Deborah Marques Pereira[1]
Anete Marília Pereira[2]
Marcos Esdras Leite[3]
RESUMO: A urbanização é um fenômeno mundial, com isso, surge a preocupação em estabelecer regras que priorizem um melhor convívio humano ordenando as ações dos indivíduos e o território que eles ocupam. O presente trabalho tem como objetivo analisar o Direito Urbanístico, através do Estatuto da cidade, na perspectiva da função social do espaço urbano. O tema em comento, além de ser atual, possui grande relevância para o ordenamento do uso do solo urbano, destacando como primordial, o desenvolvimento das cidades e o bem-estar de seus habitantes. Para atingir esse objetivo foi realizada uma vasta revisão bibliográfica, na qual foram analisadas as leis brasileiras que tratam do Direito Urbanístico, bem como de autores como Costa (2010), Fernandes (2010), Lefebvre (1991), Maricato (1996), Meirelles (2005), Mukai (2004), Rolnik (2010), Santos (2003), Saule (2004), Silva (2010) e outros estudiosos que discutem as normas urbanísticas, a cidade e sua função social. Como resultado desse estudo há o entendimento de que a função social da cidade está intimamente ligada aos direitos fundamentais, cabendo ao Poder Público resguardar o direito à vida social, com liberdades e limites que possibilite a todos usufruírem da cidade. O Direito Urbanístico é entendido como um produto advindo das transformações sociais, todavia, a plena aplicação das normas urbanísticas encontra muitos desafios que merecem ser discutidos e estudados para a melhor compreensão da ocupação e utilização dos espaços habitáveis.
Palavras-chave: Urbanização. Direito Urbanístico. Estatuto da cidade. Função social da cidade.
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Origem das cidades e do urbanismo; 3. A urbanização no Brasil; 4. O Direito Urbanístico na contemporaneidade; 5. Estatuto das Cidades; 6. Função social da cidade; 7. Considerações Finais; 8. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O Direito Urbanístico é na atualidade um dos imperativos mais prementes da civilização em face da crescente urbanização, assim, esse ramo do direito é produto das transformações sociais que vem ocorrendo nos últimos tempos.
Sendo assim, o presente artigo tem como objetivo geral: Compreender o Direito Urbanístico e a função social da cidade. Como objetivos específicos têm-se: i) Discorrer sobre a origem das cidades e a contextualização do urbanismo; e ii) Discutir o processo de urbanização.
Para tanto, o estudo está dividido em cinco partes. A primeira relata sobre a origem das cidades e do urbanismo, estabelecendo um breve histórico sobre as cidades e a inserção do urbanismo. A segunda parte discute a urbanização no Brasil, abrangendo desde a época de ocupação e povoamento das terras indígenas, promovidos por Portugal. Na terceira parte são ponderadas as normas urbanísticas na contemporaneidade. A quarta parte discute da função social da cidade e por fim foram pontuadas as considerações finais.
2. Origem das cidades e do urbanismo
Desde os primórdios, as terras sempre foram elementos de ambição e disputas humanas. Primeiramente, as ocupações ocorreram de modo primitivo e desorganizado, porém essa situação foi modificando com a consequência natural da tendência dominadora do homem e também com o aumento e expansão populacional (COSTA, 2009).
Aproximadamente no ano 4.000 a.C., se formaram os primeiros agrupamentos humanos, com características de cidade. O aumento da densidade populacional transformaram as antigas aldeias em cidades, e provocaram alterações na esfera da organização social. Para BENEVOLO (1993), a cidade – local de estabelecimento aparelhado, diferenciado e ao mesmo tempo privilegiado, sede da autoridade – nasce da aldeia, mas não é apenas uma aldeia que cresceu.
Mumford (1998, p. 19) relata que a aldeia “no meio de seus canteiros e campos, formava uma nova espécie de colônia; uma associação permanente de famílias e vizinhos, de aves e animais, de casas, silos e celeiros, tudo isso bem preso ao solo ancestral”, assim, esses novos hábitos e funções emprestaram sua contribuição à cidade, quando ela veio a surgir e “sem esse componente de aldeia, até a maior comunidade urbana teria carecido de uma base essencial de permanência física e continuidade social” (MUMFORD, 1998, p. 20).
