Introdução
O presente artigo objetiva discutir, à luz da Constituição Federal de 1988, o entendimento sedimentado na Súmula 10 do Superior Tribunal Militar.
A referida súmula trata da vedação da liberdade provisória no crime militar de deserção antes de decorrido o prazo de sessenta dias previsto no art. 453 do Código de Processo Penal Militar.
Como veremos, o entendimento jurisprudencial do STM é, contudo, incompatível com o sistema de direitos e garantias fundamentais estabelecido pela Constituição Federal de 1988.
1. O art. 453 do CPPM e a Súmula 10 do Superior Tribunal Militar
O art. 453 do CPPM está inserido no Capítulo II, que cuida do procedimento aplicável ao crime de deserção, e assim dispõe:
“Art. 453. O desertor que não for julgado dentro de sessenta dias, a contar do dia de sua apresentação voluntária ou captura, será posto em liberdade, salvo se tiver dado causa ao retardamento do processo. (Redação dada pela Lei nº 8.236, de 20.9.1991)”
A Súmula 10 do STM, por sua vez, editada em 1996 e aplicada até hoje, veicula o seguinte entendimento da Corte Castrense:
“Não se concede liberdade provisória a preso por deserção antes de decorrido o prazo previsto no art. 453 do CPPM”.
Em outras palavras, segundo o STM, uma vez cometido o crime de deserção e capturado ou se apresentado o desertor, é obrigatória a sua custódia cautelar pelo período previsto no art. 453 do CPPM.
Mencionamos, ainda, outro dispositivo do CPPM invocado como suporte a esse entendimento. Trata-se do art. 270, parágrafo único, “b”, que dispõe o seguinte:
“Art. 270. O indiciado ou acusado livrar-se-á sôlto no caso de infração a que não fôr cominada pena privativa de liberdade.
Parágrafo único. Poderá livrar-se sôlto:
[...]
b) no caso de infração punida com pena de detenção não superior a dois anos, salvo as previstas nos arts. 157, 160, 161, 162, 163, 164, 166, 173, 176, 177, 178, 187, 192, 235, 299 e 302, do Código Penal Militar”.
De acordo com esse dispositivo, o indivíduo acusado da prática do crime de deserção, previsto no art. 187 do Código Penal Militar, não responderá ao processo em liberdade.
Ocorre que, na ordem constitucional em vigor desde 1988, não é possível admitir a existência de prisão cautelar obrigatória e automática, estabelecida tão-somente em razão do crime imputado ao indivíduo, como veremos a seguir.
2. Da prisão cautelar na Constituição Federal de 1988
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o processo penal brasileiro precisou rever diversos institutos, inclusive o da prisão cautelar.
Com efeito, no atual sistema constitucional brasileiro, a liberdade é direito fundamental do indivíduo, expressamente previsto no art. 5º, caput, da Constituição Federal.
Depreende-se, portanto, que a liberdade é a regra e a prisão, por conseguinte, é exceção.
De fato, é princípio basilar do processo penal e, mais, do próprio Estado Democrático de Direito, a presunção de inocência. Trata-se de princípio erigido à condição de verdadeiro direito fundamental, previsto no art. 5º, LVII, da Constituição Federal.
No sistema adotado pela Constituição Federal de 1988, consagrou-se, na verdade, mais do que simples presunção da inocência do indivíduo, mas sim uma afirmação da situação de inocente salvo sentença penal condenatória transitada em julgado. Seria mais adequado, portanto, falar em princípio do estado de inocência. Nesse sentido, a lição de EUGÊNIO PACELLI (2012, p. 491):
“O princípio da inocência, ou da não culpabilidade, cuja origem mais significativa pode ser referida à Revolução Francesa e à queda do Absolutismo, sob a rubrica da presunção de inocência, recebeu tratamento distinto por parte de nosso constituinte de 1988. A nossa Constituição, com efeito, não fala em nenhuma presunção de inocência, mas da afirmação dela, como valor normativo a ser considerado em todas as fases do processo penal ou da persecução penal, abrangendo, assim, tanto a fase investigatória (pré-processual) quanto a fase processual propriamente dita (ação penal)”
Em se tratando de prisão cautelar, esse princípio assume grande relevância, corroborando a afirmação, feita na introdução deste texto, de que a liberdade é regra e a prisão, exceção.
