Introdução
O presente estudo decorre do caso prático abaixo narrado, o qual desafiou orientação jurídica não usual, mas com suporte no ordenamento pátrio. No caso, propunha-se a alienação de bem imóvel pertencente a uma entidade da Administração para outra (transferência interadministrativa), mas com uma peculiaridade: não obstante a transferência de propriedade, o proprietário-alienante deveria permanecer ocupando a parte que utilizava no momento da alienação.
Tratava-se de um imóvel de grandes dimensões, mas que era ocupado numa parte mínima (cerca de 10%) pelo órgão proprietário. Não obstante a ocupação ínfima da edificação, a integralidade das despesas com manutenção recaíam sobre o ente público proprietário. Além dessa situação, foi informado que o ente proprietário estava em vias de receber em doação um terreno onde edificaria sede própria, com dimensões e instalações mais adequadas à realização de suas atividades.
Para agravar a situação, o órgão público que se propôs a adquirir contava com recursos orçamentários suficientes para a compra de todo o imóvel e, em razão da proximidade do encerramento do exercício financeiro, poderia perder esses recursos sem executá-lo, deixando de realizar o interesse que ambos os entes públicos tinham na transferência integral da propriedade. O óbice a ser superado era o seguinte: enquanto utilizado em finalidades administrativas, o bem público é considerado de uso especial, por isso inalienável nos termos da Lei. Embora a edificação fosse ocupada em parte mínima, ela, que estava indivisa, seria inalienável, o que impediria a transação.
Diante desses fatos, foi necessária uma análise mais detalhada acerca do instituto da afetação, dos critérios para classificação dos bens públicos e da inalienabilidade relativa prevista em Lei, de onde se concluiu pela possibilidade de realizar a transação por mais de uma maneira dentre aquelas admitidas juridicamente. Ao final, verificou-se inclusive a possibilidade jurídica da transferência integral do imóvel, ficando resguardada a utilização da pequena parte então ocupada pelo órgão público alienante e a manutenção de seus serviços até que concluída a nova sede.
Antes de iniciar a análise em si, é importante consignar que o art. 17, I, da Lei nº 8.666/93 exige legislação que autorize a alienação de bem imóvel. No caso em apreço, deve-se partir da premissa de existência dessa autorização geral para alienação dos bens considerados dominiais, bastando que o órgão público o desafetasse, ou seja, o enquadrasse como dominial.
A classificação dos bens públicos, sua relativa inalienabilidade e a desafetação
A disciplina geral dos bens públicos encontra-se no Código Civil, que separa os bens públicos dos privados segundo a titularidade (art. 98) e classifica os bens públicos conforme o seu uso (art. 99), descrevendo em seguida (arts. 100 a 103) o regime jurídico aplicável a cada um. Calha transcrever os seguintes dispositivos:
Art. 98. São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem.
[...]
Art. 100. Os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar.
Art. 101. Os bens públicos dominicais podem ser alienados, observadas as exigências da lei.
(sublinhamos)
Embora divididos em três grupos (de uso comum; de uso especial e dominicais), a doutrina costuma separar os bens públicos em dois grupos, classificação que melhor se coaduna com o regime jurídico que lhes é aplicável, mormente no que toca à possibilidade de alienação:
Pelos termos do artigo 99, verifica-se que existe um ponto comum – a destinação pública – nas duas primeiras modalidades (bens de uso comum do povo e bens de uso especial), e que as diferencia da terceira. Por essa razão, [...], consideramos, sob o aspecto do regime jurídico, duas modalidades de bens públicos:
1. os do domínio público do Estado, abrangendo os de uso comum do povo e os de uso especial;
2. os de domínio privado do Estado, abrangendo os bens dominicais.
Isso significa que, embora o Código Civil tenha adotado classificação tripartite, que permite enquadrar os bens públicos pelo critério da destinação, na realidade, sob o ponto de vista do regime jurídico, existem apenas duas modalidades.
(Di Pietro, 2010: 07 - sublinhamos)
O trânsito entre esses dois grupos de bens públicos faz-se pelo denominado instituto da desafetação, por meio do qual se dá a alteração na finalidade do bem. Di Pietro explica que “o critério dessa classificação é o da destinação ou afetação dos bens” (2010: 07).
