A Constituição Federal, no seu art. 37, inciso XXI, estabelece que os contratos de obras, serviços, compras e alienações, firmados pela Administração Pública sejam, em regra, precedidos de licitação, a fim de assegurar “igualdade de condições a todos os concorrentes”. O mencionado dispositivo constitucional, todavia, faz expressa ressalva quanto à obrigatoriedade do certame nos “casos especificados na legislação”.
A Lei nº 8.666/93 trata da alienação de bens da Administração Pública no seu art. 17, sendo interessante transcrever os dispositivos que cuidam especificamente da doação de bens móveis:
Art. 17. A alienação de bens da Administração Pública, subordinada à existência de interesse público devidamente justificado, será precedida de avaliação e obedecerá às seguintes normas”:
(...)
II – quando móveis, dependerá de avaliação prévia e de licitação, dispensada esta nos seguintes casos:
a) doação, permitida exclusivamente para fins e uso de interesse social, após a avaliação de sua oportunidade e conveniência sócio-econômica, relativamente à escolha de outra forma de alienação.
A doação de bens públicos móveis, portanto, quando se destinar a fins de uso de interesse social, pode ser feita mediante procedimento de dispensa de licitação. No entanto, ainda que afastada a obrigatoriedade de licitar, a contratação deve ser precedida de procedimento administrativo que atenda aos ditames legais, bem como respeitar os princípios que regem a Administração Pública, inscritos no caput do art. 37 da Carta Federal (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência). Nesse sentido, ensina Marçal Justen Filho:[1]
A contratação direta não significa inaplicação dos princípios básicos que orientam a atuação administrativa. Nem se caracteriza uma livre atuação administrativa. O administrador está obrigado a seguir um procedimento administrativo determinado, destinado a assegurar (ainda nesses casos) a prevalência dos princípios jurídicos fundamentais. Permanece o dever de realizar a melhor contratação possível, dando tratamento igualitário a todos os possíveis contratantes.
Vale registrar que os bens públicos são objeto de disciplina no Código Civil de 2002, onde são classificados em bens de uso comum do povo, bens de uso especial e bens dominicais. Estes últimos “constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades” (art. 99, inciso III, do CC). Os bens públicos dominicais podem ser alienados, segundo o art. 101 do Diploma Civil, desde que observadas as exigências de lei.
O regramento trazido pela Lei nº 8.666/93 deve ser interpretado à luz da legislação regulamentar específica sobre o reaproveitamento, a movimentação, a alienação e outras formas de desfazimento material no âmbito da Administração Pública Federal. Trata do assunto o Decreto nº 99.658/90, com as alterações promovidas pelo Decreto nº 6.087/07.
O art. 3º, inciso IV, do Decreto nº 99.658/90 não deixa dúvidas acerca da abrangência do conceito de alienação utilizado neste diploma: “operação de transferência do direito de propriedade material, mediante venda, permuta ou doação”.
Nesse contexto, qualquer modalidade de alienação deve ser precedida de avaliação do bem, a qual deve ser feita em conformidade com os preços atualizados e praticados no mercado (art. 7º, caput, do 99.658/90). A legislação determina, ainda, que decorridos mais de 60 (sessenta) dias da avaliação, o material deve ter o seu valor automaticamente atualizado, “tomando-se por base o fator de correção aplicável às demonstrações contábeis e considerando-se o período decorrido entre a avaliação e a conclusão do processo de alienação” (parágrafo único, do art. 7º, do Decreto nº 99.658/90).
O material considerado como inservível para a entidade que detém a sua posse ou propriedade, conforme art. 3º, parágrafo único, do Decreto nº 99.658/90, deve ser classificado em ocioso, recuperável, antieconômico ou irrecuperável. O bem deverá ser reputado ocioso “quando, embora em perfeitas condições de uso, não estiver sendo aproveitado” (art. 3º, parágrafo único, alínea “a”, do Decreto nº 99.658/90); recuperável “quando sua recuperação for possível e orçar, no âmbito, a cinquenta por cento de seu valor de mercado” (art. 3º, parágrafo único, alínea “b”, do Decreto nº 99.658/90); antieconômico “quando sua manutenção for onerosa, ou seu rendimento precário, em virtude de uso prolongado, desgaste prematuro ou obsoletismo” (art. 3º, parágrafo único, alínea “c”, do Decreto nº 99.658/90) e irrecuperável “quando não mais puder ser utilizado para o fim a que se destina devido a perda de suas características ou em razão da inviabilidade econômica de sua recuperação” (art. 3º, parágrafo único, alínea “d”, do Decreto nº 99.658/90).
