Palavras-chave: “enriquecimento sem causa”; “invalidade dos negócios jurídicos”.
Sumário: 1. Enriquecimento sem Causa: Conceito, Natureza Jurídica e Requisitos. 2. O Enriquecimento sem Causa no Âmbito da Invalidade dos Negócios Jurídicos. 2.1. Sob o Ângulo Material: Da Possibilidade de Restituição em virtude de Negócio Jurídico Inválido. 2.2. Sob o Ângulo Processual: Ação de Anulabilidade ou Nulidade versus a Ação de Enriquecimento sem Causa e a questão da Subsidiariedade.
INTRODUÇÃO
O artigo visa a discorrer sobre o instituto jurídico do enriquecimento sem causa no âmbito da invalidade dos negócios. Com efeito, iniciar-se-á o estudo pelo exame do histórico da previsão autônoma do instituto no Código Civil de 2002, do conceito, dos entendimentos quanto à natureza jurídica, bem como dos pressupostos do enriquecimento sem causa. Assim, identificar-se-á o instituto jurídico em hipóteses de invalidade dos negócios jurídicos, e, em seguida, adentrar-se-á aos limites do enriquecimento sem causa no campo processual. Vale destacar, por fim, que as considerações aqui realizadas tem por escopo trazer algumas conclusões pertinentes, corroborando as pesquisas sobre a matéria abordada.
1. ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA: CONCEITO, NATUREZA JURÍDICA E REQUISITOS
O Código Civil de 1916 já acusava a presença do enriquecimento sem causa em vários pontos da legislação civil, como, por exemplo, no pagamento indevido. Entretanto, não tratou expressamente do enriquecimento sem causa, como um instituto jurídico autônomo.
Nesse sentido, GIOVANNI ETTORE NANNI pondera que “é lícito afirmar que não possui sustentação a alegação de que, em razão de ausência de previsão legal no Código Civil de 1916, a proibição do locupletamento injusto não vigorava no Brasil”[1]. A razão da inexistência de regulamentação expressa devia-se, entre outros fatores, à influência do Código Civil Francês, uma vez adotada a mesma figura implícita do enriquecimento sem causa na regra do pagamento indevido. Dessa maneira, alguns juristas brasileiros relutavam à autonomia do instituto jurídico do enriquecimento sem causa, em virtude da desnecessidade de sua previsão expressa na codificação civil.
CLÓVIS BEVILÁQUA, autor do anteprojeto que originou o Código Civil de 1916, aduziu que: “Por mais que variemos as hipóteses, veremos que o direito e a equidade se podem plenamente satisfazer, sem criarmos, nos Códigos Civis, mais esta figura de causa geradora de obrigação, ou seja, uma relação obrigacional abstrata e genérica.”[2] Nessa esteira, JORGE AMERICANO sustentou que: “Esparso o conceito de locupletamento por todo o systema legal, não vemos a necessidade de uma theoria autônoma, nem mesmo a necessidade de corporificar um instituto do locupletamento, com regras peculiares capazes de abranger todos os casos, emancipando a estes das normas dos respectivos institutos”[3].
No entanto, de outro lado, a doutrina majoritária do início do século passado ostentou a relevância da normatização independente do enriquecimento sem causa.
MANOEL IGNÁCIO CARVALHO DE MENDONÇA dispôs que: “O que, entretanto, parece evidente é que o enriquecimento sem causa deve entrar em um princípio de generalisação que lhe dê o caracter de um instituto autônomo e independente. Elle é, por assim dizer, o fundamento de todo o direito contratual. Bem examinando o phenomeno, parece incontestável que não é o facto do enriquecido que deve fundamentar a responsabilidade, conforme acceita a doutrina geral, e sim o facto do enriquecedor. Esse facto é que reclama a analyse na formação do instituto. Trata-se de um problema de causalidade que os modernos autores tanto tèm desenvolvido”[4]. Constate-se que esse renomado jurista menciona ponto fundamental do instituto jurídico, qual seja a vedação ao fato do enriquecedor e não ao fato do enriquecido.