Carvalho Filho ensina que:
O tema da afetação e da desafetação diz respeito aos fins para os quais está sendo utilizado o bem público. Se o bem está sendo utilizado para determinado fim público, [...], está afetado a determinado fim público. [...]
Ao contrário, o bem se diz desafetado quando não está sendo usado para qualquer fim público. [...].
Afetação e desafetação são os fatos administrativos dinâmicos que indicam a alteração das finalidades do bem público. Se o bem está afetado e passa a desafetado do fim público, ocorre a desafetação; se, ao revés, um bem desativado passar a ter alguma utilização pública, poderá dizer-se que ocorreu a afetação.
(2009: 1082-1083 - destaques no original)
Assim, para que o bem seja alienado é imprescindível a qualificação como dominical e essa qualificação é feita mediante o ato de desafetação. A afetação ou desafetação depende de atos expressos ou tácitos, nunca fáticos (Marrara, 2007: 72-76). Daí se conclui que o mero desuso não muda a destinação de um bem público, sendo necessário um fato jurídico (expresso ou tácito) a evidenciar a alteração de destinação do bem.
Em relação ao caso prático ora em apreço, pode-se afirmar então que a parte não utilizada do imóvel, por maior que fosse o tamanho ou o abandono, encontrava-se ainda assim afetada, desafiando algum ato que, expressa ou tacitamente, exprimisse sua desafetação, seu enquadramento como bem dominial, assim passível de alienação. Em outra palavras, por menor que fosse o uso, a edificação era considerada inalienável.
Desta feita, seria necessário de início um ato administrativo que desafetasse o bem (ou parte dele), a partir de quando seria classificado juridicamente como patrimônio dominial, ainda que permanecesse a situação fática de ocupação. Nos motivos ensejadores da desafetação (total ou parcial), seriam postas as peculiaridades do caso concreto mencionadas na introdução desse estudo, as quais dariam suporte à desafetação e ulterior alienação, apesar da ocupação.
A desafetação com permanência da ocupação traz, contudo, algumas dúvidas, inclusive jurídicas: como resguardar esse direito de ocupação do imóvel até a mudança para a nova sede? Não seria contraditório enquadrar um bem como dominial quando os fatos demonstram que é necessário, ainda que parte mínima dele, ao exercício da atividade, sendo qualificado por isso como de uso especial? A questão seria mitigada pelo fato de o bem ser alienado a outro ente público? Eram essas as dúvidas que permeavam a realização do ato de alienação.
Diante de tal contexto e das disposições do Código Civil, uma vez desafetado o bem, ele estaria apto para ser alienado, inclusive mediante leilão, a despeito da existência de um órgão público funcionando no local. Tal situação revela um contrassenso, pois, em princípio, não poderia a Administração ter alterado a destinação jurídica de determinado imóvel e, ao mesmo tempo, manter a situação fática de utilização. Em outras palavras, mostra-se em princípio contraditória a desafetação de um bem público onde ainda se presta serviço público.
Seria possível alegar a ocorrência de irregularidade no ato de desafetação incondicionada (autorização para alienação de todo o imóvel sem quaisquer ressalvas), quando na verdade o imóvel é parcialmente utilizado na prestação de serviços públicos. Haveria no ato de desafetação sem ressalvas uma contradição entre o uso que se faz e o ato proferido, uma dissociação da realidade fática (imóvel parcialmente utilizado nos serviços da Administração) e a realidade jurídica (imóvel disponível para alienação), o que merece certa reflexão.
Por todos esses motivos, seria imprescindível que o ato de desafetação tomasse como base os motivos citados na introdução desse estudo: subutilização do imóvel, custos com a manutenção de uma estrutura bem maior do que a necessária e a proposta de mudança para uma sede própria. Esses argumentos, além de motivar uma decisão não usual, cumpririam a exigência do art. 17, caput, da Lei nº 8.666/93 (existência de interesse público devidamente justificado). Seria importante, ainda, no ato de desafetação, esclarecer a necessidade e a forma de o órgão alienante continuar ocupando temporariamente parte do imóvel.
