SUMÁRIO: Introdução; 1 Proibição do servidor público de atuar como gerente ou administrador; 2 A criação da EIRELI; 3 Conclusão; Referências.
INTRODUÇÃO
1. A Lei nº 12.441, de 11 de julho de 2011, acrescentou o inciso VI ao art. 44, criou o art. 980-A no Livro II da Parte Especial e alterou o parágrafo único do art. 1.033, todos da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), de modo a instituir a empresa individual de responsabilidade limitada.
2. Com a criação dessa nova figura jurídica, surgiu o seguinte questionamento: pode o servidor público federal constituir uma empresa individual de responsabilidade limitada?
1 PROIBIÇÃO DO SERVIDOR PÚBLICO DE ATUAR COMO GERENTE OU ADMINISTRADOR
3. A Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, em seu art. 117, traz uma lista de proibições aos servidores públicos, dentre as quais se destaca a seguinte:
Art. 117. Ao servidor é proibido:
[...]
X - participar de gerência ou administração de sociedade privada, personificada ou não personificada, exercer o comércio, exceto na qualidade de acionista, cotista ou comanditário;
4. Dessa feita, traz o inciso citado a proibição do servidor público de ser gerente ou administrador de sociedade privada ou de exercer o comércio. Pode, entretanto, ser acionista ou possuir cotas de uma sociedade.
5. A proibição inscrita no inciso X, do art. 117, da Lei nº 8.112, de 1990, “destina-se a proteger a normalidade do serviço público, dirigindo sua especial atenção ao fim de assegurar a prestação da integral jornada de trabalho a que está obrigado por lei o funcionário” [1].
6. Por outro lado, o dispositivo tem a intenção de evitar eventuais conflitos de interesse entre as atividades da empresa e a função pública exercida pelo servidor.
7. Nesse sentido, a Apostila de Treinamento em Processo Administrativo Disciplinar (PAD) da Controladoria-Geral da União – CGU dispõe que o objetivo do legislador foi impedir que os interesses privados do servidor prevalecessem sobre os públicos, vejamos:
Como forma de coibir o desvio de comprometimento e de dedicação e de evitar que o fato de ser investido em cargo público propicie benefícios indevidos ao servidor ou à sociedade de que ele participe ou à atividade que ele pratique e tendo em vista também a existência de uma área de incompatibilidade entre a função pública e a iniciativa privada, a Lei nº 8.112, de 11/12/90, veda ao agente público o exercício de algumas atividades empresariais (termo aqui empregado apenas por sua figurada concisão, mas reconhecendo a imprecisão técnica de fazê-lo, já que a vedação legal vai além da formal configuração empresária): gerência e administração de sociedades privadas e exercício do comércio, conforme a redação dada pela Lei nº 11.784, de 22/09/08.
[...]
Em razão, então, do necessário acerto com que deve ser lido este dispositivo apenador com demissão, é que, não obstante ter se apresentado a literalidade da primeira parte do art. 117, X da Lei nº 8.112, de 11/12/90, afirma-se que o aplicador de qualquer norma, mais do que se debruçar sobre seus detalhes literais, deve encará-la de forma global para tentar extrair a sua inteligência sistemática. Nesse rumo, deve se esclarecer que, independentemente de nuances literais, passíveis de interpretação, o que esse dispositivo legal quer tutelar, em essência, além da questão de controle da prestação integral da jornada de trabalho e de dedicação ao cargo, é sobretudo evitar conflito de interesses público e privado, ou seja, coibir a possibilidade de a sociedade obter qualquer beneficiamento, vantagem ou diferenciação pelo fato de que seu administrador ou gerente é um servidor, dotado de prerrogativas. Em outras palavras, a principal inteligência da norma é evitar que, por ser servidor, o administrador ou gerente de uma sociedade atue em seu próprio favor de forma inescrupulosa.
Daí porque o mandamento da primeira parte do art. 117, X da Lei nº 8.112, de 11/12/90, deve ser entendido com um certo grau restritivo e cauteloso, configurando-se apenas com a comprovação da administração ou da gerência de fato, não bastando figurar de direito no contrato social, no estatuto social ou no mero acordo entre sócios ou em qualquer outro ato da sociedade ou ainda perante órgãos tributários. Em outras palavras, esse enquadramento é precipuamente fático e não apenas de direito. Para que se cogite do enquadramento em tela, necessário que a comissão comprove nos autos a efetiva atuação do servidor como administrador ou como gerente da sociedade. Neste rumo, mencione-se, a mero título de exemplos não exaustivos, os fatos de o servidor assinar cheques, aquisição de insumos, contratos diversos (como de prestação de serviços, de manutenção, de locação de imóvel) ou convênios (como auxílios-alimentação ou saúde para empregados) ou registros profissionais de contratação, férias ou dispensa de empregados; ou firmar livros comerciais ou fiscais; ou figurar como responsável tributário ou em quaisquer outras instâncias extrajudiciais e judiciais. [2] (grifos acrescidos).