Para SILVIO RODRIGUES também era preciso suprir essa lacuna no direito e o enriquecimento sem causa sempre foi um princípio: “O repúdio ao enriquecimento indevido estriba-se no princípio maior da equidade, que não permite o ganho de um, em detrimento de outro, sem uma causa que o justifique. É ele alcançado através da ação de in rem verso, concedida ao prejudicado. A tese, hoje, preferida pela doutrina brasileira é a da admissão do princípio genérico de repulsa ao enriquecimento sem causa indevido. Essa a opinião de que participo.”[5]
Já AGOSTINHO ALVIM asseverou que o enriquecimento sem causa estava presente no ordenamento jurídico, sendo um princípio geral de direito: “Se determinada regra, através dos tempos, vem permanecendo sempre nas legislações em geral, embora este ou aquele sistema seja omisso, não há dúvida que pode ser considerada como um princípio geral de direito. Exemplo: a condenação do enriquecimento sem causa”[6].
De outro ângulo, MIGUEL MARIA DE SERPA LOPES defendeu a recepção autônoma do instituto como fonte de obrigação, esclarecendo que “uma providência se impõe e o remédio consiste em se conceder ao empobrecido um crédito contra o enriquecido, do mesmo modo que se outorga à vítima de um delito uma ação contra o causador do dano. Assim, o enriquecimento sem causa se transforma numa fonte das obrigações, tal qual ocorre na culpa extracontratual ou na gestão de negócios”[7].
Com o novo Código Civil, a lacuna da legislação civil foi sanada. Após a tentativa de outras Comissões do Anteprojeto, a Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil, em 1969, notadamente, AGOSTINHO ALVIM, entendeu por bem regrar o enriquecimento sem causa nos artigos 884, 885 e 886 do atual Código Civil. Rezam os artigos que: “Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários. Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido. Art. 885. A restituição é devida, não só quando não tenha havido causa que justifique o enriquecimento, mas também se esta deixou de existir.”
A leitura dessas normas é suficiente para extrair a vedação no sistema civil ao enriquecimento de alguém à custa de outrem, sem justa causa, obrigando o enriquecido a efetuar a restituição do locupletamento indevido.
Nesse diapasão, verificado um pouco da origem desse instituto no Direito Brasileiro, bem como o seu conceito, já é possível notar que a tarefa de definir a natureza jurídica do instituto do enriquecimento sem causa, como apenas fonte obrigacional, princípio cível ou cláusula geral, não é simplória.
GIOVANNI ETTORE NANNI coloca que “qualquer relação jurídica obrigacional pode fazer uso do enriquecimento sem causa como um corretivo principiológico, ou seja, um elemento com força normativa para purgar os desequilíbrios e as desproporcionalidades, cuja aplicabilidade é espraiada, em princípio de forma ilimitada, desde que não contrarie a Lei.”[8] E complementa que o artigo 884 do Código Civil pode ser considerada cláusula geral, da mesma forma que o artigo 473 do Código Civil Português e o artigo 2041 do Código Civil Italiano. De tal modo que, como cláusula geral, deve ser aplicada caso a caso, de acordo com as exigências ético-sociais, equidade e boa-fé, para garantia da igualdade e equilíbrio das relações obrigacionais. LUIZ EDSON FACHIN afirma que o enriquecimento sem causa pode ser considerado uma “base informativa do direito obrigacional” [9].
GIOVANNI ETTORE NANNI cita MIGUEL REALE para explicar essa natureza jurídica do enriquecimento sem causa: “E, nessa ordem de idéias, não se pode olvidar que a Comissão elaboradora do novo Código Civil levou justamente em conta essa metodologia, preferindo a utilização de modelos jurídicos aberto. Frisando esse ponto de vista, Miguel Reale, dando sequência ao raciocínio iniciado com menções sobre enriquecimento sem causa e a responsabilidade civil, averba: ‘Nesses e nos demais casos em que haja possibilidade de abuso de direito, ou, mais ainda, de uso de direito como expressão de vontade nua de qualquer interesse, ou, então, quando as vicissitudes sócio-econômicas podem gerar situações de inadmissíveis desigualdades, o estudioso atento do Projeto constatará que, em tais casos, se preferiu dar preferência a modelos jurídicos abertos, conferindo-se ao juiz o poder-dever de julgar, com base nos princípios éticos da equidade, da boa-fé ou da probidade como pressupostos da conduta geral na sociedade civil. Somente desse modo poderemos realizar o ideal de justiça concreta, não em função de individualidades concebidas in abstracto, mas de pessoas consideradas no contexto de suas peculiares circunstâncias.’”[10]
MIGUEL MARIA DE SERPA LOPES entende que o enriquecimento sem causa é uma fonte obrigacional: “Trata-se, pois, de uma relação obrigacional, não somente distante de qualquer relação com a idéia de contrato, pois se forma sob pressupostos inteiramente diversos, como ainda distante de qualquer conexão com a responsabilidade extracontratual ou mesmo com a Gestão de Negócios, a despeito de com esta, no curso de sua evolução histórica ter sido largo tempo confundida. Tais razões pelas quais muitos juristas, baseados em argumentos ponderosos, entendem o Enriquecimento se causa uma fonte autônoma de obrigação”[11].
