A inconstitucionalidade material das normas que proíbem o exercício da advocacia privada pelos membros da Advocacia-Geral da União decorre do seguinte: é que, quando a Constituição da República quis proibir o exercício da advocacia para os membros que exercem função essencial à Justiça, ela o fez de forma expressa.
Pois bem, relativamente aos membros do Ministério Público, trouxe em seu bojo o artigo 128, §5º, inciso XI, “b”:
Art. 128. O Ministério Público abrange:
[...]
§ 5º - Leis complementares da União e dos Estados, cuja iniciativa é facultada aos respectivos Procuradores-Gerais, estabelecerão a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público, observadas, relativamente a seus membros:
II - as seguintes vedações:
Já no que tange aos defensores públicos, previu o artigo 134, §1º (antigo parágrafo único):
Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV.)
§ 1º Lei complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios e prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos de carreira, providos, na classe inicial, mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a seus integrantes a garantia da inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais.
Já com relação à Advocacia-Geral da União, a Constituição não vedou expressamente o exercício da advocacia, logo, permitiu-o.
Esse fenômeno é o doutrinariamente chamado de silêncio eloquente (beredtes schweigen).
O silêncio constitucional, portanto, aqui, foi proposital, no sentido de se admitir o exercício da advocacia privada pelos Advogados Públicos Federais.
A exegese constitucional acima referida é bem tratada por CARLOS MAXIMILIANO, que, em seu clássico “Hermenêutica e Aplicação do Direito”, assim dispôs:
Interpretam-se estritamente os dispositivos que instituem exceções às regras gerais firmadas pela Constituição. Assim se entendem os que favorecem profissões, classes ou indivíduos, excluem outros, estabelecem incompatibilidades, asseguram prerrogativas, ou cerceiam, embora temporariamente, a liberdade ou a garantia da propriedade. Na dúvida, siga-se a regra geral.
Não se está querendo dizer que toda e qualquer exigência fixada para o exercício de determinado ofício deveria ter status constitucional. Longe disso. Mas no que tange à Advocacia Pública isso deve ser observado, o que, por certo, é sobremodo razoável, já que o caso dela é constitucionalmente peculiar!
A própria Constituição, que assegurou a liberdade do exercício das profissões e ofícios, restringiu, onde achou cabível e pertinente, a possibilidade de um desses ofícios (a advocacia privada) aos membros da Defensoria Pública, do Ministério Público e da Magistratura.
Quisesse a Constituição limitar igualmente o direito dos Advogados Públicos Federais, tê-lo-ia feito expressamente como fez para os membros dos órgãos acima citados, ou pelo menos teria delegado expressamente ao legislador infraconstitucional a atribuição de, caso achasse pertinente, o fizesse.
Pela leitura do artigo 131 da Lei Maior, não se determinou ressalva alguma ao princípio da liberdade do exercício da advocacia privada pelos Advogados Públicos Federais. Assim, como admitir que uma lei (ordinária ou complementar) subtraia esse direito deles, o qual foi assegurado pelo artigo 5º, inciso XIII, da Constituição[1]? Impossível!
Não se está diante de uma elucubração interpretativa, mediante a qual se envidassem esforços para tentar encontrar uma exceção à vedação da atividade advocatícia. Não!
Ora, se a Carta da República não vedou expressamente o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais no artigo 131, caput, ao contrário de outros dispositivos constitucionais mencionados acima, é porque concordou com aquele exercício, não podendo legislação infraconstitucional dispor em sentido contrário.
Se não bastasse isso, diz a Constituição da República:
Art. 5º [...]
XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer.
De acordo com o dispositivo constitucional, a regra geral é a expressa permissão para o exercício de qualquer trabalho. É certo que pode a lei limitar esse direito, mas apenas no tocante às qualificações profissionais necessárias à profissão.
Assim, da leitura do dispositivo constitucional acima, depreende-se que a lei não pode limitar o exercício de uma atividade daquele que tem a qualificação profissional exigida pela própria lei para o exercício profissional (lembre-se de que é obrigatória a inscrição dos membros da AGU nos quadros da OAB).
Portanto, uma lei que limite o exercício profissional de pessoa considerada pela lei como profissionalmente qualificada será, por sem dúvidas, inconstitucional.
