Resumo: Este artigo tem como objetivo lançar luzes sobre a legalidade da exigência, feita por alguns órgãos estaduais de trânsito, da apresentação do comprovante de realização da avaliação psicológica preliminar e complementar (de que trata o § 3º do artigo 147 do CTB, introduzido pela Lei nº 10.350/2001) como requisito para a habilitação de servidores públicos que, a serviço e de forma eventual, conduzam veículos automotores.
Ao alterar a redação do artigo 147 da Lei nº 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro – CTB), a Lei nº 10.350, de 21 de dezembro de 2001, estabeleceu a obrigatoriedade de realização de avaliação psicológica preliminar e complementar a todos os candidatos à Carteira Nacional de Habilitação que exerçam atividade remunerada ao veículo.
O dispositivo traz a seguinte redação:
“Art. 147 – O candidato à habilitação deverá submeter-se a exames realizados pelo órgão executivo de trânsito, na seguinte ordem:
I – de aptidão física e mental;
II – (VETADO)
III – escrito, sobre legislação de trânsito;
IV – de noções de primeiros socorros, conforme regulamentação do CONTRAN;
V – de direção veicular, realizado na via pública, em veículo da categoria para a qual estiver habilitando-se.
§ 1º - Os resultados dos exames e a identificação dos respectivos examinadores serão registrados no RENACH.
§ 2º - O exame de aptidão física e mental será preliminar e renovável a cada cinco anos, ou a cada três anos para condutores com mais de sessenta e cinco anos de idade, no local de residência ou domicílio do examinado. (parágrafo acrescentado pela Lei nº 9.602/98).
§ 3º - O exame previsto no § 2º incluirá a avaliação psicológica preliminar e complementar sempre que a ele se submeter o condutor que exerce atividade remunerada ao veículo, incluindo-se esta avaliação para os demais candidatos apenas no exame referente à primeira habilitação. (parágrafo acrescentado pela Lei nº 10350/2001)
§ 4º - Quando houver indícios de deficiência física, mental, ou de progressividade de doença que possa diminuir a capacidade para conduzir o veículo, o prazo previsto no § 2º poderá ser diminuído por proposta do perito examinador. (parágrafo acrescentado pela Lei nº 9.602/98)
§ 5º - O condutor que exerce atividade remunerada ao veículo terá essa informação incluída na Carteira Nacional de Habilitação, conforme especificações do Conselho Nacional de Trânsito – CONTRAN. (parágrafo acrescentado pela Lei nº 10.350/2001)”
Sem razão, contudo.
Com efeito, há de se ter em conta que a utilização dos veículos oficiais por esses servidores não corresponde à sua atividade principal, sendo ela mero INSTRUMENTO para a consecução de seus deveres funcionais, consistente no cumprimento de mandados judiciais (no caso dos oficiais de justiça), na realização de atividades de fiscalização (no caso dos fiscais) ou na coleta de informações junto à pessoas físicas ou jurídicas (recenseadores do IBGE). O intuito da lei parece ter sido o de abarcar apenas aqueles condutores que têm na condução de veículos automotores o escopo de sua atividade profissional remunerada. A remuneração a que fazem jus deve decorrer diretamente - e ter como causa - a própria condução de veículos, o que, a toda evidência, não ocorre com os servidores naquelas condições.
Regulamentando a matéria, a Resolução nº 168 do Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN), de 14 de dezembro de 2004, parece ter melhor delimitado o alcance da expressão “atividade remunerada ao veículo” contida no CTB, ao fixar a obrigatoriedade de submissão à avaliação psicológica preliminar e complementar para o condutor que “exerce atividade de transporte remunerado de pessoas ou bens”, o que deixa claro que o alvo da atenção do legislador foi aquele profissional que realiza a atividade de transporte como atividade-fim, e não como atividade meramente instrumental para outra atividade qualquer.
A título de curiosidade, vale transcrever o artigo 4º da referida resolução, com especial ênfase para seu §1º:
“Art. 4º O Exame de Aptidão Física e Mental será preliminar e renovável a cada cinco anos, ou a cada três anos para condutores com mais de sessenta e cinco anos de idade, no local de residência ou domicílio do examinado.
§1º O condutor que exerce atividade de transporte remunerado de pessoas ou bens terá que se submeter à Avaliação Psicológica preliminar e complementar ao Exame de Aptidão Física e Mental, quando da renovação da CNH.
§2º Quando houver indícios de deficiência física, mental ou de progressividade de doença que possa diminuir a capacidade para conduzir veículo, o prazo de validade do exame poderá ser diminuído a critério do médico e/ou psicólogo perito examinador.