Da mesma forma leciona ORLANDO GOMES: “A figura do enriquecimento sem causa pode ser isolada como fonte autônoma das obrigações. Não é a Lei que, direta e imediatamente, faz surgir a obrigação de restituir. Não é a vontade do enriquecido que a produz. O fato condicionante é o locupletamento injusto. Evidentemente, o locupletamento dá lugar ao dever de restituir, porque a Lei assegura ao prejudicado o direito de exigir a restituição, sendo, portanto, a causa eficiente da obrigação do enriquecido, mas assim é para todas as obrigações que se dizem legais”[12].
Existem pressupostos clássicos do enriquecimento sem causa, tendo em vista que há disparidade de opiniões no âmbito na doutrina e jurisprudência internacionais. A guisa de exemplificação, mencione-se que a jurisprudência francesa adiciona o atributo da subsidiariedade da ação de enriquecimento no rol dos requisitos para a caracterização do instituto. GIOVANNI ETTORI NANNI elenca os seguintes: 1) o enriquecimento; 2) o empobrecimento; 3) o nexo de causalidade; e 4) a ausência de justa causa.
Discorra-se muito brevemente acerca de cada um deles. Parece lógico que o enriquecimento é o elemento indispensável à configuração da vantagem injusta. Diversas situações dão ensejo ao enriquecimento como um direito novo (propriedade de um bem), acréscimo do valor de um bem, redução do passivo (cancelamento de dívidas sem fundamento jurídico), ato que impeça a diminuição do patrimônio em circunstâncias normais e o acréscimo meramente moral, sobre o qual há divergência de entendimento na doutrina.
Já o “empobrecimento” é o segundo requisito para a configuração do instituto e que muitas vezes se afigura desnecessário, uma vez que existem situações em que não se pode falar rigorosamente em redução do patrimônio. E negar a utilização da ação de enriquecimento pela ausência do empobrecimento seria ferir de morte a segurança jurídica desse instituto na nova ordem civil[13]. Sobre o nexo de causalidade, a sua denominação deveria ser “nexo de correlação”, constituindo o elo entre o enriquecimento e o empobrecimento. Outrossim, significa que ambos esses requisitos decorram da mesma causa[14].
O quarto pressuposto, que é a ausência de justa causa, é o mais complexo e a sua análise apurada culminaria em um texto de longa folhas. O que importa destacar é que a justa causa das obrigações é distinta da causa dos negócios jurídicos, sendo a “contraprestação que se exige na relação obrigacional para que seja comutativa, equilibrada e impunha igualdade de sacrifício às partes”[15]. Na visão de ALBERTO TRABUCCHI, para definir a justa causa das relações jurídicas “não se requer sempre uma justificação econômica ou ética, como idealmente seria auspicioso, bastando um meio válido, um adequado título jurídico, legal ou convencional”[16]. Pois bem. Nesse ângulo, a ausência de meio válido bastaria para justificar a presença desse terceiro requisito no instituto.
Esses são alguns contornos gerais da solidificação do enriquecimento sem causa no Código Civil de 2002.
2. O ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA NO ÂMBITO DA INVALIDADE DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS
2.1. SOB O ÂNGULO MATERIAL: DA POSSIBILIDADE DE RESTITUIÇÃO EM VIRTUDE DE NEGÓCIO JURÍDICO INVÁLIDO
Pode se dizer que as nulidades configuram decorrências de motivos de interesse público e já as anulabilidades decorrem da infração de interesses predominantemente particulares. Por isso, a doutrina uma vez aduziu que, se o negócio jurídico nulo possui eficácia ex-tunc, não produz efeitos desde o momento em que o negócio foi entabulado, de sorte que não seria capaz de gerar o empobrecimento e o enriquecimento das partes celebrantes do negócio jurídico. Sucede que, como com muito acerto ensina RENAN LOTUFO, superando as divergências no tema: “(...) é que o negócio, ou o ato inválido, portanto, classificável como nulo, ou pelo menos como anulável, pode produzir efeitos no mundo fenomênico. O que se tem no mundo jurídico é que tais efeitos práticos, que se pretendeu alcançar com desrespeito substancial às normas, não serão atribuídos aos pretendentes”[17].