Nesse contexto, extrai-se que a prisão preventiva, modalidade de prisão cautelar, não tem caráter punitivo, ou seja, não configura instrumento de antecipação de pena, até porque, sem a existência de sentença penal condenatória transitada em julgado, não existe indivíduo culpado e merecedor de pena. Na lição de AURY LOPES JÚNIOR, a prisão preventiva, como medida cautelar de natureza processual penal, destina-se, em verdade, à tutela do processo (2013, p. 786).
Assim, para que a prisão preventiva possa coexistir com o princípio da presunção de inocência, é necessário que a sua decretação se atenha ao caráter de excepcionalidade da medida e seja devidamente fundamentada de acordo com os princípios e regras previstos na Constituição Federal e no Código de Processo Penal.
No que diz respeito à fundamentação, trata-se de garantia estendida pela Constituição Federal a todas as decisões judiciais, sob pena de nulidade, conforme o art. 93, IX. Em matéria de privação cautelar da liberdade do indivíduo, essa garantia assume sua maior relevância, estando prevista especificamente no já citado art. 5º, LXI, da Constituição Federal.
Nesse contexto, revela-se incompatível com a Constituição Federal de 1988 a vedação, a priori ou em abstrato, da liberdade ou, em outras palavras, o estabelecimento da prisão cautelar obrigatória e automática. É necessário que se demonstre a real necessidade da privação da liberdade do indivíduo acusado da prática de um crime, ainda que militar, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. Repetimos: estamos tratando de uma prisão que se configura como medida cautelar e não como pena, uma vez inexistente o julgamento definitivo do acusado.
O Supremo Tribunal Federal, a propósito, já decidiu nesse sentido, reformando acórdãos proferidos pelo STM. A título de exemplo, transcrevemos as seguintes ementas:
“HABEAS CORPUS” – CRIME MILITAR DE DESERÇÃO (CPM, ART. 187) – PRISÃO CAUTELAR – UTILIZAÇÃO DE CRITÉRIOS INCOMPATÍVEIS COM A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – A DENEGAÇÃO, AO PACIENTE, DO DIREITO DE ESTAR EM LIBERDADE, DEPENDE, PARA LEGITIMAR-SE, DA OCORRÊNCIA CONCRETA DAS HIPÓTESES REFERIDAS NO ART. 312 DO CPP – A JUSTIÇA MILITAR DEVE JUSTIFICAR, EM CADA SITUAÇÃO OCORRENTE, A IMPRESCINDIBILIDADE DA ADOÇÃO DE MEDIDA CONSTRITIVA DO “STATUS LIBERTATIS” DO ACUSADO OU DO RÉU – SITUAÇÃO EXCEPCIONAL NÃO VERIFICADA NA ESPÉCIE – ILEGITIMIDADE NA DECRETAÇÃO DE PRISÃO MERAMENTE PROCESSUAL COM APOIO, TÃO SOMENTE, NO ART. 453 DO CPPM – INJUSTO CONSTRANGIMENTO CONFIGURADO – PRECEDENTES – PEDIDO DEFERIDO. – A prisão processual prevista no dispositivo inscrito no art. 453 do CPPM não prescinde da demonstração da existência de situação de real necessidade, apta a ensejar, ao Estado, quando efetivamente configurada, a adoção – sempre excepcional – dessa medida constritiva de caráter pessoal, a significar que a Justiça Militar deve justificar, em cada caso ocorrente, a imprescindibilidade da medida constritiva do “status libertatis” do indiciado ou do acusado, sob pena de caracterização de ilegalidade ou de abuso de poder na decretação de prisão meramente processual.