José Afonso da Silva, ao comentar o artigo em epígrafe, ensina que: “o dispositivo confere liberdade de escolha de trabalho, de ofício e de profissão, de acordo com as propensões de cada pessoa e na medida em que a sorte e o esforço próprio possam romper as barreiras que se antepõem à maioria do povo. [...] Como o princípio é o da liberdade, a eficácia e a aplicabilidade da norma são amplas quando não exista lei que estatua condições ou qualificações especiais para o exercício do ofício ou profissão ou acessibilidade à função pública. Vale dizer, não são as leis mencionadas que dão eficácia e aplicabilidade à norma. Não se trata de direito legal, direito decorrente da lei mencionada, mas de direito constitucional, direito que deriva diretamente do dispositivo constitucional.” (SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros. 2005, p. 108).
Pois bem, os Advogados Públicos Federais, antes de tudo, são advogados, profissionais da advocacia, que se submetem a concurso público de provas e títulos para ingressar nos quadros da Advocacia-Geral da União. Para lograrem participação no certame de ingresso, não é suficiente que sejam simplesmente bacharéis em Direito. Exige-se mais: devem ser advogados na acepção da palavra, entendendo-se como tais aqueles candidatos devidamente inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil.
Não há, portanto, à luz da legislação em vigor, como entender os Advogados Públicos excluídos da condição de profissionais da advocacia, desabrigados, de conseguinte, da proteção do inciso XIII do artigo 5º da CRFB, já que são inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil, pagam anuidade como qualquer outro advogado, votam, participam da gestão da entidade e são alçados aos tribunais na quota do quinto constitucional reservada aos advogados.
E nessa condição, de profissionais da advocacia, enfeixam-se no âmbito de proteção conferido pela norma jusfundamental referida.
Assim, o legislador infraconstitucional não poderia ir além do mandato que lhe conferiu o inciso aludido, trazendo à existência tal norma vedativa para os Advogados Públicos Federais, muito ao largo de trazer disciplina em torno da qualificação desses profissionais.
Se a regra é o livre exercício de qualquer ofício ou profissão – e a Constituição não é neutra, revelando suas opções através de princípios -, sendo o princípio da liberdade profissional elevado à categoria de direito fundamental, é certo que o legislador infraconstitucional está vinculado a esse propósito ali exteriorizado, dele não podendo fugir. (BARCELOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. São Paulo: Renovar. 2004, pp. 70 e 146).
Aliás, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre o assunto, quando em vigor norma semelhante na Constituição anterior, oportunidade em que julgou inconstitucional regulamentação que veio a desbordar dos fins previstos na norma jusfundamental. Eis excerto da referida decisão:
A Constituição Federal assegura liberdade de exercício de profissão. O legislador ordinário não pode nulificar ou desconhecer esse direito ao livre exercício profissional [...].
Pode somente limitar ou disciplinar esse exercício pela exigência de ‘condições de capacidade’, pressupostos subjetivos referentes a conhecimentos técnicos ou a requisitos especiais, morais ou físicos. Ainda no tocante a essas ‘condições de capacidade’, não as pode estabelecer o legislador ordinário, em seu poder de polícia profissões, sem atender ao critério da razoabilidade, cabendo ao Poder Judiciário apreciar se as restrições são adequadas e justificada pelo interesse público, para julgá-las legítimas ou não. (Rep. nº 930-DF, rel. Min. Rodrigues Alckimin, DJU, 2, set. 1977)
Sob todos esses prismas, é possível reconhecer a inconstitucionalidade das normas que vedam o exercício da advocacia privada pelos Advogados Públicos Federais.
[1] XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;
Procurador Federal - Procurador-Chefe da Procuradoria Seccional Federal em Mossoró - Conselheiro representante da Carreira de Procurador Federal junto ao Conselho Superior da Advocacia-Geral da União
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, Carlos André Studart. Da possibilidade de o membro da Advocacia-Geral da União exercer a advocacia privada. Do silêncio eloquente da Constituição da República Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 dez 2013, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37466/da-possibilidade-de-o-membro-da-advocacia-geral-da-uniao-exercer-a-advocacia-privada-do-silencio-eloquente-da-constituicao-da-republica. Acesso em: 22 nov 2024.
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