Se os negócios jurídicos nulos e os anuláveis produzem efeitos concretos entre as partes, é possível que uma das partes aufira vantagem patrimonial indevida, caracterizando o enriquecimento sem causa.
Partindo dessa premissa, visualize-se defeitos dos negócios jurídicos que poderão ocasionar a restituição de valores e/ou bens. Com efeito, os negócios jurídicos podem ser anulados por conta de um erro substancial na declaração de vontade da parte, conforme a interpretação literal do artigo 138 do Código Civil. “O falso motivo só vicia a declaração de vontade quando expresso como razão determinante”, em consonância com o artigo 140 do mesmo diploma. Já “o erro de indicação da pessoa ou da coisa, a que se referir a declaração de vontade, não viciará o negócio quando, por seu contexto e pelas circunstâncias, se puder identificar a coisa ou pessoa cogitada”, nos termos do artigo 142, e “o erro de cálculo apenas autoriza a retificação da declaração de vontade”, nos termos do artigo 143.
O dolo também culmina na anulação do negócio jurídico, quando representar a causa da avença, segundo o texto do artigo 145 do Código Civil. Na ocasião de dolo acidental, no qual ele poderia ser realizado por outro modo, ele só obriga à satisfação de perdas e danos (artigo 146). O “(...) silêncio intencional de uma das partes a respeito de fato ou qualidade que a outra parte haja ignorado, constitui omissão dolosa (...)”, como regulamenta o artigo 147. O artigo 148 admite o dolo de terceiro e o artigo 149 o dolo de representante legal, nos seguintes termos: “O dolo do representante legal de uma das partes só obriga o representado a responder civilmente até a importância do proveito que teve; se, porém, o dolo for do representante convencional, o representado responderá solidariamente com ele por perdas e danos.” Consoante PABLO STOLZE GAGLIANO E RODOLFO PAMPLONA FILHO: “O dolo não se presume das circunstâncias de fato, devendo ser provado por quem o alega”. [18]
Contudo, o artigo 150 dispõe que: “Se ambas as partes procederem com dolo, nenhuma pode alegá-lo para anular o negócio, ou reclamar indenização.”
A coação é outra modalidade de defeito de negócios jurídicos. Mas para viciar a declaração de vontade deve existir “(...) fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa [o paciente], à sua família, ou aos seus bens”, sendo certo que, se disser respeito a pessoa que não for parente, o juiz analisará o caso (artigo 151 e parágrafo único). São circunstâncias importantes para a coação e suas consequências patrimoniais: “(...) o sexo, a idade, a condição, a saúde, o temperamento do paciente e todas as demais circunstâncias que possam influir na gravidade dela”, de acordo com a norma do art. 152. Não se considera coação: a ameaça do exercício normal de um direito e o temor reverencial (artigo 153). E “subsistirá o negócio jurídico, se a coação decorrer de terceiro, sem que a parte a que aproveite dela tivesse ou devesse ter conhecimento; mas o autor da coação responderá por todas as perdas e danos que houver causado ao coacto” (artigo 155).
O estado de perigo anula a avença, se o contraente das obrigações estiver “(...) premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa”, definição extraída do artigo 156 do Código Civil.
A próxima modalidade de defeito de negócio jurídico é a lesão, que se verifica “(...) quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta.” De conformidade com o artigo 159 e o seu parágrafo segundo, tem-se também que se a parte concordar com a redução do proveito, não haverá a anulação da avença e a devida restituição de perdas.
Quanto à fraude contra credores, o artigo 158 do Código Civil permite que os negócios praticado por devedor insolvente ou reduzido à insolvência sejam anulados.
Os negócios jurídicos serão nulos quando: “(...) I - celebrado por pessoa absolutamente incapaz; II - for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto; III - o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito; IV - não revestir a forma prescrita em lei; V - for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade; VI - tiver por objetivo fraudar lei imperativa; VII - a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção”, casos esses previstos no artigo 166 da Lei civil.