(HC 112487, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 24/09/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-204 DIVULG 14-10-2013 PUBLIC 15-10-2013)”
“Habeas Corpus. 1. No caso concreto, alega-se falta de fundamentação de acórdão do Superior Tribunal Militar (STM) que revogou a liberdade provisória do paciente por ausência de indicação de elementos concretos aptos a lastrear a custódia cautelar. 2. Crime militar de deserção (CPM, art. 187). 3. Interpretação do STM quanto ao art. 453 do CPPM ("Art. 453. O desertor que não for julgado dentro de sessenta dias, a contar do dia de sua apresentação voluntária ou captura, será posto em liberdade, salvo se tiver dado causa ao retardamento do processo"). O acórdão impugnado aplicou a tese de que o art. 453 do CPPM estabelece o prazo de 60 (sessenta) dias como obrigatório para a custódia cautelar nos crimes de deserção. 4. Segundo o Ministério Público Federal (MPF), a concessão da liberdade provisória, antes de ultimados os 60 (sessenta) dias, previstos no art. 453 do CPPM, não implica qualquer violação legal. O Parquet ressalta, também, que o decreto condenatório superveniente, proferido pela Auditoria da 8ª CJM, concedeu ao paciente o direito de apelar em liberdade, por ser primário e de bons antecedentes, não havendo qualquer razão para que o mesmo seja submetido a nova prisão. 5. Para que a liberdade dos cidadãos seja legitimamente restringida, é necessário que o órgão judicial competente se pronuncie de modo expresso, fundamentado e, na linha da jurisprudência deste STF, com relação às prisões preventivas em geral, deve indicar elementos concretos aptos a justificar a constrição cautelar desse direito fundamental (CF, art. 5º, XV - HC nº 84.662/BA, Rel. Min. Eros Grau, 1ª Turma, unânime, DJ 22.10.2004; HC nº 86.175/SP, Rel. Min. Eros Grau, 2ª Turma, unânime, DJ 10.11.2006; HC nº 87.041/PA, Rel. Min. Cezar Peluso, 1ª Turma, maioria, DJ 24.11.2006; e HC nº 88.129/SP, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, unânime, DJ 17.8.2007). 6. O acórdão impugnado, entretanto, partiu da premissa de que a prisão preventiva, nos casos em que se apure suposta prática do crime de deserção (CPM, art. 187), deve ter duração automática de 60 (sessenta) dias. A decretação judicial da custódia cautelar deve atender, mesmo na Justiça castrense, aos requisitos previstos para a prisão preventiva nos termos do art. 312 do CPP. Precedente citado: HC nº 84.983/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, unânime, DJ 11.3.2005. Ao reformar a decisão do Conselho Permanente de Justiça do Exército, o STM não indicou quaisquer elementos fático-jurídicos. Isto é, o acórdão impugnado limitou-se a fixar, in abstracto, a tese de que "é incabível a concessão de liberdade ao réu, em processo de deserção, antes de exaurido o prazo previsto no art. 453 do CPPM". É dizer, o acórdão impugnado não conferiu base empírica idônea apta a fundamentar, de modo concreto, a constrição provisória da liberdade do ora paciente (CF, art. 93, IX). Precedente citado: HC nº 65.111/RJ, julgado em 29.5.1987, Rel. Min. Célio Borja, Segunda Turma, unânime, DJ 21.8.1987). 7. Ordem deferida para que seja expedido alvará de soltura em favor do ora paciente.
(HC 89645, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 11/09/2007, DJe-112 DIVULG 27-09-2007 PUBLIC 28-09-2007 DJ 28-09-2007 PP-00078 EMENT VOL-02291-03 PP-00529)”
Conclusão
A privação cautelar da liberdade, na ordem constitucional em vigor desde 1988, depende da demonstração de sua real necessidade, não se admitindo o estabelecimento da prisão preventiva obrigatória e automática. Esse entendimento também é aplicável à Justiça Militar, que se sujeita à observância dos direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição Federal de 1988. Ainda que se trate, portanto, de uma acusação relativa ao crime militar de deserção, tem o acusado o direito de responder ao processo em liberdade, salvo se demonstrado, por decisão rigorosamente fundamentada, a necessidade concreta da sua custódia cautelar.
Referências
LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2013.
PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. São Paulo: Ed. Atlas, 2012.
Defensora Pública Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NASCIMENTO, Mariana Lucena. A inconstitucionalidade da prisão cautelar obrigatória no crime militar de deserção Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 dez 2013, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37849/a-inconstitucionalidade-da-prisao-cautelar-obrigatoria-no-crime-militar-de-desercao. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabriel Bacchieri Duarte Falcão
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