Todo esse arrazoado passa pela comprovação de um dos requisitos do ato administrativo: o motivo. A decisão de desafetar e alienar deve ser devidamente motivada, ainda mais nesse específico caso, de permanência da ocupação.
No caso narrado, o diferencial está no fato de que uma entidade pública seria a adquirente do imóvel, a fim de lhe dar destinação igualmente pública. O bem não passaria à comercialidade privada, por se tratar de uma transferência interadministrativa e não extra-administrativa, como distinguem Moreira e Guimarães (2012: 362-363). Para os autores, nesse tipo de alienação “ele [o bem] persistirá na condição de bem público”, não sairá da esfera pública para a privada, pois o critério adotado pelo Código Civil para distinguir bens públicos de privados, como mencionado no início deste tópico, foi o da titularidade.
Assim, a aplicação pura e simples do instituto da desafetação e das disposições do Código Civil transcritas acima sobre alienabilidade de bens públicos merece temperamentos no caso das transferências interadministrativas. Segundo o art. 98 do Código Civil, um bem é público a depender da titularidade, ou seja, é público o bem pertencente a pessoa jurídica de direito público. No caso em tela, mesmo com a alienação (o tornar alheio), o bem continuaria a ser público. Além de permanecer sob titularidade pública, sairia de uma situação de utilidade nula, uma vez que se encontrava sem qualquer uso, público ou privado, para ter uma utilidade pública, realizando a função social da propriedade, como será visto mais abaixo.
Por isso, se desafetação houvesse, seria um tipo sui generis, pois é desafetação para o alienante, mas afetação para o adquirente, restando o imóvel, ao fim e ao cabo, “afetado” à prestação de algum serviço público. Daí porque o pressuposto para a sua alienabilidade, no caso, não passa tanto pela investigação acerca da natureza do bem (de uso especial ou dominial), mas mais do que isso pelo interesse e uso que o proprietário-alienante faz do imóvel, pela adequação do imóvel ao uso que o proprietário-alienante faz dele, chegando-se à conclusão, de acordo com o caso concreto narrado, que o imóvel além de inadequado, é subutulizado e, acima de tudo, oneroso, haja vista os gastos com manutenção, segurança, limpeza etc. de uma estrutura que é minimamente (10%) utilizada.
A própria doutrina reconhece a peculiaridade da alienação intraestatal (interadministrativa), ou seja, da transmissão de bens públicos dentro da própria esfera pública:
Para aliená-los [os bens de uso comum do povo e de uso especial], depende de prévia desafetação, ou, nas palavras de José Cretella Júnior, de “fato ou manifestação de vontade do Poder Público mediante o qual o bem de domínio público é subtraído à dominialidade pública para ser incorporado ao domínio privado, do Estado ou do particular”.
(Di Pietro, 2010: 10 – sublinhamos)
A questão da desafetação (desvinculação de utilização pública) como pressuposto para alienação, nesse contexto de transferência interadministrativa, em que restará mantida a destinação pública (afetação), perde um pouco a relevância prática, não se revelando um óbice para a alienação objeto deste estudo. O debate teórico sobre a alienabilidade de bem de uso especial, no presente contexto, parece estéril, por demais apegado à estreiteza da lei, em detrimento de outros princípios constitucionais que orientam a atividade administrativa, como a economicidade e a eficiência.
Ainda recorrendo à doutrina, esta distingue o comércio privado do comércio público, indicando a possibilidade de transferência de propriedade, neste último caso, mesmo de bens afetados a alguma finalidade pública:
Essas características, peculiares ao regime jurídico dos bens públicos, não lhes retira a comerciabilidade jurídica, entendida segundo princípios informativos do direito público.