Haverá simulação no caso de o negócio aparentar transmitir direito a pessoas diversas das indicadas, previsão contratual e datas inverídicas. Saliente-se um ponto importante: os terceiros de boa-fé são resguardados (artigo167 e § 2o). A norma do artigo 170 descreve que “Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade.” SILVIO DE SALVO VENOSA retrata um atributo fundamental do instituto da simulação, o “concluio” entre as partes: “Na simulação, há conluio. Existe uma conduta, um processo simulatório; acerto, concerto entre os contratantes para proporcionar aparência exterior do negócio. (...). Podemos configurar a simulação quando existe divergência intencional entre a vontade e a declaração, emanada do acordo entre os contratantes, com o intuito de enganar terceiros”. [19]E nessa esteira um fato novo não pode ser motivo para a anulação de um negócio simulado em que houve conluio entre as partes quanto a determinado assunto.
Mais a mais, SILVIO DE SALVO VENOSA, explana que: “Como a simulação caracteriza-se pelo conhecimento da outra parte (mancomunação, conluio), evidencia-se a também ignorância da artimanha por parte de terceiros. Distingue-se aí, do dolo, no qual apenas uma das partes conhece o artifício malicioso, geralmente por ela engendrado. Na simulação, existe dolo de ambas as partes contra terceiros.” [20]
Vale dizer que o comportamento de boa-fé ou má-fé também pode interferir na caracterização do enriquecimento obtido mediante fato injusto. Todavia, vale complementar que se o empobrecido pretender o ressarcimento de lucros cessantes, eles representam perdas e danos, de sorte que deverá ajuizar ação de reparação de danos, conforme o artigo 944 do novo Código Civil, como observado por GIOVANNI ETTORE NANNI[21].
O autor entende que: “Quem dispõe de bem alheio, de boa-fé ou má-fé, gratuita ou onerosamente, deverá restituir ao empobrecido a vantagem obtida segundo as regras do enriquecimento sem causa. A despeito da concorrência com outros remédios, pode-se citar o caso regrado pelo art. 637 do novo Código Civil, em que o herdeiro do depositário, que de boa-fé vender a coisa depositada, é obrigado à restituição.” Ato contínuo, o autor expõe que “ainda quem usa abusivamente de um imóvel alheio, adaptando-o para sua habitação, ou o empregado munido de abonamento de transporte coletivo gratuito que continua a usufruir do benefício, mesmo depois de afastado da prestação de serviço, etc. Fora de questionamento, são circunstâncias que evidenciam uma economia tipificadora de enriquecimento sem causa.”.[22]
Sobre o tema, RENAN LOTUFO leciona que “sabemos que todo e qualquer negócio deve ter como premissa os princípios da probidade e da boa-fé. Mas estes não são o bastante; é necessário que todo o negócio cumpra sua função social, já que a sociedade não pode admitir, entre outros fatores, a exploração e o empobrecimento excessivo de uma parte diante de um fato que no momento de sua declaração a ameaçava.”[23]
GIOVANNI ETTORE NANNI, ao concluir, faz referência ao enriquecimento sem causa, na acepção de cláusula geral, nos seguintes termos: “se uma das diretrizes básicas do Código Civil de 2002 é a socialidade, a qual deflui dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da liberdade, dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da justiça social e da solidariedade, os quais são corporificados por cláusulas gerais da nova lei civil, como a função do contrato, a boa-fé e o enriquecimento sem causa, não subsiste questionamento quanto ao fato de que a possibilidade de revisão ou resolução dos contratos por onerosidade excessiva, assim como a faculdade de anulação dos negócios jurídicos por lesão ou estado de perigo, é plasmada, pelo princípio obrigacional que espelha a afinação do equilíbrio e da equidade como é o que obsta o locupletamento indevido.”[24]
2.2. SOB O ÂNGULO PROCESSUAL: AÇÃO DE ANULABILIDADE OU NULIDADE VERSUS A AÇÃO DE ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA E A QUESTÃO DA SUBSIDIARIDADE
O Princípio da Subsidiariedade da ação de enriquecimento sem causa está consagrado no artigo 886 do Código Civil de 2002: “Não caberá a restituição por enriquecimento, se a lei conferir ao lesado outros meios para se ressarcir do prejuízo sofrido”. A explicação sobre a origem do referido princípio remonta ao final do século XIX, em que começaram a ser definidos na França os princípios do enriquecimento. Eis o receio dos legendários doutrinadores: de que o instituto pudesse sempre ser invocado, de modo que a ação de in rem verso iria suplantar todas as outras ações civis, em detrimento dos demais princípio de direito. FERNANDO NORONHA comenta que essa explanação é “mais histórica do que lógica”[25].
