1. Conceito e natureza jurídica
Cumpre, por justiça, anotar não ser a incumbência de definir o conceito de mandado de injunção tarefa das mais laboriosas, uma vez que se descobrem do próprio texto da Lex Fundamentalis, em seu inciso LXXI do art. 5°, os elementos necessários para tanto, in verbis:
“conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.”
A pouca dificuldade de que se fala pode ser conferida, como exemplo, a partir do conceito que Hely Lopes Meirelles dá ao instrumento, à medida que considera o mandado de injunção como o “meio constitucional posto à disposição de quem se considerar prejudicado pela falta de norma regulamentadora que tome inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania” [1].
De sua vez, Randolpho Gomes diz ser o mandado de injunção uma “ação civil, de origem constitucional, de cognição, exercível por qualquer pessoa ou entidade em face de quem quer que obste o exercício de um direito emanado da Constituição, sob o pretexto ou fundamento de inexistência de norma que o regulamente” [2].
Por derradeiro, importa lembrar o que anota José Afonso da Silva, para quem o mandado de injunção é “o instrumento que, correlacionado com o [...] §1° do art. 5º da constituição, torna todas as normas constitucionais potencialmente aplicáveis diretamente” [3].
Feitas essas considerações primeiras, pode-se dizer que o mandado de injunção é uma auspiciosa garantia, engendrada pelo constituinte de 88, com vistas a espraiar efetividade por todos os direitos fundamentais, a fim de que estes não mais padeçam desvalidos pela inércia legislativa que se lhes acometa.
Figura, outrossim, como uma ação civil de matriz constitucional e especial procedimento, da qual poderá valer-se todo aquele que, por omissão do Poder Público, tenha o exercício de um seu direito, uma sua liberdade ou, ainda, uma sua garantia, todos conferidos constitucionalmente, inviabilizado, embaraçado ou obstado.[4]
2. Pressupostos
A simples leitura da norma, acima já colacionada, que inovou o ordenamento jurídico com o estabelecimento do mandado de injunção, permite que se amostre uma relação de causalidade como condição de admissibilidade do novo remedium iuris. Vale dizer, o mandado de injunção tem cabimento quando a lacuna normativa é causa à inviabilidade do exercício de direitos constitucionais (lato sensu), seu efeito imediato.
Semelhante compreensão já foi esposada pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do MI 81-6, ensejo no qual se assentou que “a situação de lacuna técnica — que se traduz na existência de um nexo causal entre o vacum legis e a impossibilidade do exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania — constitui requisito necessário que condiciona a própria impetrabilidade desse novo remédio instituído pela Constituição de 1988” [5].
Dessa sorte, importa apreciar os termos encontradiços nessa relação de causa e efeito, que correspondem aos próprios pressupostos do mandado de injunção, quais sejam: a existência de direito ou liberdade constitucional, ou de prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, e a ausência de norma regulamentadora que lhes inviabilize o exercício.
2.1 Da existência de direito ou liberdade constitucional, ou de prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania
Questão primeira que importa esclarecer é quais direitos, liberdades e prerrogativas podem ser alcançados pelo instrumento da injunção.
Sobre o assunto, a doutrina, como salienta Flávia C. Piovesan, dividiu-se basicamente em três correntes[6].
A princípio, houve quem imprimisse uma interpretação por demais restritiva ao objeto do mandamus, à medida que entendia haver o estabelecimento das prerrogativas restringido o alcance dos direitos e liberdades àquilo que lhes correspondesse. Noutras palavras, somente seriam defensáveis via mandado de injunção os direitos e as liberdades que dissessem respeito às prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania[7].
É este o entendimento de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, de cujos termos Carlos Mário da Silva Velloso se permitiu divergir, quando escreveu que “o mandado de injunção protege direitos, liberdades e prerrogativas constitucionais, estas, sim, inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania” [8].