Nesse sentido é a lição de Marcello Caetano ao afirmar que “quando se diz que uma coisa está no comércio jurídico ou é juridicamente comerciável quer-se exprimir a suscetibilidade dessa coisa ser objeto de direitos individuais. As coisas fora do comércio não podem, por sua natureza ou por disposição legal, ser objeto de direitos individuais nem, consequentemente, de prestações: não podem ser reduzidas a propriedade ou ser objeto de posse, nem sobre elas podem fazer quaisquer contratos”. Acrescenta que “as coisas públicas estão fora do comércio jurídico privado, o que significa serem insuscetíveis de redução à propriedade particular, inalienáveis, imprescritíveis, impenhoráveis e não oneráveis pelos modos de direito privado, enquanto coisas públicas”. Mas, continua o autor, “considerando agora a situação das coisas públicas à luz das normas do direito público vemos que podem ser objeto de direito de propriedade por parte das pessoas coletivas administrativas (propriedade pública) e transferidas entre elas (transferência de domínio ou mutações dominiais); e admitem a criação de direitos reais administrativos e de direitos administrativos de natureza obrigacional em benefício dos particulares (concessões) transmissíveis de uns a outros na forma de lei”.
Outro não é o pensamento de Otto Mayer, quando ensina: “A propriedade pública se submete ao direito público. Na esfera do direito público estas coisas estão dentro do comércio. Podem alienar-se conforme as regras desse direito; toleram encargos de toda espécie em benefício de terceiros assim como as restrições que lhes são próprias”. Cita vários exemplos para ilustrar seu pensamento, como a transferência de um bem público, de uma para outra pessoa jurídica de direito público, a imposição de servidões administrativas sobre bens públicos, os direitos de gozo concedidos a particulares, como o uso de todos, a permissão especial, a concessão de uso.
(Di Pietro, 2010: 11 – sublinhamos)
Considera-se, portanto, que o imóvel do ente público proprietário mínima e inadequadamente ocupado, apesar de enquadrar-se como de uso especial, pode ser alienado a outro ente público que mantenha o uso público (a afetação). Além disso, pode subsistir a ocupação do alienante no local enquanto se desenrola o procedimento para reinstalação da estrutura administrativa em imóvel mais adequado a ser construído, bastando que para isso seja prevista cláusula contratual resguardando esse direito de permanência da ocupação.
De fato, a alienação poderia ser questionada em face da disciplina legal do Código Civil, acima citada. Mas, para além das lições doutrinárias acima transcritas, aptas a subsidiar essa alienação interestatal de bem de uso especial ora vislumbrada, hão de ser feitas algumas ponderações em torno do princípio da estrita legalidade, aplicável à Administração Pública.
O princípio da reserva legal, que orienta a atividade administrativa e é mais restrito do que o princípio da legalidade em si, tem sido objeto de reformulação doutrinária em razão dos influxos que o Direito Constitucional tem empreendido nos demais ramos da ciência jurídica:
Neste novo contexto, ao ordenar ou regular a atuação administrativa, a legalidade não mais guarda total identidade com o direito. O direito passa a abranger, além das leis – regras jurídicas –, os princípios gerais de Direito, de modo que a atuação do Poder Executivo deve conformidade não apenas à lei, mas ao Direito, decomposto em regras e princípios jurídicos, com superação do princípio da legalidade pelo princípio da juridicidade.
[...] É com a noção de juridicidade que se abandona um conceito primário de legalidade, satisfeito com o cumprimento nominal e simplista de regras isoladas. Parte-se em busca da observância íntegra do Direito, compreendido este como um conjunto de normas dentre as quais se incluem os princípios expressos e implícitos, bem como as regras específicas do ordenamento.
[...]
Destarte, atualmente quando se fala que, segundo o princípio da legalidade, o administrador público somente pode agir se a lei expressamente o autoriza, entenda-se lei como toda norma jurídica, princípios constitucionais explícitos ou implícitos, princípios gerais de direito, regras legais, normas administrativas (decretos, portarias, instruções normativas, etc.).
(Carvalho, 2007: 94-99)
Com essa releitura,
A idéia de juridicidade administrativa, elaborada a partir da interpretação dos princípios e regras constitucionais, passa, destarte, a englobar o campo da legalidade administrativa, como um de seus princípios internos, mas não mais alteneiro e soberano como outrora. Isso significa que a atividade administrativa, continua a realizar-se, via de regra (i) segundo a lei, quando esta for constitucional (atividade secundum legem), (ii) mas pode encontrar fundamento direto na Constituição, independente ou para além da lei (atividade praeter legem), ou, eventualmente, (iii) legitimar-se perante o direito, ainda que contra a lei, porém com fulcro numa ponderação de legalidade com outros princípios constitucionais (atividade contra legem, mas com fundamento numa otimizada aplicação da Constituição).