Nesta perspectiva, há a transição da aldeia para a cidade[4] com o aumento da área construída e da população. As cidades emergem agregando as ocupações que outrora eram dispersas. Protegidas por muralhas, as cidades eram limitadas fisicamente pelos muros e governadas por um poder soberano, que detinha o poder econômico, religioso e político. A cidade se configurava arquitetônica e esculturalmente conforme a divisão social em castas, usos e costumes, poder militar e econômico e religião (COSTA, 2010).
Conforme Rolnik (2010, p. 08) as cidades nascem com o processo de “sedentarização e seu aparecimento delimita uma nova relação homem/natureza: para fixar-se em um ponto para plantar é preciso garantir o domínio permanente de um território”. Assim, atrelada com essa relação homem/natureza, está também, a organização da vida social.
O autor Sjoberg (1972, apud SILVA, 2010) subdivide as cidades em três estágios intermediários, desde a sua origem até a época de urbanização: 1) o pré-urbano; 2) sociedade pré-industrial; e 3) cidade industrial moderna. Esses três estágios são correlatos aos níveis de organização humana e, consequentemente, com os aspectos econômicos, sociais, políticos e tecnológicos.
As primeiras cidades formaram-se no vale compreendido pelo Tigre e o Eufrates, quando a evolução da agricultura permitiu a produção e estocagem de excedentes e as sociedades tornaram-se mais complexas, com o surgimento das classes sociais baseadas na divisão social do trabalho. Deve-se salientar que, apesar das cidades serem uma instituição milenar, o processo de urbanização da humanidade só veio a acontecer bem mais recentemente, a partir da revolução industrial, na passagem do século XVIII para o século XIX. Portanto, o fenômeno urbano expressivo só aconteceu a partir da primeira metade do século XIX. Silva (2010, p. 20) afirma que a “urbanização constitui fenômeno tipicamente moderno”.
Nesta perspectiva, surge o urbanismo, pois de acordo com Silva (2010, p. 27) “o fenômeno urbano, aqui e alhures, é constatado como um daqueles em que é preciso disciplinar e conformar para que o homem não se veja engolfado pela civilização do caos que se avizinha, na visão dos futurólogos e dos filósofos do nosso tempo.” O urbanismo é, pois, uma técnica e ciência que se ocupa do fenômeno urbano, tratando-o a partir de seus preceitos e parâmetros.
Logo, o urbanismo é um elemento de importante transformação das cidades, promovido através de atividades próprias, destinadas a aplicar seus princípios e realizar seus fins, portanto é o “conjunto de medidas estatais destinadas a organizar os espaços habitáveis, de modo a propiciar melhores condições de vida ao homem na comunidade”. (MEIRELLES, 2009, p. 522).
3. A urbanização no Brasil
O processo de urbanização no Brasil teve início com a política de ocupação e povoamento das terras indígenas promovidos por Portugal, estando correlacionado aos ciclos econômicos de exploração dos recursos. Silva (2006) relata que em meados do século XV, esse sistema de exploração deu origem às primeiras feitorias, que eram formadas por pequenos agrupamentos humanos com agricultura rudimentar, cujos principais expoentes foram a feitoria de Cabo Frio e de Pernambuco. Com a expedição colonizadora, Martim Afonso cria São Vicente, “dando início à formação de vilas e povoados, de sorte que, à época da instalação do Governo Geral (1549), já haviam sido fundados 16 povoados e vilas no litoral brasileiro, e Tomé de Souza chega e funda a cidade de Salvador” (SILVA, 2010, p. 21).
A formação dos primeiros núcleos urbanos resultou da ação urbanizadora das autoridades interessadas e não da vontade popular, assim, havia uma tendência para que as cidades se desenvolvessem no litoral, em virtude do tipo de economia voltada para a exportação do café. Silva (2010) afirma que a formação de núcleos urbanos nas zonas mineradoras (Minas Gerais e Goiás), nas áreas de plantação de cana-de-açúcar do nordeste e em Vacarias do Sul configurou exceção à regra da urbanização litorânea. s cidades brasileiras desenvolveram-se da costa marítima sob a influência da economia voltada para o exterior.
