentada, excepcionar a exigência prevista no art. 8º nas seguintes situações:
I - nos casos de emergência ou calamidade pública, quando caracterizada situação que demande a realização ou manutenção de convênio, termo de parceria ou contrato de repasse pelo prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação da vigência do instrumento;
II - para a realização de programas de proteção a pessoas ameaçadas ou em situação que possa comprometer sua segurança; e
III - nos casos em que o projeto, atividade ou serviço objeto do convênio ou contrato de repasse já seja realizado adequadamente mediante parceria com a mesma entidade há pelo menos cinco anos e cujas respectivas prestações de contas tenham sido devidamente aprovadas.” (grifos nossos)
Como se vê, as normas aplicáveis aos convênios e contratos de repasse são claras ao estabelecer a obrigatoriedade de realização de chamamento público quando a formação de parceria para execução descentralizada de atividades for se dar com entidades privadas sem fins lucrativos, na medida em que o Decreto nº 6.170, de 2007 prevê que “a celebração de convênio ou contrato de repasse com entidades privadas sem fins lucrativos será precedida de chamamento público” e a Portaria Interministerial nº 507, de 2011, dispõe que “a formação de parceria para execução descentralizada de atividades, por meio de convênio ou termo de parceria, com entidades privadas sem fins lucrativos deverá ser precedida de chamamento público ou concurso de projetos”. Para tanto, as normas em questão trazem, em linhas gerais, os critérios e aspectos a serem observados na análise das propostas, além das informações que o edital do chamamento público deve conter, bem como a sua publicidade.
Por outro lado, no que toca aos entes públicos, além de o Decreto nº 6.170, de 2007, a eles não fazer menção, a Portaria Interministerial nº 507, de 2011 prevê que “para a celebração dos instrumentos regulados por esta Portaria com entes públicos, o órgão ou entidade da Administração Pública Federal poderá (...)realizar chamamento público no SICONV”, o que leva à possibilidade de interpretação literal, no sentido de haver, no caso, mera discricionariedade do gestor na realização do chamamento público nessas hipóteses.
Ocorre, entretanto, que a disposição sob análise não deve ser interpretada de forma isolada, ou ainda de maneira estritamente literal.
Isto porque a intenção da norma, ao impor a obrigatoriedade de realização de chamamento público como condição prévia à celebração de convênios ou contratos de repasse com entidades privadas, foi principalmente a de preservar os princípios da impessoalidade e moralidade que devem reger a atuação da Administração Pública, além do princípio da eficiência (todos previstos no art. 37[2] da Constituição Federal), consistente na escolha daquela(s) entidade(s) que fosse(m) tornar mais eficaz a execução do objeto, primando-se, assim, pela supremacia do interesse público.
Frise-se que os convênios e contratos de repasse são meios que a Administração Pública Federal se utiliza para repassar recursos financeiros de alta monta a órgãos e entidades públicas e privadas, visando à execução de programa de governo e a realização de projeto, atividade, serviço, aquisição de bens ou evento de interesse recíproco, em regime de mútua cooperação.
Por essa razão, o administrador deve se cercar de todas as cautelas possíveis para que o repasse se dê de acordo com os princípios norteadores de sua atuação (em especial a impessoalidade e a moralidade), tornando inquestionável a probidade na escolha do ente parceiro, a exemplo do que ocorre com o procedimento licitatório.
Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 114), ao discorrer acerca do princípio da impessoalidade, bem pontua:
(...) 19. Nele se traduz a ideia de que a Administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismo nem perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosidades pessoais, políticas ou ideológicas não podem interferir na atuação administrativa e muito menos interesses sectários, de facções ou grupos de qualquer espécie. O princípio em causa não é senão o próprio princípio da igualdade ou isonomia. Está consagrado explicitamente no art. 37, caput, da Constituição. Além disso, assim como ‘todos são iguais perante a lei’ (art. 5º, caput), a fortiori teriam de sê-lo perante a Administração. (...)
O mesmo autor (2009, p. 119), sobre o princípio da moralidade administrativa, ensina:
(...) 23. De acordo com ele, a Administração e seus agentes têm de atuar na conformidade de princípios éticos. Violá-los implicará violação ao próprio Direito, configurando ilicitude que assujeita a conduta viciada a invalidação, porquanto tal princípio assumiu foros de pauta jurídica, na conformidade do art. 37 da Constituição. Compreendem-se em seu âmbito, como é evidente, os chamados princípios da lealdade e boa-fé (...)