A regra da subsidiariedade tem sido motivo de grandes discussões nos ordenamentos de direito comparado que a prevêem. Ao discorrer sobre as concepções adotadas pela doutrina e jurisprudências internacionais, sendo algumas mais restritivas do que outras, CLÁUDIO MICHELON JUNIOR coloca com propriedade que “a interpretação literal do art. 886 é insuficiente para determinar qual das duas concepções rivais deve prevalecer. Essa insuficiência não é, todavia, resultado de um erro do codificador, mas sim um exemplo de sua consistência com a opção fundamental por um modelo aberto da codificação”[26].
Segundo esse mesmo autor, há no direito comparado duas formas de conceber a subsidiariedade do direito à restituição por enriquecimento injustificado, isto é, a formas italiana e francesa[27].
A regra do artigo 2.042 do Código Civil italiano é interpretada restritivamente pela doutrina e jurisprudências italianas, o que quer dizer que o direito à restituição somente poderá ser exercitado quando não houver outro remédio jurídico apto, em abstrato, para corrigir o enriquecimento sem causa.
De outro vértice, a Court de Cassation francesa, cem anos após o julgar o leading case “Boudier”, fixou o alcance da regra da subsidiariedade, de modo que a existência de outro instrumento processual previsto no ordenamento jurídico nem sempre é suficiente para rejeitar a aplicação do enriquecimento sem causa no caso concreto. Nessa concepção, os remédios processuais garantidores da restituição são alternativos, devendo ser aplicado aquele que seja “concretamente suficiente para desfazer o enriquecimento”[28].
CLÁUDIO MICHELON JUNIOR perfilha do entendimento francês, esclarecendo que “o espírito do novo Código é, portanto, incompatível com soluções meramente formais. Afastar a aplicação do instituto do enriquecimento sem causa em todos os casos nos quais há remédio alternativo abstratamente previsto pelo ordenamento, independentemente da capacidade de eliminar efetivamente o enriquecimento, é incorrer precisamente no formalismo que o legislador de 2002 procurou combater. Os fatos que podem tornar um remédio inefetivo em desfazer o enriquecimento sem causa são vários e, mais importantemente, não podem ser todos previamente previstos. A insolvência do responsável contratual pelo pagamento de uma prestação que aproveita a terceiro ou a impossibilidade de localizá-lo são todos os casos de ineficiência de remédios jurídicos existentes que poderiam, em princípio, promover a restituição do que foi adquirido sem causa. Todavia, é a riqueza da vida que contribuirá com outros tantos casos hoje imprevisíveis ou, ao menos imprevistos”[29].
Já GIOVANNI ETTORE NANNI vem entendendo que a ordem na ponderação das demandas visa evitar a panacéia do enriquecimento sem causa[30]. Isto porque “a própria natureza da demanda identifica a desnecessidade de uso da ação de enriquecimento. Por isso, sobram críticas ao requisito em estudo, mormente à subsidiariedade observada de forma abstrata, tendo em vista que não é precisamente esse o elemento que impede o recurso à ação de enriquecimento, mas sim o próprio direito decorrente da questão sob análise”[31].
Ambos os jurista supramencionados concordam que, em qualquer caso, a ação de enriquecimento sem causa não pode fraudar a lei[32].
CLÁUDIO MICHELON JÚNIOR cita ANTUNES VARELA o qual também leciona que o ordenamento jurídico tolera o enriquecimento sem causa para se estabelecer uma sanção contra o empobrecido, para tutelar a boa-fé, a certeza do direito ou a observância de regras de conduta. Por conseguinte, CLÁUDIO MICHELON JÚNIOR conclui que a aplicação da regra da subsidiariedade “será decidida no fórum dos princípios que subjazem, de um lado, ao instituto do enriquecimento sem causa e, de outro, às regras que limitam os remédios alternativos capazes de desfazer o enriquecimento”[33], como a prescrição.
Todavia, note que para FERNANDO NORONHA a própria prescrição é o título justificativo do enriquecimento[34].