Conforme Maricato (1996, p. 2) as mudanças políticas na década de 1930, como a “regulamentação do trabalho urbano (não extensiva ao campo), incentivo à industrialização, construção da infraestrutura industrial, entre outras medidas, reforçaram o movimento migratório campo-cidade”. Assim, até a década de 1940 as cidades brasileiras eram tidas como promessas de avanço e modernidade.
Na década de 1950 o processo de industrialização entra em nova etapa, pois o país passa a produzir bens duráveis e até mesmo bens de produção. Nessa década, além dos inúmeros eletrodomésticos e bens eletrônicos, o automóvel produzido por essa grande indústria fordista promove mudanças diversas nos modos de vida, na habitação e nas cidades (MARICATO, 1996).
A partir da década de 1960 o processo de industrialização passou a constituir a base econômica do país, intensificando a urbanização de todo o território nacional e o desenvolvimento das cidades. Nas décadas de 1980 e 1990 vários fatores auxiliaram na aglomeração de população nas cidades e adjacências. Motta e Ajara (2001) relatam que o processo de urbanização no Brasil se manteve acelerado e apresentou situações de grande diversidade no território nacional, destacando-se: interiorização do fenômeno urbano; acelerada urbanização das áreas de fronteira econômica; crescimento das cidades médias; periferização dos centros urbanos; e formação e consolidação de aglomerações urbanas de caráter metropolitano e não-metropolitano. Assim, a diversidade na ocupação do território nacional esteve correlacionada coma modificação da economia (MOTTA e AJARA, 2001).
Maricato (1996, p. 4) destaca que a década de 1980 “a sociedade brasileira conheceu também, pela primeira vez, um fenômeno que ficaria conhecido como violência urbana: o início de uma escalada de crescimento do número de homicídios, sem precedentes na história do país”. A autora ainda afirma que a década de 1990 ficou associada à violência, poluição, crianças desamparadas, entre outros inúmeros males, pois a evolução mostrou que, paralelamente ao intenso crescimento econômico, a urbanização com o crescimento da desigualdade resultou numa imensa concentração espacial da pobreza.
Consoante ao exposto, Motta e Ajara (2001) ressaltam que as décadas de 1980 e 1990 foram marcadas pelo crescimento nos grandes centros urbanos, bem como em médios e pequenos centros, porém, o crescimento expressivo aconteceu nos grandes centros urbanos, em que a oferta de trabalho, serviços e atividades era maior. Assim, a população concentrou-se nos grandes centros urbanos ocasionando congestionamentos, lixo, falta de moradia e piora nas condições de vida para seus habitantes.
Em busca de melhores condições de vida e impulsionados pela industrialização, as pessoas migram desordenadamente do campo para os grandes centros, deixando mais evidente a falta de habitações, infraestrutura, saneamento e condições diversas que poderiam garantir uma melhor qualidade de vida.
O fenômeno da urbanização[5] gera graves problemas, desde a degradação do ambiente urbano até a desorganização social com a falta de moradias, empregos e outros. Assim, a intervenção do Poder Público torna-se fundamental para orientar novas formas urbanas para utilização do solo. Nesta perspectiva, surgiram as regras urbanísticas com a finalidade de ordenar o uso e ocupação do solo urbano.
4. O Direito Urbanístico na contemporaneidade
Incialmente, no processo de urbanização as relações urbanas eram regidas pelos costumes e por normas jurídicas simples, e essas normas se estenderam até o Império dada a vigência das Ordenações (SILVA, 2010). Porém, com as leis de desapropriação[6], houve uma significativa iniciação urbanística com forças para intervir na propriedade privada. (COSTA, 2009, p. 82).
Deve-se mencionar também o período da Primeira República (1889 a 1930), em houve a entrada em vigor do Código Civil de 1916, que trouxe normas urbanísticas que restringiam o direito de construir (Art. 572).