O caput do art. 5º do Decreto nº 99.658/90, com a redação que lhe foi conferida pelo Decreto nº 6.087/07, determina que os órgãos e entidades da Administração Pública Federal, direta e indireta, devem informar à Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação – SLTI, ligada ao Ministério de Planejamento, Orçamento e Gestão, a existência de equipamentos de informática (dentre os quais estão as impressoras), e respectivo mobiliário, classificados como ociosos, recuperáveis, antieconômicos ou irrecuperáveis disponíveis para reaproveitamento. A SLTI indicará a instituição receptora dos bens, em consonância com o Programa de Inclusão Digital do Governo Federal (§2º, do art. 5º, do Decreto nº 99.658/90). Apenas se não houver manifestação da SLTI no prazo de trinta dias, o órgão ou entidade que houver prestado a informação a que se refere o caput poderá proceder ao desfazimento dos materiais (§3º, do art. 5º, do Decreto nº 99.658/90).
A doação dos bens móveis considerados inservíveis, conforme o caput do art. 15 do Decreto nº 99.658/90 (com a redação do Decreto nº 6.087/07), é permitida desde que estejam presentes razões de interesse social e que tenha sido feito exame da oportunidade e conveniência da doação em relação a outras formas de alienação destes bens.
Comentando acerca de tais requisitos, Jorge Ulisses Jacoby Fernandes expõe sobre a importância de a Administração atender o interesse público, por meio do procedimento de doação dos bens móveis:
"O ato donativo deverá ter por objeto ‘fins e uso’ de interesse social. Ao estabelecer a concomitância desses dois substantivos, evidenciou o legislador ainda maior interesse restritivo. Pode ocorrer, por exemplo, que um determinado órgão decida doar móveis de escritório para uma unidade filantrópica. No caso, a finalidade da doação atenderá ao interesse social, mas a Administração deverá certificar-se de que o uso a ser dado ao bem guardará correlação com igual interesse social. É que muitas vezes a finalidade do ato não apresenta correlação com a utilização a ser dada ao móvel posteriormente, tal como ocorreria se os bens doados não fossem utilizados pela entidade exemplificada para os seus fins, mas transferidos para uso pessoal ou particular de um dos membros de sua diretoria.
Não se pretende que a Administração adote atitude investigatória para acompanhamento dos bens, sendo suficiente que, no termo de doação, fique definida a forma/circunstância em que serão empregados os móveis.
(...)
Antes de proceder à doação, deverá a Administração considerar outros aspectos, para decidir se deve ou não empregar outra forma de alienação.
O primeiro deles diz respeito à oportunidade, isto é ao momento, à época de fazer a doação; o segundo, refere-se à conveniência socioeconômica de realizá-la, ou seja, além de considerar o aspecto social do ato que, como visto, deverá guiar-se pelo fim e uso de interesse social, a Administração considerará também o efeito econômico.
Nesse sentido, o primeiro atributo buscado é o exterior ao agente doador, dizendo com o alcance social da medida, e o segundo, interior ao agente, que terá em consideração as despesas do órgão e os gastos decorrentes do ato.
Poderia parecer, à primeira vista, que sempre será mais vantajoso, sob o aspecto econômico, não doar bens, pois, na venda, por exemplo, há o ingresso de recursos. Não é esse o sentido do dispositivo, como também não é verdadeiro que a venda sempre resulta vantajosa para a Administração.
É o que ocorre quando o Município reúne leitos e outros utensílios inservíveis para um hospital, por intermédio de um clube de serviços como o Rotary, e equipa um asilo ou orfanato, desonerando-se da atividade e poupando estrutura de recursos humanos, de material e de manutenção para a realização dessa atividade social.
