Sumário: 1. Introdução. 2. Da superveniência da Lei nº 9.527/97. 3. Do confronto entre a Lei nº 9.007/95 e a Lei nº 9.527/97. Conflito aparente de normas. Aplicação do princípio lex specialis derrogat generali. 4. Do estágio probatório. Finalidade. A ratio da restrição imposta pela Lei nº 9.527/97. Submissão da Administração ao princípio da legalidade. 5. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
Na data de 17 de março de 1995, foi editada a Lei nº 9.007, que, dentre outros temas, instituiu o poder de requisição de servidores públicos pela Presidência da República. Eis a redação de seu art. 2º:
“Art. 2º As requisições de servidores de qualquer órgão ou entidade da Administração Pública Federal para a Presidência da República são irrecusáveis.
Parágrafo único. Aos servidores requisitados na forma deste artigo são assegurados todos os direitos e vantagens a que faça jus no órgão ou entidade de origem, considerando-se o período de requisição para todos os efeitos da vida funcional, como efetivo exercício no cargo ou emprego que ocupe no órgão ou entidade de origem.”
Observa-se que a referida norma concedeu à Presidência da República amplos poderes para requisitar servidores de outros órgãos ou entidades da Administração Pública Federal, fazendo-o sem qualquer ressalva ou restrição, o que até parece razoável à vista da importância político-institucional de que se reveste o órgão de cúpula do Poder Executivo da União.
Todavia, no ano de 1997, o Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União (Lei nº 8.112/90) foi alterado para restringir a possibilidade de deslocamento, para outros órgãos e entidades, de servidores que se encontrem em estágio probatório, dando azo a dúvidas quanto à aplicabilidade de tal restrição às requisições operadas pela Presidência da República (que, segundo os termos da lei, estariam revestidas de caráter “irrecusável”).
2. DA SUPERVENIÊNCIA DA LEI Nº 9.527/97.
Com efeito, em 10 de dezembro de 1997, veio a lume a Lei nº 9.527, que, alterando inúmeros dispositivos da Lei nº 8.112/90, acrescentou os §§ 3º a 5º ao seu art. 20. Por ser o que de mais perto nos interessa, transcrevemos, em particular, o novo parágrafo 3º:
“Art 20 (...)
§1º (...)
§2º (...)
§3º O servidor em estágio probatório poderá exercer quaisquer cargos de provimento em comissão ou funções de direção, chefia ou assessoramento no órgão ou entidade de lotação, e somente poderá ser cedido a outro órgão ou entidade para ocupar cargos de Natureza Especial, cargos de provimento em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores – DAS, de níveis 6, 5 e 4, ou equivalentes.
(...)”
Percebe-se, assim, que a referida norma fixou um limite quanto à possibilidade de cessão de pessoal para outros órgãos ou entidades, estabelecendo que os servidores em estágio probatório só poderão ser cedidos para ocuparem cargos de Natureza Especial ou cargos em comissão (DAS níveis 4, 5 e 6).
Aliás, nota-se que a Lei nº 9.007/95, que concedeu o amplo poder de requisição de servidores pela Presidência da República, trata da criação de cargos em comissão. De fato, como se depreende de sua ementa, o referido diploma legislativo “dispõe sobre a criação dos cargos em comissão que menciona e dá outras providências”. Sendo assim, conclui-se que a prerrogativa deferida à Presidência da República só poderá envolver a requisição de servidores para o preenchimento de cargos em comissão e, ainda que assim não fosse, em virtude de se encontrar o servidor em estágio probatório, haverá vedação específica, salvo em relação à ocupação de cargos em comissão e de natureza especial.
3. DO CONFRONTO ENTRE A LEI Nº 9.007/95 E A LEI Nº 9.527/97. CONFLITO APARENTE DE NORMAS. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO LEX SPECIALIS DERROGAT GENERALI.
À primeira vista, o estudo dos diplomas legais acima citados causa ao intérprete certa perplexidade, uma vez que as disposições neles contidas parecem contraditórias entre si. Ocorre aqui o que a doutrina costuma designar como conflito aparente de normas, em que duas regras jurídicas vigentes em determinado ordenamento jurídico aparecem como inconciliáveis. In casu, a questão que se apresenta é: como poderá determinado órgão ou entidade recusar a requisição do órgão presidencial se, nas próprias palavras da lei, esta seria “irrecusável”? Ou, então, como poderá esse mesmo órgão ou entidade acatar a ordem se a lei proíbe a cessão de servidores no período de estágio probatório?