8. Dessa feita, como visto acima, o enquadramento da proibição do exercício da gerência é sobretudo fático e não apenas de direito.
9. Não basta que o servidor figure apenas formalmente como gerente ou administrador. É, pois, necessário que efetivamente atue na gestão da empresa.
10. É certo que já ocorreram demissões no serviço público por conta da mera gerência formal de sociedade empresária. Ou seja, bastava constar o nome do servidor no contrato social da empresa como sócio gerente ou administrador para que tivesse como resultado de um processo disciplinar a pena de demissão.
11. Tal resultado era fruto de um processo de interpretação meramente literal da norma. Cabe ressaltar, entretanto, que a interpretação meramente literal é reputada insuficiente, superficial e incompleta. Por isso, o hermeneuta precisa buscar o sentido da norma, o motivo da sua existência, não bastando mais a mera configuração de gerência formal por parte do servidor para ocasionar sua demissão.
12. Deve, pois, ser analisado no caso concreto se no exercício da gerência há real prejuízo para a Administração, se há conflito de interesse entre a Administração e os negócios privados e se há exercício de fato da gerência ou administração da empresa.
13. Apontamentos do Manual de Processo Administrativo Disciplinar (PAD) da Controladoria-Geral da União – CGU dispõem no mesmo sentido:
Mas, ainda que o servidor não tenha cuidado de formalmente sair da posição de mando ou, se for o caso, de encerrar a sociedade, se esta nunca operou ou não opera ou na prática opera com outra pessoa como administrador ou gerente desde que o servidor foi investido no cargo público, pode-se inferir que não haverá afronta à tutela da impessoalidade se, apenas de direito e não de fato, ele figurar em alguma daquelas duas posições de mando, visto que, na prática, não se cogitará de vantagem indevida, tanto a ele mesmo quanto à sociedade.[3]
14. A Advocacia-Geral da União através das “Diretrizes para o Assessoramento Jurídico em Matéria Disciplinar” publicadas no ano corrente, em seu Enunciado nº 13 concluiu: “Configura falta disciplinar prevista no art. 117, inciso X, da Lei nº 8.112/90, o exercício de fato da gerência ou administração pelo servidor público, de sociedade privada personificada ou não personificada, em concomitância com o desempenho de cargo público”.
15. Dessa feita, consolidou-se o entendimento de que é ônus da Administração demonstrar que o servidor pratica de fato a gerência ou administração da sociedade. Tal conclusão decorre também do princípio da busca da verdade real, que orienta a Administração Pública na condução dos processos disciplinares.
16. Traçadas as linhas gerais do ilícito disciplinar, cabe refletir sobre a possibilidade de o servidor público federal ser proprietário de uma EIRELI “empresa individual de responsabilidade limitada”.
2 A CRIAÇÃO DA EIRELI
17. A Lei nº 12.441, de 2011, criou uma nova figura no âmbito empresarial: a empresa individual de responsabilidade limitada. Assim, ao lado das associações, sociedades, fundações, organizações religiosas e partidos políticos, também é pessoa jurídica de direito privado a “EIRELI”.
18. A citada lei conceituou a nova figura como a pessoa jurídica que é “constituída por uma única pessoa titular da totalidade do capital social, devidamente integralizado, que não será inferior a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País”.
19. Vale destacar que a pessoa natural que constituir empresa individual de responsabilidade limitada somente poderá figurar em uma única empresa dessa modalidade.
20. A empresa individual de responsabilidade limitada também poderá resultar da concentração das quotas de outra modalidade societária num único sócio, independentemente das razões que motivaram tal concentração.
21. Por fim, destaca a lei que se aplicam à empresa individual de responsabilidade limitada, no que couber, as regras previstas para as sociedades limitadas.
22. Tal figura foi criada para evitar a incidência do art. 1.033, inciso IV do Código Civil, segundo o qual, “dissolve-se a sociedade quando ocorrer: IV - a falta de pluralidade de sócios, não reconstituída no prazo de cento e oitenta dias”.
23. Assim, a lei excluiu da aplicação desse inciso o caso seguinte: se o sócio remanescente, inclusive na hipótese de concentração de todas as cotas da sociedade sob sua titularidade, requeira, no Registro Público de Empresas Mercantis, a transformação do registro da sociedade empresária para empresário individual ou para empresa individual de responsabilidade limitada.
24. A nova lei intentou fazer desaparecer o chamado “sócio laranja”, que era aquele que detinha, por exemplo, 1% das cotas de uma sociedade, para que o outro sócio, que detinha 99%, pudesse criar uma sociedade empresária de responsabilidade limitada.
25. Portanto, através da EIRELI uma só pessoa pode constituí-la, não havendo confusão patrimonial, ou seja, não há responsabilidade pessoal pelas dívidas da pessoa jurídica.