Ainda mais: o legislador não empregou o termo econômico isoladamente; fê-lo suceder, em composição, ao social, de tal modo que com ele deve ser conjugado para alcançar o adequado equacionamento pretendido. O valor social da medida deve ser sopesado com o econômico, para a Administração e para a sociedade, que, em última instância, é quem sustenta a Administração Pública. Benesses praticadas à custa do contribuinte não devem ter o condão de onerá-lo indevidamente para que suporte maiores ônus com atos impróprios de da eficiência pretendida do aparelho estatal." (Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, Vade-mécum de licitações e contratos: legislação selecionada e organizada com jurisprudência, notas e índices, 3ª edição, rev. atual. e ampl., 4ª tiragem, Belo Horizonte: Fórum, 2008, págs. 314/315)
No mesmo sentido, leciona Joel de Menezes Niebuhr, in verbis:
"Interesse social é espécie que se subsume ao espectro mais largo do interesse público. Isso significa que todo interesse social é pertinente ao interesse público, mas que nem todo interesse público pode ser qualificado como interesse social. Destarte, os bens móveis podem ser doados para serem utilizados em projetos sociais, isto é, que visem beneficiar as parcelas menos favorecidas da sociedade, como vem a ocorrer em atos de benemerência. Não é lícito doar bens móveis a serem utilizados em atividades de interesse público que não tenham fundo social. Por exemplo, não é lícito doar bem móvel a entidade como a Ordem dos Advogados Brasil, que, conquanto realize atividades relacionadas ao interesse público, normalmente não visam a atender interesses sociais." (Joel de Menezes Niebuhr, Licitação Pública e Contrato Administrativo, Curitiba: Zênite, 2008, pág. 71)
A legislação determina, ainda, exaustivamente quais as entidades que podem ser beneficiárias da doação, a depender da classificação do material. Com relação aos bens ociosos e recuperáveis, pode ser beneficiário outro órgão ou entidade da Administração Pública Federal direta, autárquica ou fundacional ou outro órgão integrante de qualquer dos demais Poderes da União (art. 15, inciso I, do Decreto nº 99.658/90). Quando se tratar de bens antieconômicos, a alienação gratuita pode ser a favor de Estados e Municípios mais carentes, Distrito Federal, empresas públicas, sociedade de economia mista, instituições filantrópicas, reconhecidas de utilidade pública pelo Governo Federal, e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (art. 15, incisos II, do Decreto nº 99.658/90, com a redação conferida pelo Decreto nº 6.087/07). Por outro lado, cuidando-se de bens classificados como irrecuperáveis, é possível a doação para instituições filantrópicas, reconhecidas de utilidade pública pelo Governo Federal, e para as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (art. 15, inciso III, do Decreto nº 99.658/90, com a redação conferida pelo Decreto nº 6.087/07).
Além dessas formalidades a respeito do procedimento indispensável à doação de bens móveis inservíveis e das pessoas que podem ser beneficiárias da alienação gratuita de tais bens, é preciso que a entidade siga, naquilo que não for incompatível com as normas administrativas específicas, as regras do Código Civil acerca do contrato de doação que será celebrado com a entidade favorecida (arts. 538 e seguintes do CC). Sendo a doação um contrato, submete-se às regras do art. 62 da Lei 8.666/93 e seus parágrafos, que tratam das hipóteses em que necessário ou não o instrumento de contrato propriamente dito.
Nesse contexto, considerando o arcabouço normativo referido, a doação dos bens móveis, pela Administração Pública, mediante procedimento de dispensa de licitação, nos termos do art. 17, II, a, da Lei das Licitações e da legislação correlata, deve então ser precedida de:
a) observância obrigatória aos princípios da legalidade, motivação, finalidade e do interesse público;
b) avaliação dos bens inservíveis com base nos preços de mercado e classificação como ociosos, recuperáveis, antieconômicos ou irrecuperáveis, tudo por comissão especial constituída na forma do art. 19 do Decreto 99.658/90;
c) justificativa evidenciando o interesse social a ser atendido e a conveniência e oportunidade da doação do bem em confronto com outras formas de alienação (venda e permuta);
d) verificação acerca da qualificação da entidade favorecida, de acordo com a classificação dos bens, conforme disposto no art. 15 do Decreto nº 99.658/90.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 12. ed., São Paulo: Dialética, 2008, p. 281.
FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Vade-mécum de licitações e contratos: legislação selecionada e organizada com jurisprudência, notas e índices, 3ª Ed., rev. atual. e ampl., 4ª tiragem, Belo Horizonte: Fórum, 2008, págs. 314/315.
NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação Pública e Contrato Administrativo, Curitiba: Zênite, 2008, pág. 71.
[1] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 12. ed., São Paulo: Dialética, 2008, p. 281.
Procurador Federal. Procurador-Chefe da Procuradoria Federal junto à Universidade Federal do Tocantins.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FONSECA, Marcelo Morais. Breves considerações sobre a doação de bens inservíveis pela Administração Pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 dez 2013, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37648/breves-consideracoes-sobre-a-doacao-de-bens-inserviveis-pela-administracao-publica. Acesso em: 22 nov 2024.
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