Apesar da existência das normas urbanísticas, elas ganharam destaque com a Constituição da República de 1988, estabelecendo no Art. 24 que “compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: I - direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico”. No que tange à atribuição municipal o Art. 30, VIII, estabelece que “compete aos Municípios: VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano” (BRASIL, 2005). A Constituição de 1988 ainda estabelece nos Arts. 182 e 183, regulamentado pela Lei 10.257/01, diretrizes gerais para a política de desenvolvimento urbano a ser executada pelo Poder Público municipal para ordenar o desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar dos habitantes.
Nesta perspectiva, Silva (2010, p. 44-45) relata que os princípios informadores do Direito Urbanístico são:
1º) princípio de que o urbanismo é uma função pública, que fornece ao direito urbanístico sua característica de instrumento normativo pelo qual o Poder Público atua no meio social e no domínio privado, para ordenar a realidade no interesse coletivo, sem prejuízo do princípio da legalidade; 2º) princípio da conformação da propriedade urbana pelas normas de ordenação urbanística – conexo, aliás, com o anterior; 3º) princípio da coesão dinâmica das normas urbanísticas, cuja eficácia assenta basicamente em conjuntos normativos (procedimentos), antes que em normas isoladas; 4º) princípio da afetação das mais-valias ao custo da urbanificação, segundo o qual os proprietários dos terrenos devem satisfazer os gastos da urbanificação, dentro dos limites do benefício dela decorrente para eles, como compensação pela melhoria das condições de edificabilidade que dela deriva para seus lotes; 5º) princípio da justa distribuição dos benefícios e ônus derivados da atuação urbanística.
Esses princípios norteiam o Direito Urbanístico e a partir deles são elaborados normas e institutos mais precisos para organizar o uso e ocupação do solo. Silva (2010) ainda ressalta que o Direito Urbanístico possui dois aspectos: a) Direito Urbanístico objetivo, que consiste no conjunto de normas jurídicas reguladoras da atividade Pública destinada a ordenar os espaços habitáveis; e b) Direito Urbanístico como ciência, que visa conhecer as normas e princípios reguladores da atividade urbanística. Logo, o Direito Urbanístico objetivo propicia melhores condições de vida ao homem na comunidade, enquanto, o Direito Urbanístico como ciência é o ramo do direito público que busca expor, interpretar e sistematizar as normas e princípios.
Nesta perspectiva, observa-se que o Direito Urbanístico é autônomo, pois além de ter um amparo constitucional, apresenta objetivos, princípios, institutos e leis próprias, que visam ordenar o território e/ou espaços habitáveis. É também do âmbito público, pois considera as relações que tem como titular o Poder Público, resguardando o interesse coletivo.
Salienta-se que o Direito Urbanístico ordena a propriedade urbana garantindo a função social determinada pela Carta Constitucional de 1988, garantindo o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e a garantir o exercício do direito à cidade por todos os que nela habitam.
Lefebvre (1991, p. 116) afirma que o direito à cidade "não pode ser concebido como um direito de visita ou de retorno às cidades tradicionais. Só pode ser formulado como direito à vida urbana, transformada, renovada". Desse modo, a habitação figura no rol das necessidades mais básicas do ser humano. Para cada indivíduo desenvolver suas capacidades e até se integrar socialmente, é fundamental possuir moradia. Além disso, o direito à moradia integra a dignidade da pessoa humana que conforme Saule (2004, p. 149):
A dignidade da pessoa humana como comando constitucional será observada quando os componentes de uma moradia adequada forem reconhecidos pelo Poder Público e pelos agentes privados, responsáveis pela execução de programas e projetos de habitação e interesse social, como elementos necessários à satisfação do direito à moradia.
Logo, não há dignidade sem moradia, sem condições de habitação, sem instrumentos urbanos que garantam a circulação, o lazer e o trabalho. O Direito Urbanístico é fundado, ainda, no princípio da igualdade. O princípio da igualdade do cidadão perante a lei, consagrado na Constituição Federal do Brasil no artigo 5º, caput. Assim, é um direito fundamental do cidadão brasileiro.
