1. INTRODUÇÃO
Empregar conceitos nunca foi tarefa facilmente desenvolvida no âmbito científico, não sendo diferente no campo do Direito.
Nesse cerne, muitas foram as noções desenvolvidas em relação ao que vem a ser serviço público. Entretanto, por sua simplicidade e objetividade, destacam-se as palavras de José dos Santos Carvalho Filho, ao conceitua-lo como sendo “toda atividade prestada pelo Estado ou por seus delegados, basicamente sob regime de direito público, com vistas à satisfação de necessidades essenciais e secundárias da coletividade.” [1]
Disciplinando a matéria, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 175, aduz que a prestação dos serviços públicos incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre por meio de licitação.
Diante da exigência constitucional, para conferir efeitos à mencionada norma, de eficácia limitada (art. 175, da CF), foi editada a Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995.
2. DESENVOLVIMENTO
A Lei 8.987/95, consagrou diversos princípios específicos que devem nortear a prestação de serviços públicos, dentre os quais encontra-se o da continuidade que, segundo Celso Antônio Bandeira de Melo, significa “a impossibilidade de sua interrupção e o pleno direito dos administrados a que não seja suspenso ou interrompido.” [2]
Tal princípio também foi tratado pelo Código de Defesa do Consumidor, quando, em seu art. 22, asseverou que os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
Assim, tendo em mira o aludido princípio, surgiu no mundo jurídico o questionamento acerca da licitude, ou não, da interrupção dos serviços públicos quando o usuário deixasse de pagar o preço que é devido por esse fornecimento.
Doutrinadores como, por exemplo, Cláudia Lima Marques, possuem posicionamento favorável nesse sentido, entretanto, para ela, isto “só pode ser possível excepcionalmente e quando for forma de cobrança ou constrangimento, mas sim reflexo de uma decisão judicial ou do fim não abusivo do vínculo.” [3]
De outra banda, autores como Zelmo Denari são favoráveis à referida interrupção diante do tão só inadimplemento, com vistas sobretudo a evitar o enriquecimento sem causa do usuário.
Por sua vez, as turmas de direito público do Superior Tribunal de Justiça, a princípio, se dividiam entre as teses relativas ao corte do fornecimento de serviços públicos nos casos em questão. Em suma, a 1ª turma posicionava-se contra, enquanto que a 2ª turma era a favor, em regra. Vejamos:
CORTE NO FORNECIMENTO DE ÁGUA. INADIMPLÊNCIA DO CONSUMIDOR. ILEGALIDADE.
1. É ilegal a interrupção no fornecimento de energia elétrica, mesmo que inadimplente o consumidor, à vista das disposições do Código de Defesa do Consumidor que impedem seja o usuário exposto ao ridículo.
2. Deve a concessionária de serviço público utilizar-se dos meios próprios para receber os pagamentos em atrasos.
3. Recurso não conhecido. [4]
ADMINISTRATIVO - SERVIÇO DE FORNECIMENTO DE ÁGUA - PAGAMENTO À EMPRESA CONCESSIONÁRIA SOB A MODALIDADE DE TARIFA - CORTE POR FALTA DE PAGAMENTO: LEGALIDADE.
1. A relação jurídica, na hipótese de serviço público prestado por concessionária, tem natureza de Direito Privado, pois o pagamento é feito sob a modalidade de tarifa, que não se classifica como taxa.
2. Nas condições indicadas, o pagamento é contra prestação, e o serviço pode ser interrompido em caso de inadimplemento.
3. Interpretação autêntica que se faz do CDC, que admite a exceção do contrato não cumprido.
4. A política social referente ao fornecimento dos serviços essenciais faz-se por intermédio da política tarifária, contemplando eqüitativa e isonomicamente os menos favorecidos.
5. Recurso especial improvido.[5]
Contudo, após diversas discussões, atualmente, as decisões do STJ consolidaram o entendimento de que é legal a interrupção:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OFENSA AO ART. 535 DO CPC NÃO CONFIGURADA. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. INOVAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 211/STJ. FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. INTERRUPÇÃO. DÉBITOS CONSOLIDADOS PELO TEMPO.