(Binenbojm, 2006: 38 – sublinhamos)
Tais lições calham no presente momento, em que os princípios constitucionais apontam para um caminho além da estrita legalidade, ainda não reconhecido pela letra da lei. O caso ora narrado demonstra que o ente público proprietário não teria interesse em manter a propriedade do imóvel, mas só a ocupação provisória, enquanto não concluída a construção da nova sede, mais adequada. De outra banda, o ente público adquirente demonstra interesse em apropriar-se da edificação inteira, passando a usar toda a parte do imóvel então inutilizada, sem prejuízo da garantia de permanência do atual proprietário no local pelo tempo de que necessitasse.
Esse retrato fático, ao tempo em que permite mitigar o instituto jurídico-administrativo da desafetação, faz emergir o postulado constitucional da função social da propriedade, cuja aplicação ao caso em tela afigura-se bastante adequada. Esse princípio de sede constitucional (art. 5º, XXIII, da CF) irradiou para o regulamento que trata da destinação e uso dos imóveis públicos federais, como se constata no Decreto nº 3.725/2001, que rege os imóveis da União, sob administração da Secretaria de Patrimônio da União (SPU):
Art. 11. [...].
§ 1º A entrega será realizada, indistintamente a órgãos dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, e observará, dentre outros, os seguintes critérios:
[...]
III - vocação do imóvel; e
IV - compatibilidade do imóvel com as necessidades do órgão, quanto aos aspectos de espaço, localização e condições físicas do terreno e do prédio.
(sublinhamos)
Considerando a função social como a utilização de um bem no grau máximo de sua potencialidade e vocação, conclui-se que a manutenção da propriedade com o ente público que o utiliza minimamente, conforme narrado no caso em apreço, fragiliza tal princípio, cuja aplicação deve ser ainda mais intensa em se tratando de bens públicos, os quais não têm uma função social, mas são uma função social (Di Pietro, 2008: 02).
A opção administrativa, discricionária pois, de alienar o imóvel e continuar a ocupá-lo parcialmente, eximindo-se da condição de proprietário e remanescendo só com a posse enquanto não providenciada estrutura mais adequada, não merece contraposição jurídica. Trata-se de questão afeta ao mérito do ato administrativo.
O constituto possessório (cláusula constituti) como mecanismo apto para assegurar a permanência no imóvel alienado
Para a finalidade vislumbrada, há institutos jurídicos que podem constar da própria escritura pública de compra e venda, como o constituto possessório (cláusula constituti). Na lição de Venosa, por meio do constituto possessório, “o proprietário aliena a coisa e continua a residir no imóvel precariamente, com posse em nome do adquirente. Externamente, nada muda. Assim como o constituto é modalidade de aquisição, também o é de perda” (2010: 98).
O instituto encaixa-se à perfeição na situação fática vislumbrada no caso em apreço. Dessa forma, o ente público alienante transmitiria a propriedade e a posse indireta do bem, resguardando o direito de uso (posse direta) de determinado espaço para os fins pretendidos.
Na operação de compra e venda de imóveis, o adquirente, por força do registro da escritura pública de compra e venda, adquire não só a propriedade, mas também a posse indireta do bem, facultando-se-lhe o manejo de ação possessória caso o alienante não desocupe o imóvel na data aprazada.
Por meio do constituto possessório (cláusula constituti), que normalmente consta de forma expressa das escrituras públicas de compra e venda de imóveis, defere-se automaticamente ao adquirente o direito supracitado. Por isso, no caso ora em tela, seria imprescindível constar da escritura cláusula de ressalva, estabelecendo que, não obstante um ente público esteja adquirindo a propriedade e a posse de todo o imóvel, não incidirá o constituto possessório sobre determinada área. No espaço ocupado pelo alienante (a ser devidamente discriminado), restaria em poder deste a posse direta do bem até que se providenciasse a sede própria e adequada para instalar os serviços até então prestados na referida parte do prédio alienado.