Silva (2010, p. 31) afirma que Direito Urbanístico, que tem como finalidade “a disciplina do comportamento humano relacionado aos espaços habitáveis”, ou seja, trata-se de uma “arte e técnica social de adequar o espaço físico às necessidades e à dignidade da moradia humana” (SILVA, 2010, p. 31).
Logo, a habitação segura, estruturada, acessível e coesa legalmente dignifica o homem e torna-se uma responsabilidade do poder público e dos agentes privados competentes viabilizá-la da melhor forma possível para que os cidadãos integrem o seio social.
Assim, para assegurar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar dos habitantes tornou-se necessária a elaboração da lei 10.257/2001, ou Estatuto da Cidade, que estabelece diretrizes gerais da política urbana, conforme previsão constitucional nos Arts. 21, XX, 182 e 183.
5. Estatuto das Cidades
A lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, representa um grande avanço para o Direito Urbanístico, visto que, regulamenta o Capítulo de Política Urbana da Constituição Federal (Arts. 182 e 183), passando a vigorar em 10 de outubro de 2001.
Entretanto, o Estatuto da Cidade passou por um longo processo de tramitação de 10 anos, pois os pontos divergentes da lei demoraram a ser consentidos entre os Parlamenteares, que detinham diferentes fontes partidárias.
Assim, o Estatuto da Cidade são normas gerais[7] de Direito Urbanístico, que visa ordenar o pleno desenvolvimento da função social da cidade e da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como o equilíbrio ambiental.
O Estatuto da Cidade está organizado em cinco capítulos, são eles: I – Diretrizes Gerais; II – Dos instrumentos de Política Urbana, com as Seções I a XII; III- Do Plano Diretor; IV – Da Gestão Democrática da Cidade e V- Disposições Gerais.
O Capítulo I estabelece diretrizes gerais da política urbana, tendo como objetivo ordenar as funções sociais das cidades e da propriedade urbana, no termos do Art. 182 da Constituição que declara que “A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”. (BRASIL, 2001, p. 1).
No Art. 2º a Lei expressa as diretrizes gerais:
I - garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações; II - gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano; III - cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social; IV - planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente; V - oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da população e às características locais; VI - ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar: a) a utilização inadequada dos imóveis urbanos; b) a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes; c) o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação à infra-estrutura urbana; d) a instalação de empreendimentos ou atividades que possam funcionar como pólos geradores de tráfego, sem a previsão da infra-estrutura correspondente; e) a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não utilização; f) a deterioração das áreas urbanizadas; g) a poluição e a degradação ambiental; VII - integração e complementaridade entre as atividades urbanas e rurais, tendo em vista o desenvolvimento sócio-econômico do Município e do território sob sua área de influência; VIII - adoção de padrões de produção e consumo de bens e serviços e de expansão urbana compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental, social e econômica do Município e do território sob sua área de influência; IX - justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização; X - adequação dos instrumentos de política econômica, tributária e financeira e dos gastos públicos aos objetivos do desenvolvimento urbano, de modo a privilegiar os investimentos geradores de bem-estar geral e a fruição dos bens pelos diferentes segmentos sociais; XI - recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos; XII - proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico; XIII - audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população; XIV - regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais; XV - simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias, com vistas a permitir a redução dos custos e o aumento da oferta dos lotes e unidades habitacionais; XVI - isonomia de condições para os agentes públicos e privados na promoção de empreendimentos e atividades relativos ao processo de urbanização, atendido o interesse social. (BRASIL, 2001, p. 1-2).
Assim, observa-se que a lei disciplinou importantes diretrizes para a efetivação da política urbana, que conforme Mukai (2004, p. 42) é “obrigatória para os Municípios, que deverão incluí-las, com as necessárias particularizações, em seus planos diretores, leis de uso e ocupação do solo e de parcelamento do solo”.