(...)
4. É ilegítimo o corte no fornecimento de serviços públicos essenciais quando a inadimplência do consumidor decorrer de débitos consolidados pelo tempo. Precedentes do STJ.
5.Recurso Especial não provido. [6]
AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. ENERGIA ELÉTRICA. CPFL. SUSPENSÃO DO FORNECIMENTO. DÉBITOS ANTIGOS DE USUÁRIO ANTERIOR. IMPOSSIBILIDADE. ARTIGO 6º, PARÁGRAFO 3º, INCISO II, DA LEI Nº 8.987/95. COBRANÇA. EFETIVO CONSUMIDOR DO SERVIÇO. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. AUSÊNCIA DE SIMILITUDE FÁCTICA.
1. O Superior Tribunal de Justiça possui entendimento pacífico de que não configura descontinuidade da prestação do serviço público a interrupção do fornecimento de energia elétrica após a prévia comunicação ao consumidor inadimplente. Precedentes.
(...) [7]
Entretanto, a jurisprudência do STJ não adota essa regra de forma absoluta. Nos casos em que o corte afeta instituições públicas essenciais, tais como escolas, creches e hospitais públicos, ou consumidor em situação de miserabilidade que tenha atingido seu direito à saúde e integridade física, bem como nos casos de débitos antigos e consolidados, a Corte Superior de Justiça vem decidindo com temperamento, de forma a impedir o corte.
Nesse sentido:
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL. OFENSA AO ART.
535 DO CPC NÃO CONFIGURADA. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO DEMONSTRADA. FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA DESTINADA A SERVIÇOS ESSENCIAIS. INTERRUPÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. INTERESSE PÚBLICO PREVALENTE.
1. A solução integral da controvérsia, com fundamentos suficientes, não caracteriza ofensa ao art. 535 do CPC.
2. A divergência jurisprudencial deve ser comprovada, cabendo a quem recorre demonstrar as circunstâncias que identificam ou assemelham os casos confrontados, com indicação da similitude fática e jurídica entre eles. Indispensável a transcrição de trechos do relatório e do voto dos acórdãos recorrido e paradigma, realizando-se o cotejo analítico entre ambos, com o intuito de bem caracterizar a interpretação legal divergente. O desrespeito a esses requisitos legais e regimentais (art. 541, parágrafo único, do CPC e art. 255 do RI/STJ) impede o conhecimento do Recurso Especial, com base na alínea "c" do inciso III do art. 105 da Constituição Federal.
3. As Turmas de Direito Público do STJ têm entendido que, quando o devedor for ente público, não poderá ser realizado o corte de energia indiscriminadamente em nome da preservação do próprio interesse coletivo, sob pena de atingir a prestação de serviços públicos essenciais, tais como hospitais, centros de saúde, creches, escolas e iluminação pública.
4. Agravo Regimental não provido.
(AgRg no Ag 1329795/CE, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 19/10/2010, DJe 03/02/2011)
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA.
INVIABILIDADE DE SUSPENSÃO DO ABASTECIMENTO NA HIPÓTESE DE DÉBITO DE ANTIGO PROPRIETÁRIO. PORTADORA DO VÍRUS HIV. NECESSIDADE DE REFRIGERAÇÃO DOS MEDICAMENTOS. DIREITO À SAÚDE.
1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é no sentido da impossibilidade de suspensão de serviços essenciais, tais como o fornecimento de energia elétrica e água, em função da cobrança de débitos de antigo proprietário.
2. A interrupção da prestação, ainda que decorrente de inadimplemento, só é legítima se não afetar o direito à saúde e à integridade física do usuário. Seria inversão da ordem constitucional conferir maior proteção ao direito de crédito da concessionária que aos direitos fundamentais à saúde e à integridade física do consumidor. Precedente do STJ.