Com efeito, em não existindo nenhuma cláusula restritiva, não se pode tomar por excluído do alcance de proteção do mandado de injunção nenhum direito ou liberdade[9] que a Constituição cuidou de garantir, sob pena de se recobrar anterior situação em que o silêncio legislativo punha os direitos constitucionais em situação de desvalia.
Segunda orientação doutrinária volveu-se no sentido de que a expressão “direitos e liberdades” cingia-se aos direitos e garantias fundamentais constantes do Título II do texto constitucional, que abrange os direitos e deveres individuais e coletivos, os direitos sociais, os direitos de nacionalidade, os direitos políticos, e a disciplina sobre os partidos políticos.[10]
A posição derradeira giza contornos mais largos à seara de proteção do mandado de injunção, de molde a entender tuteláveis não somente os direitos constantes do título mencionado, mas qualquer direito, liberdade ou prerrogativa espraiados por toda a extensão do texto magno. É o que se defende. Compartilha-se, dessa sorte, do que entende José Afonso da Silva, para quem “não importa o direito que a norma confere; desde que seu exercício dependa de norma regulamentadora e desde que esta falte, o interessado é legitimado a propor o mandado de injunção, [...]” [11].
No que pertine às prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, são elas as constantes dos capítulos III, IV e V do título segundo da Constituição, atinentes aos direitos de nacionalidade, aos direitos políticos e à disciplina dos partidos políticos. Justamente por encontrarem-se entre direitos fundamentais é que se critica a sua previsão, por despicienda[12]. É isto o que move Luís Roberto Barroso a acrescentar que “a rigor técnico, direitos e liberdades englobam todas as situações jurídicas ativas ou de vantagem, pelo que se tomou ocioso o acréscimo que se fez para a inclusão das prerrogativas” [13].
De notar, ainda, a imprecisão das prerrogativas inerentes à soberania, uma vez que, em sendo termo habitualmente utilizado como atributo do Estado frente à comunidade internacional, a princípio poderia suscitar a incoerência de sua disposição topográfica, já que inscrita entre os direitos individuais e coletivos. Entretanto, como se pôde perceber acima, a doutrina já cuidou de assentar o entendimento de que tais prerrogativas referem-se à soberania popular, constante do art. 14 da Constituição Federal[14].
2.2 Da ausência de norma regulamentadora que inviabilize o exercício dos direitos, liberdades ou prerrogativas constitucionalmente garantidos
Importa, por agora, buscar compreender o que se deve entender por norma regulamentadora.
Como é cediço, por várias vezes a Constituição concede um direito
cuja aplicabilidade efetiva faz depender de ulterior edição de lei que o discipline pormenorizadamente. Em algumas ocasiões, a Constituição mesma requer seja confeccionada norma regulamentadora; noutras, da própria imprecisão ou indeterminação do texto constitucional se extrai a necessidade da providência legislativa. No primeiro caso, a exigência é explícita[15], no segundo, suposta[16].
Dessa sorte, pode-se dizer consistir a norma regulamentadora um ato normativo cuja precípua finalidade é traduzir “a norma primária em seus aspectos menores, aclarando-a e disciplinando a sua exequibilidade” [17].
Acrescente-se que a norma regulamentadora tanto pode cuidar de lei como de regulamento, entendido este como ato cuja expedição insere-se no âmbito das funções administrativas. Por essa razão é que Celso Antônio Bandeira de Mello percebe o mandado de injunção como “um meio de controle da inércia administrativa [...] quando a norma faltante não seja uma lei, mas o regulamento nela presumido” [18].
Demais disso, o conceito de norma regulamentadora pode ser extraído da própria Constituição, uma vez que esta, quando disciplina a ação direta de inconstitucionalidade, permite seja declarada inconstitucional a omissão de medida para tomar efetiva norma constitucional. Em se prestando ambos os instrumentos - mandado de injunção e ação direta de inconstitucionalidade por omissão - ao controle da omissão do Poder Público, nada obsta que o pressuposto da última seja tomado de empréstimo para facilitar a definição de um requisito do primeiro. Dessa sorte, a norma regulamentadora pode ser entendida como qualquer medida para tornar efetiva norma constitucional, o que açambarca leis complementares, ordinárias, decretos, regulamentos, resoluções, portarias, entre outros atos normativos[19].