(...)”
Deveras, parece-nos que a finalidade da regra sob análise foi a de submeter aos exames psicológicos adicionais apenas aqueles que tenham o veículo automotor como núcleo de sua atividade profissional remunerada, como se dá, por exemplo, com os transportadores profissionais de carga, motoristas de táxis, motoristas de ônibus e outros em situações análogas. Em outras palavras, a utilização de veículo deve ser essencial à atividade desempenhada pelo motorista, que a exercerá em caráter principal. Aliás, é perfeitamente compreensível o maior cuidado do legislador em relação a tais categorias, uma vez que nelas os condutores encontram-se em contato permanente com o veículo, o que acarreta a sensível majoração dos riscos inerentes à direção.
Ademais, para se ter uma melhor ideia do potencial nocivo acarretado pela descabida exigência levada a cabo por algumas autoridades de trânsito, vale lembrar que, em virtude das restruturações ocorridas nos últimos anos no âmbito das diversas entidades e órgãos administrativos, tornou-se praticamente inexistente, nos quadros de pessoal da Administração Pública, um quadro específico de motoristas, fazendo com que as atividades de condução de veículos deva ser realizada, cada vez mais, por servidores admitidos para executarem outras atividades (vale dizer, por motoristas não profissionais), que dificilmente se submeteram à avaliação psicológica complementar de que trata o CTB. Assim, caso mantida a exigência de comprovação da realização de avaliação psicológica, é fácil perceber que inúmeras atividades de interesse público desempenhada por esses servidores estarão em risco, considerando que os veículos que lhes permitem executar suas tarefas institucionais ficariam impedidos de circular pela ausência de motoristas profissionais para conduzi-los.
Em que pese tudo o que aqui se afirmou, é preciso enfrentar a questão sob um prisma mais prático. Cabe-nos ponderar que o dispositivo não faz expressamente a distinção que acabamos de fazer, sendo certo que um princípio básico de hermenêutica reza que o intérprete não deve distinguir onde o legislador não o fez. O que se pretende afirmar com isto é que a norma em comento pode dar azo a controvérsias de interpretação e aplicação. A propósito, é o que já se observa na atualidade, onde certos órgãos de fiscalização tem manifestado o entendimento segundo o qual os servidores que se utilizam dos veículos oficiais em serviço – ainda que de forma eventual e como meio instrumental para a consecução de sua atividade principal - encontram-se sujeitos à incidência da norma (inclusive, muitas vezes, fazendo ameaças de aplicação de multas).
O Conselho Nacional de Trânsito - CONTRAN, segundo o art. 7º da Lei nº 9.503/97, é o órgão máximo normativo e consultivo componente do Sistema Nacional de Trânsito, possuindo, dentre suas relevantes atribuições, a de estabelecer as normas regulamentares sobre a aplicação do Código e as diretrizes da Política Nacional de Trânsito. Além disso, como decorrência deste seu poder normativo, cabe ao CONTRAN dirimir dúvidas relativas à aplicação das leis de trânsito, conforme o art. 12, inciso XI da Lei nº 9.503/97, in verbis:
“Art. 12 – Compete ao CONTRAN:
(...)
IX – responder às consultas que lhe forem formuladas, relativas à aplicação da legislação de trânsito.”
Portanto, tendo em vista que o CONTRAN ainda não se manifestou definitivamente sobre o tema, e a fim de se evitarem os possíveis (e prováveis) transtornos que a divergência na aplicação da Lei nº 10.350/2001 poderão gerar para inúmeros órgãos e entidades da Administração Pública, é recomendável que estes formulem consulta àquele Conselho sempre que se depararem com tais exigências por parte dos órgãos estaduais de trânsito, resguardando-se, assim, de exigências que venham a lhes ser feitas futuramente.
Referências:
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 19º edição. Rio de Janeiro: Forense, 2001
SOBRINHO, José Almeida. Comentários ao Código de Trânsito Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2013
Procurador Federal. Coordenador da Coordenação para Assuntos de Consultoria da Procuradoria Federal na Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOSQUEIRA, Bruno Alves. Avaliação psicológica preliminar e complementar como requisito para a habilitação de motoristas que exerçam atividade remunerada ao volante: não aplicação a servidores públicos que conduzam veículos de forma meramente eventual Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 dez 2013, 05:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37880/avaliacao-psicologica-preliminar-e-complementar-como-requisito-para-a-habilitacao-de-motoristas-que-exercam-atividade-remunerada-ao-volante-nao-aplicacao-a-servidores-publicos-que-conduzam-veiculos-de-forma-meramente-eventual. Acesso em: 22 nov 2024.
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