Ora, se o que inspira a obrigatoriedade de realização de chamamento público como condição prévia à celebração de convênios e contratos de repasse com entidades privadas sem fins lucrativos é a moralidade administrativa e a impessoalidade, garantindo-se que o administrador não vá preferir (ou preterir, a depender da situação) determinada entidade privada em detrimento de outra que possua semelhante capacidade técnica e operacional para a execução do objeto da parceria, não haveria razão para que, em se tratando de convenente/contratado ente público, o administrador não estivesse submetido à obrigação de zelar pela escolha do ente que melhor atenda à finalidade orçamentária da despesa na qual serão se encontram inseridos os recursos do convênio/contrato de repasse.
Veja-se que a destinação dos recursos públicos em questão deve visar tão somente à satisfação do interesse público em jogo, qual seja a execução (da maneira mais eficaz possível) de programa de governo, projeto, atividade, serviço, aquisição de bens ou evento de interesse público, sempre tendo em conta as necessidades dos beneficiários finais da política pública em questão, que é a população diretamente favorecida pelos investimentos (tal como disposto no inciso XIII[3] do §2º do art. 1º da Portaria Interministerial MP/MF/CGU nº 507, de 2011).
Tome-se como exemplo hipotético um projeto em que o Ministério do Trabalho e Emprego, dentro de suas atribuições legais[4], objetive desenvolver nos municípios brasileiros, destinado à capacitação profissional de jovens que se encontram em condições de vulnerabilidade social. Não havendo, na dotação orçamentária específica, recursos financeiros suficientes para a implementação do referido projeto em todos os municípios da federação, deverá o ente federal, em observância aos princípios da legalidade e supremacia do interesse público, estabelecer critérios que revelem uma ordem de prioridade para a execução do citado projeto, o que poderá incluir, por exemplo, índices de desemprego, estatísticas de desenvolvimento social, etc, a revelar, numa ordem pré-estabelecida, quais os municípios brasileiros cuja população mais demanda a implementação daquele projeto de capacitação profissional, tendo em vista os dados estatísticos coletados.
Nesses casos, por imperativo da moralidade e impessoalidade, como acima já destacado, e sob pena de se permitir escolhas baseadas em critérios preponderantemente políticos, deve restar suficientemente claro, desde o início, o público alvo das ações, os critérios de priorização da ação, e os objetivos finais do projeto a ser implementado, o que só pode ser alcançado através de um procedimento seletivo prévio, onde critérios objetivos possam ser estabelecidos para a escolha dos entes que irão ser beneficiados com os recursos.
Por essa razão, entendemos indispensável a realização de chamamento público prévio também nos casos de celebração de convênios e contratos de repasse com entes públicos, como forma de permitir que, de forma transparente, proba e impessoal, os recursos públicos federais tenham a destinação que realmente atendam aos interesses públicos mais relevantes.
Ressalte-se que, além de atentar contra os princípios norteadores da atuação da Administração Pública em geral, permitir que o administrador elegesse os convenentes e contratados (entes públicos) sem o estabelecimento prévio de critérios objetivos de seleção, significaria atentar também contra os princípios que regem as licitações públicas, considerando-se a aplicação subsidiária da Lei nº 8.666, de 1993, aos convênios e contratos de repasse, tal como acima já delineado.
Com efeito, os procedimentos licitatórios devem observar, além dos princípios constitucionais, também princípios específicos previstos no art. 3º[5] da Lei nº 8.666, de 1993 (igualdade, probidade administrativa, vinculação ao instrumento convocatório e julgamento objetivo), os quais devem ser considerados na matéria atinente a convênios e contratos de repasse, face à subsidiariedade já citada.
Isto porque, tal como nos procedimentos licitatórios, também nos procedimentos concernentes a convênios e contratos de repasse deve-se primar pela observância do princípio da isonomia (entre os possíveis beneficiários dos recursos a serem repassados) e pela seleção da proposta mais vantajosa para a administração (in casu, a proposta mais vantajosa ao interesse público em questão), do que decorre a necessidade de também se observar os demais princípios relativos aos procedimentos licitatórios a exemplo dos princípios da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório (no caso, ao edital do chamamento público), e do julgamento objetivo das propostas.