No segundo Capítulo o Estatuto da Cidade apresenta os Instrumentos de Política Urbana, assim, os instrumentos previstos nos incisos I e II do artigo 4º possuem maior amplitude, pois abrangem planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico. No inciso III é explicitado o planejamento municipal, destacando-se o plano diretor, o zoneamento ambiental, as leis orçamentárias e outros. Os institutos tributários são apresentados nos incisos IV e V. E no inciso VI estão destacados os instrumentos de proteção ambiental e de vizinhança.
Seguidamente, a Lei relata sobre o Plano Diretor obrigatório para as cidades com mais de vinte mil habitantes e é tido como instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. Conforme Silva (2010, p. 137):
É plano, porque estabelece os objetivos a serem atingidos, o prazo em que estes devem ser alcançados (ainda que, sendo plano geral, não precise fixar prazo, no que tange as diretrizes básicas), as atividades a serem executadas e quem deve executá-las. É diretor, porque fixa as diretrizes do desenvolvimento urbano do Município.
Assim, o Plano Diretor deve determinar o controle do uso, ocupação, parcelamento e expansão do solo urbano do Município, abrangendo aspectos físicos, sociais e administrativos.
A Gestão democrática das cidades também mereceu destaque pelo Estatuto da Cidade nos Arts. 43 a 45, prevendo que a cidade deverá ser gerida de forma a imperar a democracia direta, utilizando instrumentos como: órgãos colegiados; debates; audiências; consultas públicas; conferencias de assuntos urbanos; iniciativa popular de projetos de lei e de planos; programas e projetos de desenvolvimento urbano; e referendo popular.
Nas Disposições Gerais a Lei 10.257/01 institui que os Estados e os Municípios terão o prazo de 90 dias, a partir da data de entrada em vigor da lei, para fixar prazos, através de lei, para expedição de empreendimentos urbanísticos, aprovação de projetos de parcelamento e edificação, vistorias e expedição de termo de verificação e conclusão de obras.
6. Função social da cidade
Após essa breve exposição histórica e legal do Direito Urbanístico, será discutida a função social do direito da propriedade, pois, a atividade urbanística está diretamente condicionada pela extensão do direito de propriedade.
A partir da compreensão das normas de urbanísticas e de seu contexto observa-se que a função social da propriedade estabelece a prevalência do interesse comum sobre o interesse individual. Trata-se do uso socialmente justo do espaço urbano para que os cidadãos se apropriem do território, democratizando seus espaços de poder, de produção e de cultura dentro de parâmetros de justiça social e criação de condições ambientalmente sustentáveis.
A função social da cidade possui conceito constitucional como norma programática[8] a ser instituída pelos municípios e pode entendida como “desdobramento natural do princípio da função social da propriedade” (SALEME, 2005, p. 3). Desse modo, o princípio da função social da propriedade é visto no plano individual, devendo ser ampliado para melhor compreensão das necessidades coletivas com a maior materialização das normas programáticas constitucionais (SALEME, 2005).
Nesta perspectiva, a Constituição de 1988 declara no Art. 182 § 2º que “A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”. Assim, a política de desenvolvimento urbano depende expressamente da função social da propriedade urbana para garantir o bem-estar de seus habitantes.
Não obstante, o Art. 5º da Carta constitucional ainda expressa que “XXIII - a propriedade atenderá a sua função social”. Condizente com as normas constitucionais o Estatuto da Cidade o Estatuto da Cidade aponta as seguintes diretrizes de ordenação e controle do solo, no inciso VI do artigo 2°, visando a evitar: a) a utilização inadequada dos imóveis urbanos; b) a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes; c) o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação à infraestrutura urbana; d) a instalação de empreendimentos ou atividades que possam funcionar como pólos geradores de tráfego, sem a previsão da infraestrutura correspondente; e) a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não utilização; f) a deterioração das áreas urbanizadas; e g) a poluição e a degradação ambiental.