De conformidade com o raciocínio de GIOVANNI ETTORE NANNI, é natural que a decisão que declara a anulação do negócio jurídico determine a restituição entre as partes, despindo de sentido a ação de enriquecimento sem causa[35].
Nas palavras de FERNANDO NORONHA “o princípio da subsidiariedade oferece um aspecto inconveniente: é que há casos em que a ação de in rem verso pode proporcionar ao empobrecido um valor superior àquele que ele teria direito como ‘lesado’, em ação de responsabilidade civil. (...) quando haja enriquecimento do agente maior do que os danos do prejudicado (3.4). É o caso do ladrão que vendeu a coisa furtada por preço superior ao que ela valia. Negar aqui a ação de in rem verso seria negar ao prejudicado e atribuir ao ladrão o direito ao ‘lucro’ auferido com a sua atividade ilícita”[36].
GIOVANNI ETTORE NANNI complementa essa assertiva, sustentando que “entretanto, se por acaso referida medida não possibilitar a recuperação de todo o acervo transmitido, nada impede que se faça uso da ação de enriquecimento para extirpar do patrimônio alheio toda a vantagem obtida indevidamente.” Nesse contexto, CLÁUDIO MICHELON JÚNIOR afirma que há casos em que os remédios jurídicos são insuficientes para operar a integralidade da restituição ao empobrecido. Cita o exemplo de casos em que a indenização é menor do que o dano, em virtude da regra do artigo 944 do Código Civil, normatizando que a indenização deve ser proporcional ao grau de culpa do devedor. Nesses casos, o jurista ressalta que seria possível cumular os pedidos na ação judicial[37].
Vale a pena ressalvar que quando ocorrer o enriquecimento indireto, ou seja, não pelo devedor direto (primeiro enriquecido, segundo PONTES DE MIRANDA), a pretensão contra terceiro é concorrente e não subsidiária. A justificativa de FERNANDO NORONHA é que o terceiro seria cobrado apenas na hipótese de insolvência do devedor direto e esse seria um caso de exceção à regra, admitindo-se, portanto, a ação de in rem verso “se o enriquecido houver obtido o benefício a título gratuito e se o intermediário estiver insolvente”[38].
PONTES DE MIRANDA pontua que “se o primeiro enriquecido estava de boa-fé, não se tolera que, com a transferência a outrem, se torne, pela lei, devedor pelo total enriquecimento injustificado, pois ainda responde pela ‘quantia recebida’ (art. 879 [“Se aquele que indevidamente recebeu um imóvel o tiver alienado em boa-fé, por título oneroso, responde somente pela quantia recebida; mas, se agiu de má-fé, além do valor do imóvel, responde por perdas e danos”] ), que foi o com que se enriqueceu”[39].
Nesse cenário, pode-se entender pela flexibilidade do Princípio da Subsidiariedade aplicável à ação de enriquecimento sem causa.
FERNANDO NORONHA já disse que “se na prática a ação por enriquecimento sem causa vem depois da ação de responsabilidade civil, é porque normalmente esta proporciona ao prejudicado um quantitativo mais elevado do que aquela: em regra, o dano sofrido pelo lesado com o intromissão alheia é maior do que o enriquecimento obtido pelo lesante. Por isso, nestes casos, a ação fundada no enriquecimento sem causa é desvantajosa para o credor – que, com ela, só teria direito ao valor que houvesse ficado acrescido ao outro patrimônio. Portanto, nestes casos não se justifica que o credor opte pela ação de in rem verso”[40].
3. CONCLUSÕES
Um ponto fundamental do instituto jurídico é a vedação ao fato do enriquecedor e não ao fato do enriquecido. O sistema civil veda o enriquecimento de alguém à custa de outrem, sem justa causa, obrigando o enriquecido a efetuar a restituição do locupletamento indevido. Porém, foi possível notar que a tarefa de definir a natureza jurídica do instituto do enriquecimento sem causa, como princípio, fonte obrigacional, cláusula geral, não é simplória.
Se os negócios jurídicos nulos e os anuláveis produzem efeitos concretos entre as partes, é possível que uma das partes aufira vantagem patrimonial indevida, caracterizando o enriquecimento sem causa. A ausência dos requisitos de validade dos negócios jurídicos pode ocasionar o enriquecimento indevido da parte prejudicada na relação contratual. Nesses casos, pode-se entender pela flexibilidade do Princípio da Subsidiariedade aplicável à ação de enriquecimento sem causa.