Acerca da finalidade da licitação, Fernanda Marinela (2010, p. 315/316) ensina:
(...) A licitação tem como finalidade viabilizar a melhor contratação possível para o Poder Público, além de permitir que qualquer um que preencha os requisitos legais tenha a possibilidade de contratar representando o exercício do princípio da isonomia e da impessoalidade.
(...)
Esse procedimento apresenta três exigências públicas impostergáveis:
a) proteção dos interesses públicos e recursos governamentais;
b) respeito aos princípios da isonomia e impessoalidade (art. 5º e art. 37, caput, ambos da CF);
c) obediência aos reclames da probidade administrativa (art. 37, caput e art. 85, V, da CF). (...) (grifos nossos)
Apesar de não se tratar de procedimento licitatório, a lição acima aplica-se (mutatis mutandi) à hipótese dos convênios e contratos de repasse, tendo em vista o objetivo final desses instrumentos, que é a execução da proposta que melhor atenda ao interesse público.
Pelas razões já postas, entendemos ainda que, nas hipóteses de exceção à realização de procedimento seletivo prévio (a exemplo de casos de emergência ou calamidade pública), o administrador público tem o dever de justificar, através de documento formal a que se dê a devida publicidade, com motivos claros e fundamentados, a razão da inexistência do processo seletivo prévio, devendo inclusive deixar claro, através de dados concretos, as razões excepcionais que levam à escolha dos entes públicos beneficiados sem chamamento público anterior, bem como do público alvo a ser atendido, de forma a serem apontadas as peculiaridades desses entes e dos agrupamentos específicos de beneficiários, em relação aos demais entes e pretensos beneficiários, que justificam a sua escolha sem procedimento de seleção prévia.
Entendemos, também, que, a depender do caso, a não observância, pelo administrador dos recursos federais, do procedimento seletivo prévio (chamamento público) para a celebração de convênios e contratos de repasse com entes públicos pode até mesmo ensejar, a depender das circunstâncias do caso concreto, a prática de ato de improbidade administrativa por violação aos princípios da Administração Pública, tal como disciplinado no art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429, de 02 de junho de 1992), e a sua punição tal como disposto no inciso III do art. 12 do mesmo diploma legal:
(...) Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:
I - praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência;
II - retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício;
III - revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições e que deva permanecer em segredo;
IV - negar publicidade aos atos oficiais;
V - frustrar a licitude de concurso público;
VI - deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo;
VII - revelar ou permitir que chegue ao conhecimento de terceiro, antes da respectiva divulgação oficial, teor de medida política ou econômica capaz de afetar o preço de mercadoria, bem ou serviço.
(...)
Art. 12. Independentemente das sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato:
(...)
III - na hipótese do art. 11, ressarcimento integral do dano, se houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos. (...)
Com efeito, considerando que, a teor do disposto no art. 4º da mesma lei, “os agentes públicos de qualquer nível ou hierarquia são obrigados a velar pela estrita observância dos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade no trato dos assuntos que lhe são afetos”, pode haver a prática de ato de improbidade administrativa (por afronta aos princípios da Administração Pública) se num caso específico o gestor direcionar (sem justificativa prévia) os recursos públicos federais de determinado projeto ou programa para um ente público, quando outros entes públicos se encontram em situação de elegibilidade evidentemente superior para a implementação daquele projeto ou programa.
Daniel Amorim e Rafael Carvalho (2012, p. 88/89) são esclarecedores acerca da importância dos princípios jurídicos na atuação do administrador público:
(...) É fácil notar a importância dos princípios jurídicos na atualidade, especialmente pelo reconhecimento de sua força normativa e vinculante no âmbito das relações públicas e privadas.
Ressalte-se que restará configurada a improbidade administrativa na hipótese de violação a todo e qualquer princípio, expresso ou implícito, aplicável à Administração Pública.
Trata-se do reconhecimento do princípio da juridicidade, que impõe a obediência, por parte do administrador público, não apenas das regras formais (legalidade), mas, também, de todos os princípios reconhecidos pela comunidade jurídica. A ideia de juridicidade encontra-se positivada, por exemplo, no art. 2º, parágrafo único, I, da Lei 9.784/99, que exige a “atuação conforme a lei e o Direito.”
(...)