Para a propriedade urbana atender a sua função social, o Plano Diretor deve priorizar mecanismos de modo a: a) democratizar o uso, ocupação e a posse do solo urbano, de modo a conferir oportunidade de acesso ao solo urbano e à moradia; b) promover a justa distribuição dos ônus e encargos decorrentes das obras e serviços da infraestrutura urbana; c) recuperar para a coletividade a valorização imobiliária decorrente da ação do Poder Público; d) gerar recursos para o atendimento da demanda de infraestrutura e de serviços públicos provocados pelo adensamento decorrente da verticalização das edificações e para implantação de infraestrutura em áreas não servidas; e) promover o adequado aproveitamento dos vazios urbanos ou terrenos subutilizados ou ociosos, sancionando a sua retenção especulativa; de modo a coibir o uso especulativo da terra como reserva de valor. (BRASIL, 2002).
Saleme (2005, p. 5) ressalta que a função social da cidade supera a tradicional visão da urbis, “refere-se ao atendimento das necessidades presentes, futuras e reconhecimento das condições capazes de desenvolver o município e oferecer melhores condições de vida aos seus munícipes”.
Deve-se salientar que a Carta de Atenas de 1933, declara que as funções sociais da cidade são: habitação, trabalho, circulação e recreação. Porém, com as mutações ocorridas com a dinamicidade das cidades, em 2003, a nova Carta de propõe uma rede de cidades que busque:
Conservar a riqueza cultural e diversidade, construída ao longo da história; conectar-se através de uma variedade de redes funcionais; manter uma fecunda competitividade, porém esforçando-se para a colaboração e cooperação e contribuir para o bem-estar de seus habitantes e usuários. (BERNARDI, 2006, p. 42).
Conforme Bernardi (2006, p. 42) “a visão na nova Carta de Atenas 2003 é de uma cidade conectada, instantânea, porém acentua que não se trata de uma visão utópica e nem uma inadequada projeção das inovações tecnológicas”.
Outro aspecto inovador é que a Carta de Atenas de 2003 trouxe acréscimos nas funções das cidades, que são tratadas como conceitos, são elas: a cidade para todos, participativa, cidade refúgio, saudável, produtiva, inovadora, com acessibilidade, ecológica, cultural e histórica. Esses novos dez conceitos estão correlacionados a uma cidade para todos, que deve buscar a inclusão das comunidades através da planificação espacial, e medidas sociais e econômicas que por si só devam combater o racismo, a criminalidade e a exclusão social; a cidade participativa, desde o quarteirão, o bairro, o distrito, o cidadão deve possuir espaços de participação pública para gestão urbana, conectados numa rede de ação local. (BERNARDI, 2006).
Saule (2004, p. 64) afirma que o alcance da função social da cidade é:
A formulação de uma nova ética urbana voltada para a valorização do ambiente, cultura, cidadania e direitos humanos. Abarca o pleno exercício do direito à cidade; enquanto se fustigam as causas da pobreza, protegem-se o meio ambiente e os direitos humanos, reduz-se a desigualdade social e melhora-se a qualidade de vida.
Desse modo, a função social da cidade está em constante debate e não é algo estanque, pois a cidade é dinâmica e suas funções devem acompanhar as suas transformações. Berdinardi (2006, p. 119) afirmam que “as funções sociais da cidade estão intimamente ligadas aos direitos fundamentais”. Assim, a finalidade do Poder Público centra-se em garantir e materializar estes direito fundamentais, visto que se trata de direito à vida social, com liberdade e limites que assegurem aos cidadãos a igualdade de usufruir dos bens gerados pela civilização (BERNARDI, 2006).
7. Considerações Finais
Diante o exposto, observa-se que a urbanização da humanidade é um fenômeno moderno da sociedade industrializada. No Brasil, a urbanização teve início com a política de ocupação e povoamento das terras indígenas promovidos por Portugal, estando correlacionado aos ciclos econômicos de exploração dos recursos. Com o decorrer dos tempos, surgiram as regras urbanísticas com a finalidade de ordenar o uso e ocupação do solo urbano.