Interessa anotar ainda que, por caber o mandado de injunção tão-somente quando a norma, que não se basta a si mesma, não conta com regulamentação, a superveniência de lei com essa finalidade retira o interesse de agir e promove a prejudicialidade do julgamento de mérito, ocasionando a extinção da ação de injunção. A este respeito, Sérgio Bermudes expõe:
“A fortiori, se, ainda não extinto o processo da ação de mandado de injunção, sobrevier a norma regulamentadora, ‘a ação ficará sem objeto, como se diz no jargão forense, ou, com mais técnica, o processo deverá ser extinto, sem julgamento do mérito, nos termos do art. 267, VI, do CPC, pela superveniente falta de interesse processual, que constitui, como de sabença geral, uma das condições da ação, ou melhor, uma das condições do julgamento de mérito” [20].
Há quem aproveite o raciocínio para os casos em que a norma encontra-se em tramitação. Seria a hipótese de entender prejudicado o mandado de injunção quando o Executivo encaminha mensagem ou o projeto é apresentado à Câmara ou ao Senado. É de perceber que o argumento não se amolda ao texto que prevê a garantia, porquanto cabível quando inexistir norma regulamentadora. Ora, projeto não é lei, e, no mais das vezes, não o é por vários e vários anos em que dorme imperturbável sono no Congresso Nacional, acalentado pela discricionariedade legislativa. Estar-se-ia a obstar o exercício de direito, liberdade ou prerrogativa por tempo indeterminado, o que não se concebe numa ordem jurídica que prima pela aplicabilidade imediata dos direitos e garantias fundamentais, razão por que Sérgio Bermudes pondera:
“Se essa norma se encontra em regular processo de elaboração, faltará ao impetrante interesse processual, a menos que demonstre que a tutela de seu direito não pode aguardar a norma regulamentadora porque ele estará lesado, de modo irreparável, no advento dela” [21].
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[1] MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de Injunção, “Habeas Data”, Ação Direta de Inconstitucionalidade, Ação Declaratória de Constitucionalidade e Arguição de Descumprimento de Direito Fundamental, 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 239.
[2] GOMES, Randolpho. Mandado de Injunção, Rio de Janeiro: Ed. Trabalhista S/A, 1989, p. 07, apud Alcides Saldanha Lima. Do Mandado de Injunção, In Revista Pensar, UNIFOR. — Universidade de Fortaleza, CCH.
[3] SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais Programáticas. In: Revista da Procuradoria Geral do Estado do Ceará, no. 11. Fortaleza: IOCE, 1993. O dispositivo mencionado pronuncia que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.
[4] Cf. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2002.
[5] Decisão em Ml 81-6, In: RT 659/2 13, apud PIOVESAN, Flávia C. Proteção Judicial Contra Omissões Legislativas: Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão e Mandado de Injunção. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 118.
[6] Op. cit, p. 122.
[7] É este o entendimento de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Notas sobre o mandado de injunção,
Repertório de Jurisprudência IOB — Trib. e Constit. 20/88, p. 297, apud Carlos Mário da Silva
Velloso. As Novas Garantias Constitucionais: o Mandado de Segurança Coletivo, o ‘Habeas
Data’, o Mandado de Injunção e a Ação Popular para Defesa da Moralidade Administrativa.
In: RT, no. 644, jun. 1989, p. 13.
[8] Op. cit, mesma página.
[9] No que pertine à tutela de liberdade constitucional, Luís Roberto Barroso tece a oportuna observação: “note-se que dificilmente ocorrerá um caso de impetração de mandado de injunção para asseguramento de liberdades constitucionais, haja vista que elas se traduzem, normalmente, numa abstenção do Poder Público, ou seja, em hipóteses em que a omissão é o comportamento devido”. (O
Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas: Limites e Possibilidades da
Constituição Brasileira. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 250).