Não seria lógico supor que o administrador tivesse a opção de não observar determinados princípios jurídicos, assim como não seria lícito concluir pela existência de hierarquia abstrata ou normativa entre os princípios constitucionais aplicáveis à Administração.
O pressuposto essencial para configuração do ato de improbidade administrativa, no caso, é a violação aos princípios da Administração Pública, independentemente do enriquecimento ilícito do agente ou de lesão ao erário. (...)
Ademais, a violação aos princípios deve ser conjugada com a comprovação do dolo do agente e o nexo de causalidade entre a ação/omissão e a respectiva violação ao princípio aplicável à Administração. (...) (grifos nossos)
Sendo assim, por tudo quanto se aduziu, inevitável concluir pela necessidade de, observando os princípios da Administração Pública, realizar-se o chamamento público como condição prévia à celebração de convênios e contratos de repasse com entes públicos, sob pena, inclusive, de incorrer o administrador público na prática de ato de improbidade administrativa, a depender das circunstâncias.
3 CONCLUSÃO
Por todo o exposto, conclui-se que, apesar de não haver, nos normativos aplicáveis aos convênios e contratos de repasse, a obrigatoriedade expressa de realização de chamamento público como condição prévia à celebração desses instrumentos com entes públicos (tal como ocorre com as entidades privadas sem fins lucrativos), uma interpretação sistemática e principiológica do ordenamento jurídico pátrio leva à conclusão da necessidade igualmente impositiva da realização de um procedimento seletivo prévio nesses casos, sob pena de se permitir o direcionamento de recursos públicos federais com base em critérios preponderantemente políticos, o que, por sua vez, configuraria afronta a vários princípios que regem a atuação da Administração Pública, (em especial o da supremacia do interesse público, da impessoalidade e da moralidade administrativa), e poderia ensejar, inclusive, a configuração da prática de ato de improbidade administrativa, a depender das circunstâncias.
REFERÊNCIAS:
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 04 nov. 2013.
Decreto nº 6.170, de 25 de julho de 2007. Dispõe sobre as normas relativas às transferências de recursos da União mediante convênios e contratos de repasse, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6170.htm>. Acesso em: 04 nov. 2013.
Lei nº 8.429, de 02 de junho de 1992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8429.htm>. Acesso em: 05 nov. 2013.
Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm>. Acesso em: 04 nov. 2013.
Lei nº 10.683, de 28 de maio de 2003. Dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.683.htm>. Acesso em: 04 nov. 2013.
MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 4. ed. Niterói/RJ: Impetus, 2010.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Manual de Improbidade Administrativa. São Paulo: Método, 2012.
Portaria Interministerial MP/MF/CGU nº 507, de 24 de novembro de 2011. Disponível em: <https://www.convenios.gov.br/portal/arquivos/Portaria_Interministerial_n_507_24_Novembro_2011.pdf>. Acesso em: 05 nov. 2013.
[1] “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
(...)
XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. (...)”
[2] “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...)”
[3] Art. 1º (...)
§2º (...)
XIII - beneficiários finais: população diretamente favorecida pelos investimentos; (...)
[4] Lei nº 10.683, de 28 de maio de 2003:
Art. 27. Os assuntos que constituem áreas de competência de cada Ministério são os seguintes:
(...)
XXI - Ministério do Trabalho e Emprego:
a) política e diretrizes para a geração de emprego e renda e de apoio ao trabalhador;
b) política e diretrizes para a modernização das relações de trabalho;
c) fiscalização do trabalho, inclusive do trabalho portuário, bem como aplicação das sanções previstas em normas legais ou coletivas;
d) política salarial;
e) formação e desenvolvimento profissional;
f) segurança e saúde no trabalho;
g) política de imigração;
h) cooperativismo e associativismo urbanos; (...)
[5] Art. 3o A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos. (...)
Graduada em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba. Pós-graduação lato sensu em Direito Processual - Grandes Transformações, pela UNAMA (Universidade da Amazônia). Advogada da União.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARROS, Helane Medeiros Almeida. Chamamento público como condição prévia à celebração de convênios e contratos de repasse com entes públicos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 nov 2013, 06:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37182/chamamento-publico-como-condicao-previa-a-celebracao-de-convenios-e-contratos-de-repasse-com-entes-publicos. Acesso em: 22 nov 2024.
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