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[1] NANNI, Giovanni Ettori. Enriquecimento sem causa. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 94.
[2] Apud, NANNI, Giovanni Ettori. Enriquecimento sem causa. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 85.
[3] AMERICANO, Jorge. Ensaio sobre o enriquecimento sem causa: dos institutos de direito em que se manifesta condemnação do locupletamento injustificado. São Paulo: Livraria Acadêmica, 1933, p. 117.
[4] Apud, NANNI, Giovanni Ettori. Enriquecimento sem causa. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 86.
[5] RODRIGUES, Silvio. Direito civil: parte geral das obrigações. 24 ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 159.
[6] Apud, NANNI, Giovanni Ettori. Enriquecimento sem causa. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 88.
[7] LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil: fontes acontratuais das obrigações - responsabilidade civil.4 ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, vol. 5, p. 56-57.
[8] NANNI, Giovanni Ettori. Enriquecimento sem causa. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 167.
[9] NANNI, Giovanni Ettori. Enriquecimento sem causa. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 168-169.
[10] Idem.
[11] LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil: fontes acontratuais das obrigações - responsabilidade civil. 4 ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, vol. 5, p. 55.
[12] GOMES, Orlando. Obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 303.
[13] NANNI, Giovanni Ettori. Enriquecimento sem causa. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 228-248.
[14] Idem, p. 251.
[15] Ibidem, p. 257.
[16] Apud, NANNI, Giovanni Ettori. Enriquecimento sem causa. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 260.
[17] LOTUFO, Renan. Curso avançado de direito civil: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, v. 1, p. 284.
[18] GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. São Paulo: Editora Saraiva,
[19] VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil. São Paulo: Editora Atlas S.A.
[20] Idem.
[21] NANNI, Giovanni Ettori. Enriquecimento sem causa. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 292.
[22] Ibidem, p. 293-295.
[23] Idem.
[24] Ibidem.
[25] NORONHA, Fernando. Enriquecimento sem Causa in Revista de Direito Civil Imobiliário, Agrário e Empesarial. Ano 15 Abril-Junho de 1991, número 56, p. 70.
[26] MICHELON JUNIOR, CLÁUDIO. Direito restituitório: enriquecimento sem causa, pagamento indevido, gestão de negócios. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 258.
[27] Idem, p. 257.
[28] Ibidem, p. 258.
[29] Ibidem, p. 260.
[30] NANNI, Giovanni Ettori. Enriquecimento sem causa. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 271.
[31] Idem, p. 272.
[32] Ibidem, p. 270.
[33] MICHELON JUNIOR, CLÁUDIO. Direito restituitório: enriquecimento sem causa, pagamento indevido, gestão de negócios. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 263.
[34] NORONHA, Fernando. Enriquecimento sem Causa in Revista de Direito Civil Imobiliário, Agrário e Empesarial. Ano 15 Abril-Junho de 1991, número 56, p. 73.
[35] NANNI, Giovanni Ettori. Enriquecimento sem causa. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 271.
[36] NORONHA, Fernando. Enriquecimento sem Causa in Revista de Direito Civil Imobiliário, Agrário e Empesarial. Ano 15 Abril-Junho de 1991, número 56, p. 71.
[37] MICHELON JUNIOR, CLÁUDIO. Direito restituitório: enriquecimento sem causa, pagamento indevido, gestão de negócios. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 263-264.
[38] NORONHA, Fernando. Enriquecimento sem Causa in Revista de Direito Civil Imobiliário, Agrário e Empesarial. Ano 15 Abril-Junho de 1991, número 56, p. 72.
[39] MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Campinas: Bookseller, 2003, p. 218.
[40] NORONHA, Fernando. Enriquecimento sem Causa in Revista de Direito Civil Imobiliário, Agrário e Empesarial. Ano 15 Abril-Junho de 1991, número 56, p. 72.
Graduação cursada na Faculdade de Direito da PUC/SP em 2009. Especialista em Arbitragem pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas desde 2011. Mestranda em Direito Civil pela PUC/SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ABEL, Nathália. O Enriquecimento sem Causa no âmbito da Invalidade dos Negócios Jurídicos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 jan 2014, 06:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38144/o-enriquecimento-sem-causa-no-ambito-da-invalidade-dos-negocios-juridicos. Acesso em: 22 nov 2024.
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