O Direito Urbanístico se apresenta como autônomo, uma vez que tem por objeto um conjunto de normas específicas, voltadas para a realização e aplicação de princípios norteadores próprios e princípios constitucionais, além de objeto e tratamento individualizados. O Estatuto da Cidade representa a lei geral de Direito Urbanístico, instituindo diretrizes, instrumentos de Política urbana, Plano Diretor, gestão democrática da cidade e outras disposições para regulamentar o Art. 182 e 183 da Constituição de 1988.
Desse modo, com a evolução da sociedade e das normas que a regulam, remete-se à função social da cidade, que está intimamente ligada aos direitos fundamentais, cabendo ao Poder Público resguardar o direito à vida social, com liberdades e limites que deem a todos a possibilidade igualitária de usufruir dos bens gerados. Não obstante, pensar em função social da cidade é buscar a melhor forma de ordenar o uso e a ocupação e uso do solo.
Conclui-se o presente estudo afirmando que a função social da cidade, e da propriedade, está diretamente atrelada as condutas do Poder Público e com as normas contidas no Direito Urbanístico, devendo o ator público fazer o uso dos instrumentos previstos, para garantir a participação popular que traduza a gestão democrática da cidade e legitima a administração pública da cidade, a fim de que se cumpra a verdadeira função social da cidade.
8. REFERÊNCIAS
BENEVOLO. L. História da Cidade. São Paulo, Editora Perspectiva, 1993.
BERNARDI, J. L. Funções sociais da cidade: conceitos e instrumentos. Dissertação (Mestrado) — Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Curitiba, 2006.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 37ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
BRASIL, Estatuto da cidade (2002). Estatuto da cidade: guia para implementação pelos municípios e cidadãos: Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001, que estabelece diretrizes gerais da política urbana. 2ª ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2002.
BRASIL. Lei 10.257, de 10 de Julho de 2001. Regulamenta os Arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Brasília: Imprensa Nacional, 2001.
COSTA, C. M. M. da. Direito Urbanístico comparado: planejamento urbano – das constituições aos tribunais luso-brasileiros. Curitiba: Juruá, 2009.
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[1] Mestre em Desenvolvimento Social e docente do curso de direito da Faculdade Guanambi (FG)
[2] Doutora em Geografia e docente do curso de Geografia da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES)
[3] Doutor em Geografia e docente do curso de Geografia da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES)
[4] Segundo Mumford (1998), a estrutura embrionária da cidade já existia na aldeia. Casa, oratório, poço, os começos da moralidade organizada, do governo e da justiça existiam nos Conselhos de Anciões da aldeia. Tais conselhos espontâneos expressavam o consenso humano.
[5] Silva (2010) faz a distinção entre a Urbanização e a urbanificaçãoo, em que se emprega o termo “urbanização” para “designar o processo pelo qual a população urbana cresce em proporção superior à população rural”, assim a urbanização trata-se de um fenômeno moderno da sociedade industrializada. Em relação à urbanificação, esta se dá pelo “processo deliberado de correção da urbanização, consistente na renovação urbana, que é a reurbanização, ou a criação artificial de núcleos urbanos, como as cidades novas da Grã-Betanha e Brasília.” (SILVA, 2010, p. 26-27)
[6] A primeira lei de desapropriação foi datada em 09.09.1826. (Costa, 2009, p. 82).
[7] Conforme Meirelles (2005, p. 107) norma geral “é a que estabelece princípios ou diretrizes de ação e se aplica indiscriminadamente a todo território nacional”.
[8] De acordo com Diniz (1998, p. 371) as normas programáticas são "... aquelas em que o constituinte não regula diretamente os interesses ou direitos nela consagrados, limitando-se a traçar princípios a serem cumpridos pelos Poderes Públicos (Legislativo, Executivo e Judiciário) como programas das respectivas atividades, pretendendo unicamente à consecução dos fins sociais pelo Estado”.
Mestre pela Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES) e Docente no curso de Direito na Faculdade Guanambi.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, Deborah Marques. Considerações teóricas do direito urbanístico contemporâneo e a função social da cidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 jan 2014, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38175/consideracoes-teoricas-do-direito-urbanistico-contemporaneo-e-a-funcao-social-da-cidade. Acesso em: 22 nov 2024.
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