Assim, acessoriamente à previsão de manutenção da posse, deverá ser estipulada uma condição (evento futuro e incerto) ou um termo (evento futuro e certo) para cessar esse direito de ocupação (posse), em vez de um prazo fixo para transmissão da posse da área que remanescerá com o ente público alienante.
É preciso que o gestor tenha em mente as consequências de passar a ocupar o imóvel apenas a título de posse, como eventuais restrições para realizar reformas permanentes e a recorrente consulta ao novo proprietário em caso de dúvida sobre as formas de uso. Isso porque, apesar de continuar ocupando o imóvel, o ente público não tem mais o soberano direito real de propriedade, mas mera posse de bem pertencente a outrem.
Não obstante os inconvenientes administrativos, a serem devidamente ponderados pelo gestor no momento da decisão sobre a alienação com adoção da cláusula acima proposta, afasta-se o risco jurídico decorrente da precariedade da ocupação; fica, assim, resguardado o que é de interesse do alienante: o direito de permanecer no imóvel (posse) até que construída a nova sede.
Possíveis questionamentos sobre a legitimidade do ato de alienação podem ser afastados pelo arrazoado jurídico desenvolvido até então, reforçados pelos argumentos administrativos invocados pela Administração: inadequação do imóvel para o serviço prestado; utilização de apenas 10% (dez por cento) da área edificada, violando assim o princípio da função social da propriedade, e os custos com a sua manutenção, evitados com a alienação.
Assim, entende-se que é possível a alienação de bem público a outro ente público (transferência interadministrativa) ainda que se trate de bem classificado como de uso especial, em tese inalienável. Caso haja a necessidade de continuar ocupando temporariamente parte do bem imóvel alienado, deve-se avaliar o real interesse no desfazimento do bem, resguardando-se juridicamente para evitar que a precariedade da posse ameace a permanência do imóvel. Uma forma de assegurar essa permanência é a utilização de cláusulas como o constituto possessório (cláusula constituti), ressalvando a manutenção do direito de posse em relação a determinada área. Pelos motivos gerenciais e administrativos apresentados, pode-se ainda afirmar que, para além da legalidade, esse tipo de alienação teria amparo nos princípios da economicidade, eficiência e função social da propriedade, todos adotados expressamente pela Constituição Federal.
A divisão do imóvel ou a instituição de condomínio: uma opção a ser considerada
Outras opções vislumbradas para o caso que analisado foram a divisão (desmembramento) do imóvel ou a instituição de condomínio, soluções aqui mencionadas a título meramente ilustrativo, uma vez que o cerne do estudo é a transferência (alienação) interadministrativa com manutenção da posse. De toda sorte, caberá ao gestor, ponderando os ganhos auferidos e as restrições decorrentes da ocupação de imóvel de terceiro, decidir se é conveniente e oportuno aceitar a venda nos termos propostos acima ou adotar outra solução legal que vislumbre mais adequada.
A opção pelo desmembramento deve avaliar, primeiramente, as características do imóvel, isto é, sua divisibilidade fática. No art. 87, o Código Civil define como divisíveis os bens que “se podem fracionar sem alteração na sua substância, diminuição considerável de valor, ou prejuízo do uso a que se destinam”. No caso narrado, o imóvel parecia ser indivisível fisicamente, pois se tratava de edificação única, cuja ocupação e uso parciais se dava mais devido a contingências do que propriamente à vocação do prédio. Em outras palavras, a divisão parecia prejudicar o uso a que se destinava, que era a utilização uniforme, não fragmentada ou seccionada.
Não sendo possível a divisão física, abre-se espaço para a divisão jurídica do bem, isto é, a existência de uma copropriedade (condomínio) sobre o mesmo bem, indivisível por natureza. Nesse sentido, a doutrina distingue o condomínio pro diviso do condomínio pro indiviso:
No condomínio pro diviso, existe mera aparência de condomínio, porque os comunheiros localizaram-se em parte certa e determinada da coisa, sobre a qual exercem exclusivamente o direito de propriedade. Nos edifícios de apartamentos e outros condomínios assemelhados, cada unidade autônoma é independente das demais, por força de lei. Os condôminos nessa situação exercem a comunhão pro indiviso apenas no tocante às áreas comuns dos prédios. Nessas áreas, não podem exercer o domínio pro diviso.