Logo, porém, percebe-se a relação de especificidade existente entre os referidos estatutos legais. Com efeito, parece-nos que, enquanto a Lei nº 9.007/95 fixa a regra geral de que a Presidência da República, como órgão de cúpula da Administração Pública Federal, pode proceder à requisição de quaisquer servidores sem que lhe possa ser recusado o exercício dessa prerrogativa, a Lei nº 9.527/97 cria exceção a essa regra geral, estatuindo que os servidores em estágio probatório apenas poderão ser cedidos para ocuparem cargos de natureza especial ou em comissão.
É clássico o princípio de hermenêutica que reza que, existindo uma norma genérica ao lado de outra especial, esta última prevalece sobre a primeira para regular os casos de que cuida.
Observe-se também que a edição da Lei nº 9.527/97 é posterior à da Lei nº 9.007/95. Daí podermos dizer que, se o legislador tivesse tido a intenção de ressalvar os poderes conferidos à Presidência da República pela primeira lei, poderia tê-lo feito. Como não o fez, é razoável afirmar que seu silêncio foi proposital, de maneira a não criar nenhuma exceção à nova regra.
Acrescente-se que não se está aqui a ignorar a diferença teórica existente entre os institutos da “requisição” e da “cessão”. Entretanto, temos a convicção de que a limitação legal aplica-se a ambos os casos, tendo em vista que o efeito prático de ambos é o de acarretar o deslocamento do servidor público em estágio probatório de seu órgão de origem para o novo órgão de exercício, situação que o legislador parece ter desejado evitar.
Anote-se, por questões de transparência, que a Nota Técnica nº 520/2009/COGES/DENOP/SRH/MP adota entendimento diverso ao aqui exposto, por entender que, nessa situação, é a Lei nº 9.007/95 que se apresenta como especial, afastando, por essa razão, a restrição introduzida pela Lei nº 9.527/97 quanto à cessão de servidores em estágio probatório.
4. DO ESTÁGIO PROBATÓRIO. FINALIDADE. A RATIO DA RESTRIÇÃO IMPOSTA PELA LEI Nº 9.527/97. SUBMISSÃO DA ADMINISTRAÇÃO AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE.
Não é difícil compreendermos a restrição imposta pelo legislador referente à requisição de servidores em estágio probatório.
Com efeito, o período do estágio probatório, condição sine qua non para a aquisição de estabilidade pelo servidor ocupante de cargo efetivo, é aquele “durante o qual a sua aptidão e capacidade serão objeto de avaliação para o desempenho do cargo” (art. 20 da Lei nº 8.112/90 - grifamos). Em outras palavras, o estágio probatório é o instituto que possibilita à Administração Pública averiguar se o indivíduo possui as necessárias qualidades para o desempenho das função inerentes ao cargo no qual foi investido.
Ressalte-se que, segundo os termos do artigo 41 da Constituição da República, “são estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público”. Se é assim, torna-se natural que o legislador cerque-se de cuidados a fim de permitir que, durante o período do estágio probatório, o servidor desempenhe efetivamente as funções para as quais foi nomeado, de modo que a Administração possua elementos suficientes que lhe permitam avaliá-lo ao fim daquele período.
Foi o que procurou fazer a Lei nº 9.527/97, ao vedar que sejam cedidos servidores em curso de estágio probatório, ressalvadas as hipóteses excepcionais que menciona, quais sejam a ocupação de cargos de natureza especial e os cargos em comissão de médio e alto escalão. Não tendo a requisição uma dessas finalidades, e estando o administrador, qualquer que seja sua posição, adstrito ao princípio da legalidade (CRFB art. 37, caput), é defeso à Administração realizá-la.
5. CONCLUSÃO
Diante das considerações anteriormente traçadas, concluímos pela impossibilidade de requisição de servidor público em estágio probatório, ainda que por órgão vinculado à Presidência da República, ressalvadas as hipóteses mencionadas no artigo 20, §3º, da Lei nº 8.112/90, acrescentado pela Lei nº 9.527/97.
ALEXANDRINO, Marcelo e PAULO, Vicente. Direito Administrativo, 12ª edição. Rio de Janeiro: Impetus, 2006
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Direito Administrativo, 4ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 18ª edição. São Paulo: Atlas, 2005
Procurador Federal. Coordenador da Coordenação para Assuntos de Consultoria da Procuradoria Federal na Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOSQUEIRA, Bruno Alves. Requisição de servidores públicos em estágio probatório levada a efeito por órgão da Presidência da República Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 jan 2014, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38053/requisicao-de-servidores-publicos-em-estagio-probatorio-levada-a-efeito-por-orgao-da-presidencia-da-republica. Acesso em: 22 nov 2024.
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