26. A doutrina conclui: “A EIRELI não é um empresário individual nem uma sociedade unipessoal: trata-se de uma nova espécie de pessoa jurídica de direito privado, que se junta às outras já existentes (sociedades, associações, fundações, partidos políticos e organizações religiosas).[4]
27. Quanto à administração da EIRELI, surge uma dúvida: pode ser nomeado um terceiro para ser administrador ou gerente da EIRELI?
28. Sabe-se que “Aplicam-se à empresa individual de responsabilidade limitada, no que couber, as regras previstas para as sociedades limitadas”. É a redação do §6º do art. 980-A da Lei da EIRELI.
29. Ora, em uma sociedade limitada, pode um terceiro ser administrador da sociedade. Daí a possibilidade de um servidor público ser sócio de uma limitada: basta que ele não seja administrador ou gerente.
30. Como não há norma específica sobre quem pode ser administrador de uma EIRELI, pode-se aplicar a regra das sociedades limitadas sobre quem pode administrar a empresa.
31. No mesmo sentido, Armando Luiz Rovai entende: “Ademais, no que tange à administração, também nada veda que a empresa individual de responsabilidade limitada nomeie pessoa natural para o exercício de sua administração, conforme se depreende do artigo 997, inciso VI do Código Civil”.[5]
32. É da mesma opinião Cristina Malaski Almendanha, para quem:
Já quanto à administração da EIRELI, a lei permite optar pela manutenção do único componente como administrador ou pela nomeação de um terceiro, convidado pelo empresário para administrar o negócio. Permite-se, inclusive, que a administração possa ser exercida por uma ou mais pessoas designadas no ato constitutivo. O que não se permite é que uma pessoa jurídica seja eleita administradora da EIRELI. [6]
33. A Instrução Normativa nº 117, de 2011, do DNRC (Departamento Nacional de Registro do Comércio), estabelece que estão impedidos de administrar a EIRELI:
o funcionário público federal civil ou militar da ativa. Em relação ao funcionário estadual e municipal, observar as respectivas legislações; o Chefe do Poder Executivo, federal, estadual ou municipal; o magistrado; os membros do Ministério Público da União, que compreende: Ministério Público Federal; Ministério Público do Trabalho; Ministério Público Militar; Ministério Público do Distrito Federal e Territórios; os membros do Ministério Público dos Estados, conforme a Constituição respectiva.
34. A citada Instrução Normativa disciplina também que “A EIRELI poderá ser administrada pelo titular e/ou por não titular. O administrador não titular considerar-se-á investido no cargo mediante aposição de sua assinatura no ato constitutivo em que foi nomeado”.
35. Dessa feita, conclui-se que o servidor público federal não pode ser administrador da EIRELI, porém, é lícito que seja titular da empresa individual de responsabilidade limitada. Para tanto, basta que nomeie um terceiro para ser administrador da pessoa jurídica.
3 CONCLUSÃO
36. Ante o exposto, percebe-se que o servidor público pode constituir uma EIRELI, desde que nomeie um terceiro para ser administrador da empresa individual de responsabilidade limitada.
37. Dessa feita, está amparado pela licitude, não incidindo nas proibições do art. 117 da Lei nº 8.112, de 1990.
REFERÊNCIAS
COSTA, José Armando da. Direito Administrativo Disciplinar. Brasília: Brasília Jurídica, 2004.
Apostila de Treinamento em Processo Administrativo Disciplinar (PAD) da Controladoria-Geral da União – CGU.
ROVAI, Armando Luiz. Empresa de responsabilidade limitada. Valor Econômico. Disponível em: http://www.eireli.com. Acesso em: 18 de ago. 2013.
ALMENDANHA, Cristina Malaski. Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI) – algumas peculiaridades. Disponível: http://www.fortiadvogados.com.br. Acesso em: 18 de ago. 2013.
RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito Empresarial Esquematizado. 3. ed. São Paulo: Editora Método.
[1] COSTA, José Armando da. Direito Administrativo Disciplinar. Brasília: Brasília Jurídica, 2004, p. 387.
[2] Versão HTML, Julho de 2011, fl. 434 e 442.
[3] Versão HTML, Julho de 2011, fl. 443.
[4] RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito Empresarial Esquematizado. 3. ed. São Paulo: Editora Método, p.44.
[5] Empresa de responsabilidade limitada. Valor Econômico. Disponível em: http://www.eireli.com. Acesso em: 18 de ago. 2013.
[6] Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI) – algumas peculiaridades. Disponível: http://www.fortiadvogados.com.br. Acesso em: 18 de ago. 2013.
Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MENESES, Fabrício Cardoso de. Análise da possibilidade de o servidor público federal ser titular de uma empresa individual de responsabilidade limitada Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 dez 2013, 07:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37441/analise-da-possibilidade-de-o-servidor-publico-federal-ser-titular-de-uma-empresa-individual-de-responsabilidade-limitada. Acesso em: 22 nov 2024.
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