[10] Nesse sentido, Celso Ribeiro Bastos, Curso de Direito Constitucional, 12. ed. São Paulo: Saraiva,
1990, p. 22, apud Flávia C. Piovesan, op. cit, p. 122.
[11]SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16. ed. São Paulo: Malheiros,
1999, p. 453. Diomar Ackel Filho acrescenta: “quando a Carta menciona o cabimento do mandado
de injunção ante a falta de norma regulamentadora, inviabilizando o exercício dos direitos e
liberdades constitucionais e as prerrogativas inerentes à nacionalidade, soberania do povo e
cidadania, na verdade, refere-se a todos os direitos básicos previstos diretamente na Lei
Maior”. (Mandado de Injunção. In: RT, no. 628, fev. 1988, p. 425)
[12] José Carlos Barbosa Moreira, entretanto, dá à previsão das prerrogativas interpretação invulgar e extensiva, porquanto entende que “poderá acontecer que a falta da norma regulamentadora esteja impedindo o exercício de alguma prerrogativa deste gênero contemplada em lei, e não na própria Constituição. Faltaria uma norma de nível inferior ao da própria lei”. (Mandado de Injunção. Revista de Processo, vol. 56, 1989, p. 122, apud Luís Roberto Barroso, op. cit., p. 250). Sérgio Bermudes comenta a posição do mencionado jurista dizendo que ele o formulou partindo da premissa de que “o legislador, muito menos o constituinte, não usa palavras ociosas e que, entre duas interpretações possíveis de um texto legal, se haverá de optar por aquela que, sem contrariar o sistema no qual se insere a norma, a faça prestante.” (O Mandado de Injunção. In: RT, no. 642, abr. 1989, p. 22).
[13] BARROSO, Luis Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas: Limites e Possibilidades da Constituição Brasileira. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 250.
[14] Neste sentido, dentre outros, Celso Agrícola Barbi. Mandado de Injunção. In: RT, no. 637, nov. 1988, p. 8; Hely Lopes Meirelles, Mandado de Segurança, Ação Popular..., 23. ed. São Paulo:
Malheiros, 2001, p. 240.
[15] Confiram-se os arts. 5º, VI (“na forma da lei”), XXVIII (“nos termos da lei”), XXLX (“a lei assegurará [...]”), e 7º, I (“nos termos de lei complementar”), IV (“fixado em lei”).
[16] Calha o exemplo de José Afonso da Silva: “o art. 5º, VI, p. ex., diz: ‘às presidiárias serão assegurados condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação’; por certo que essas condições precisam ser regulamentadas, nem que seja por portaria, ou por despacho, ou ordem de serviço, do próprio diretor do estabelecimento penal [...]“. (Curso de Direito Constitucional Positivo. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 450)
[17] ACKEL FILHO, Diomar. Mandado de Injunção. In: RT, no. 628, fev. 1988, p. 424.
[18]MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 5.ed., São Paulo:
Malheiros, 1994, p. 119. Apud, Sérgio Reginaldo Bacha, Mandado de Injunção. Belo Horizonte:
Del Rey, 1998, p. 56.
[19] Neste sentido, dentre outros, Flávia C. Piovesan, op. cit., p. 115 e Luís Roberto Barroso, op. cit., p. 253.
[20] BERMUDES, Sérgio. O Mandado de Injunção. In: RT, no. 642, abr. 1989, p. 23
[21] BERMUDES, Sérgio. Op. cit, mesma página.
Procuradora Federal. Membro da Advocacia-Geral da União. Atuou como responsável pela Procuradoria Federal Especializada da FUNAI em Dourados/MS e na Consultoria da sede da Funai em Brasília. Atualmente atua na Procuradoria Seccional Federal em Campina Grande/PB.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VILLOTA, Karine Martins de Izquierdo. Contornos jurídico-constitucionais do mandado de injunção Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 dez 2013, 06:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37458/contornos-juridico-constitucionais-do-mandado-de-injuncao. Acesso em: 22 nov 2024.
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