Por vezes, vários são os proprietários da mesma área, mas já localizados sobre determinada gleba: cercaram-na, respeitam os respectivos limites. Nessas hipóteses de condomínio pro diviso, a comunhão existe de direito, mas não de fato. Incumbe aos comunheiros tão-só regularizar a divisão do imóvel junto ao registro imobiliário.
Na comunhão pro indiviso, a indivisibilidade é de direito e de fato. A propriedade é exercida em comum, sob a égide das cotas ideais. [...].
(Venosa, 2010: 341-342)
O caso, portanto, seria de desmembrar o imóvel para que nele passasse a existir um condomínio pro diviso, no qual o alienante exerceria a propriedade exclusiva sobre a parcela do imóvel que atualmente ocupa (10% da área total) e o adquirente compraria a parte remanescente (90%), passando a existir, a partir de então um condomínio.
Tal medida exigiria o prévio desmembramento no registro de imóveis (art. 167, II, n. 4, in fine, da Lei nº 6.015/73), com o destaque da parte que remanesceria com o alienante. Essa situação implicaria a criação de um condomínio edilício, nos moldes dos arts. 1331 e seguintes do Código Civil, que traz como uma das condições “a discriminação e individualização das unidades de propriedade exclusiva, estremadas uma das outras e das partes comuns” (art. 1332, I). A medida seria necessária até mesmo para a avaliação da área remanescente que será alienada.
Conclusão
Por todo o exposto e diante das peculiaridades do caso concreto narrado no início deste estudo, conclui-se ser possível a alienação integral de um imóvel de um ente público para outro, ainda que o alienante precise ficar instalado no bem alienado enquanto construída nova sede. O instituto da desafetação, no caso, não tem a mesma natureza daquela ocorrida na transferência de patrimônio público para o privado, caso em que o bem imóvel perde completamente a vinculação a alguma atividade pública.
Para resguardar seu direito de posse e uso da parte que ocupará, o alienante pode utilizar-se de institutos como o constituto possessório (cláusula constituti), a ser devidamente discriminado na escritura pública de compra e venda, ressalvando a permanência do direito de ocupação (posse) apesar da transferência da propriedade.
Outras soluções jurídicas para a situação em apreço seriam o desmembramento do imóvel e alienação somente da parte não ocupada ou a instituição de condomínio edilício sobre a edificação. Em ambos os casos poderia haver prejuízo econômico na solução adotada, pois restaria uma parte ínfima a ser alienada, cujo interesse provavelmente seria bem reduzido; talvez só o adquirente anterior tenha interesse nessa aquisição de parte ínfima remanescente.
REFERÊNCIAS
BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo: Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
CARVALHO, Raquel Melo Urbano. Curso de Direito Administrativo. Parte Geral, Intervenção do Estado e Estrutura da Administração. 2 ed. 2009.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 21 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
DI PIETRO, Maria Sylvia. Uso Privativo de Bem Público por Particular. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2010.
___________. Direito Administrativo. 21 ed. São Paulo: Atlas, 2008.
FURTADO, Lucas Rocha. Curso de Direito Administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2007.
MARRARA, Thiago. Bens públicos: domínio urbano: infra-estruturas. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2007.
MOREIRA, Egon Bockman, e GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Licitação pública: a Lei Geral de Licitações/LGL e o Regime Diferenciado de Contratações/RDC. São Paulo: Malheiros, 2012.
VENOSA, Sílvio Salvo. Direito Civil. 10 ed. Vol. V. São Paulo: Atlas, 2010.
Procurador Federal. Pós-Graduado em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DINIZ, Braulio Gomes Mendes. Transferência interadministrativa de imóvel e manutenção da ocupação pelo alienante: um caso prático Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 dez 2013, 05:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37899/transferencia-interadministrativa-de-imovel-e-manutencao-da-ocupacao-pelo-alienante-um-caso-pratico. Acesso em: 22 nov 2024.
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