3. Recurso Especial provido.
(REsp 1245812/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 21/06/2011, DJe 01/09/2011)
SUSPENSÃO DOS EFEITOS DE MEDIDA LIMINAR. CORTE DO FORNECIMENTO DE ÁGUA A ÓRGÃOS DE PREFEITURA MUNICIPAL, POR FALTA DE PAGAMENTO. Mesmo quando o consumidor é órgão público, o corte do fornecimento de água está autorizado por lei sempre que resultar da falta injustificada de pagamento, e desde que não afete a prestação de serviços públicos essenciais, v.g., hospitais, postos de saúde, creches, escolas; caso em que só os órgãos burocráticos foram afetados pela medida. Agravo regimental provido.
(AgRg na SS 1764/PB, Rel. Ministro BARROS MONTEIRO, Rel. p/ Acórdão Ministro ARI PARGENDLER, CORTE ESPECIAL, julgado em 27/11/2008, DJe 16/03/2009)
3. CONCLUSÃO
Por todo o expendido, é de se afirmar que a jurisprudência do STJ firmou-se no sentido de reconhecer a legalidade na interrupção do fornecimento de serviços públicos quando houver inadimplemento por parte do usuário.
Contudo, tal autorização não foi perfilhada como um direito absoluto, uma vez que é regrada e, por conseguinte, afastada, quando o consumidor inadimplente for unidades públicas essenciais; estiver em situação de miserabilidade e com seu direito à saúde e integridade física comprometidos; bem como nos casos de débitos antigos e consolidados.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. P. 350.
MARQUES, Cláudia Lima et al. Comentários ao código de defesa do consumidor. São Paulo: RT, 2004.
MELO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 17º ed. São Paulo: Malheiros, 2004. P. 620.
AgRg nos EDcl no Ag 1155026 / SP. STJ. 1º turma. Relator Min. Hamilton Carvalhido. Data da publicação: 22.04.2010.
REsp 122812/ES. STJ. 1º turma. Relator Min. Luiz Pereira. Data da publicação: 26.03.2001.
REsp 337965/MG. STJ. 2º turma. Relatora Min. Eliana Calmon. Data da publicação: 20.10.2003.
REsp 1194150/RS. STJ. 2º turma. Relator Min. Herman Benjamin. Data da publicação: 14.09.2010.
[1] FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. P. 350.
[2] MELO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 17º ed. São Paulo: Malheiros, 2004. P. 620.
[3] MARQUES, Cláudia Lima et al. Comentários ao código de defesa do consumidor. São Paulo: RT, 2004.
[4] REsp 122812/ES. STJ. 1º turma. Relator Min. Luiz Pereira. Data da publicação: 26.03.2001.
[5] REsp 337965/MG. STJ. 2º turma. Relatora Min. Eliana Calmon. Data da publicação: 20.10.2003.
[6] REsp 1194150/RS. STJ. 2º turma. Relator Min. Herman Benjamin. Data da publicação: 14.09.2010.
[7] AgRg nos EDcl no Ag 1155026 / SP. STJ. 1º turma. Relator Min. Hamilton Carvalhido. Data da publicação: 22.04.2010.
Advogada. Bacharelado em Ciências Jurídicas - Centro Universitário de João pessoa - UNIPÊ. Pós-Graduação em Direito Público na Universidade Anhanguera - Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes. Aprovada no Exame da Ordem dos Advogados do Brasil, em 1ª lugar na Paraíba. Já foi nomeada como Procuradora do Estado de Minas Gerais e também como Técnica Judiciária do Tribunal de Justiça da Paraíba.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERNANDES, Fernanda Vasconcelos. É lícito ao concessionário de serviços públicos interromper seu fornecimento diante do inadimplemento do usuário? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 dez 2013, 05:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37686/e-licito-ao-concessionario-de-servicos-publicos-interromper-seu-fornecimento-diante-do-inadimplemento-do-usuario. Acesso em: 22 nov 2024.
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